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quarta-feira, 24 de abril de 2013

Guilherme Cassel e o delírio tântrico (Nilto Maciel)





Meu amigo Roberto Schmitt-Prym me ofertou alguns livros. Um deles é Contos de solidão e silêncios (Porto Alegre: Editora Bestiário, 2012), de Guilherme Cassel, gaúcho de Santa Maria. Passei três dias agarrado a ele, o volume. Ao final da aula do dia 6 de abril, fiz uma proposta às meninas e ao menino da oficina (mantenho em casa um laboratório literário, para aprendizes): Qual de vocês quer explorar umas ficções novas, vindas do Sul? E lhes mostrei o objeto. Sulamita espiou as capas, examinou as abas e se disse muito atarefada. Ana Clara parecia no mundo da lua (passou toda a aula a olhar para o nada) e não demonstrou interesse em mergulhar nas estórias. Fabiano não tentou me engabelar: há dias se via atado a umas narrativas de Breno Accioly. Restou Erykah Bloom. Sim, queria muito apreciar a novidade. Só precisava de uns cinco dias. Dei-lhe sete. Analisaríamos a obra no sábado seguinte. E assim o fizemos.  

           Quando Sulamita Chaves me falou pela primeira vez de Erykah, eu me senti no apogeu da fama: meu nome finalmente chegava aos States. A menina é filha de um natural de New York com uma cidadã de Fortaleza. Nasceu na mesma cidade da mãe, morou dois anos nos Estados Unidos, fala inglês e português, etc. E gosta de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Dalton Trevisan e de mim. Quase não consegui dormir. E sonhei em me apaixonar por ela. E é só, que não estou nesta crônica para falar de paixões tardias ou retardadas, nem de meus pobres gregotins. Fiquemos na seleção de Cassel e na conversa daquela tarde recente.

Guilherme Cassel é novato (embora nascido em 1956). Antes da estreia “oficial” (o que se dá com a publicação do primeiro opúsculo), aparecera em uma coletânea organizada por Luiz Antônio de Assis Brasil. Nestes Contos de solidão e silêncios apresenta 23 (vinte e três) peças, umas bem curtas (“O anjo”, “Sem pressa”, “Somos assim”, “Dezoito por doze”), outras um pouco mais alongadas. Nenhuma, porém, com feição de novela ou romance pequeno (refiro-me ao tamanho ou ao número de páginas). Ou estarei enganado? Pois logo o primeiro drama – “As mortes de Ramiro Esteves”, de apenas sete páginas – tem a cara de Cem anos de solidão: “Naquela manhã de sábado, quando Ramiro Esteves passou em frente ao armazém e cumprimentou os conhecidos com um aceno, ninguém imaginou que ele estava abandonando Santa Clara”. Lembremos o início do monumento universal do colombiano: “Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía”(...).

Erykah Bloom não concordou comigo: “García Márquez é muito mais pomposo. Além disso, a narração de Cassel se atém demasiadamente a informações talvez secundárias sobre o protagonista, o lugar e o tempo”. Não me satisfiz com a conclusão da garota. Esclarecesse aquilo. “Ora, parece desnecessário informar que Ramiro ‘não assistia às missas’. Todo homem sem religião é propenso a cometer crime?” Os outros alunos riram. Pedi-lhes silêncio e respeito à opinião da moça. Sim, o título justificava o mistério do comportamento do fazendeiro, seus modos, a vida afastada dos outros, quase sem contato com seus conterrâneos.

Erykah foi mais azeda ainda: “O título parece impróprio”. Como impróprio? “O autor poderia ter arranjado título menos enfático. Não precisava denotar tanto o caráter do personagem”. Sugeri “Fogo e reza”. Ela riu: “Não, esse é feio demais”.

No meio da tarde, convidei meus pupilos à merenda. Bati palmas (às vezes, chamo a atenção de Alice assim) e apareceu a secretária: “Pode preparar a mesa, que estamos famintos e sedentos”. Dei, sem querer, um abraço na tântrica criatura e sussurrei em seu ouvido “você é muito inteligente”. Ela sorriu, sem jeito: “Muito inteligente é o senhor”. Contestei-a: “Se fosse, não estaria aqui”. “E onde estaria?” “Talvez na Câmara dos Deputados, a cochichar aos ouvidos de outro sabichão. Se não, poderia ser pastor evangélico. Ou, simplesmente, meter-me num navio luxuoso, no Mar Tirreno”. Deixamos de lado os elogios e os sonhos e nos dedicamos à torta de banana e aos sucos de melancia e cenoura. “Então esse Cassel é bom mesmo?” Não prestei atenção à provocação. Só sei de onde proveio: da boca doce e molhada de Sulamita. A brincar, Ana Clara lhe deu murro leve às costas. Parasse de falar, enquanto mastigava.

De regresso à sala onde se dão as aulas (às vezes palestra, às vezes diálogo, outras nem isso nem aquilo), mudei de assunto (porque sou professor e não posso me deixar conduzir pela vontade dos alunos): “Você percebeu algum traço de regionalismo em Guilherme Cassel?” Sim, bastava prestar atenção à ambientação da maioria dos relatos, a caracterização dos personagens, o comportamento das pessoas: “as mãos nos bolsos da bombacha”; “nos invernos do Sul, o dia custa a se livrar da névoa”. Fez uma pausa: “Há até uma composição intitulada ‘Sul’. E as frases sempre a lembrar ao leitor aquela região: ‘Quem vive no Sul, quando envelhece, naufraga em silêncio’”. Interrompi-a: “Isso é natural, minha cara. O sulista deve descrever o Sul; o nordestino, o Nordeste; o escritor do Norte, a Amazônia”. E lembrei o caso José de Alencar, que quis descrever o Brasil, sem o conhecer todo.

Aproveitei o momento, para sair em defesa da arte de Guilherme Cassel: Vejo nele as mais amplas possibilidades como escritor. Sabe lidar com a primeira pessoa (mencionei “Memória”, “Tentação” e outros) e com a terceira ou o ponto de vista onisciente (perfeito na primeira história). Consegue descrever perfis, lugares, objetos (sem ser enfadonho), como em “Tentação”: “voltei devagar, pensando em cada detalhe do que havia acontecido, procurando fixar na memória cada músculo do cavalo, o preto lustroso do pêlo, a voz do homem desconhecido, suas mãos, o olhar, o chapéu”.

Fiz mais duas ou três observações a respeito da linguagem do contista (economia verbal, contenção das falas, narração do essencial) e me lembrei de pedir auxílio a Assis Brasil (que deve ter sido o mestre de Guilherme). E encontrei diversos bons (para a minha aula) trechos na apresentação de quatro páginas. Como este: “Guilherme Cassel opta pela linearidade frasal, deixando a sofisticação para o que, de fato, importa: os enredos e conflitos”. Erykah Bloom quis se manifestar. No entanto, já ia a tarde se encaminhando para a noite. Diga apenas uma palavra ou cale-se para sempre: “Lindo!” Não sei se se referia ao pensamento de Assis Brasil, se ao modo de narrar de Cassel, se ao entardecer.

Ao mesmo tempo, Sulamita, Ana Clara e Fabiano me pediram o tomo, por empréstimo. Olhei de uma só vez para os três. Optei por Ana Clara. Explico a preferência: ainda não iniciara a leitura de Cien años de soledad. “Então deixe García Márquez para depois”. E ela, a sorrir, declamou: “Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre lo llevó a conocer el hielo”.

Eu por pouco não atingi o grau máximo do delírio tântrico.

Fortaleza, 21 de abril de 2013.

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