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segunda-feira, 20 de maio de 2013

O absurdo caracol de Tanussi Cardoso (Nilto Maciel)



(Poeta Tanussi Cardoso)


Conheci Lucíola Buratti pela Internet. Ela me fez um gabo e isso me pegou pelo pé: “Seus contos são cânticos em prosa”. No terceiro dia, eu já sabia quase tudo dela: naturalidade, cor da pele, preferências literárias. Quando me vi diante dela, me extasiei. Parecia-me ter chegado ao paraíso, ao jardim das delícias. De onde você veio? De São Paulo, trazida pelos genitores. O pai é engenheiro; a mãe, psicóloga. Ela, estudante de jornalismo. Fiz-lhe um convite ousado: “Venha me conhecer”. Prometeu vir. “Pode ser amanhã?” Respondi, na bucha (quer dizer, na hora): “Pode e deve”. E dei seguimento à leitura de três coleções de Tanussi Cardoso, recebidos em abril. O mote da conversa seria a arte desse artesão do verso. Lucíola revelara: “Gosto do pessoal da geração 1980”. Citou uns cinco nomes e fez provocação: “Você conhece algum?”

        As três coletâneas são Exercício do olhar (Rio de Janeiro: Five Star Entertainment, 2006); 50 poemas escolhidos pelo autor (Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2008); e Del aprendizaje del aire/Do aprendizado do ar (Rio de Janeiro: Five Star Entertainment, 2009). Lucíola não conhecia nenhuma. Entretanto, sabia do autor: “Li algumas composições dele”.

A primeira traz prefácio do eminente professor, crítico e alquimista Gilberto Mendonça Teles. Não um prefácio qualquer, desses vistos nas primeiras folhas de quaisquer impressos, aqueles amontoados de elogios ocos e frases pomposas. Trata-se de estudo de fôlego, viagem pelo território da poesia. E um elogio de deixar qualquer bom criador a bailar nas nuvens: “É assim, sem preguiça, com muito talento, com uma grande capacidade de ler os bons autores, nacionais e estrangeiros, e com o seu projeto literário diuturnamente construído é que se vai fazendo a excelente poesia de Tanussi Cardoso, uma das melhores atualmente no Brasil”.

Luíz Horácio Rodrigues o compara a Ivan Junqueira (um dos favoritos de Lucíola) e o aproxima de Luis Augusto Cassas (também admirado por ela). “Seus poemas são de uma sutileza impressionante, vivos, transformam-se em trapezistas, sem rede de proteção, de página em página”. Vai do “discurso poético denso” à “lírica áspera e fundamental”, passando pelo “requinte artesanal do verso”. Vejamos a densidade destes fios poéticos e o requinte de quem sabe lidar com as palavras e as imagens: “minha mãe lê o mundo / pelo sorriso // a lua é serpente / num lago hirto”. A tal “lírica áspera e fundamental” está presente em todo o repertório: “a vida se vai como o gelo se desfaz: / lento, frio, queimando as mãos”.

Quando cuidei, a moça parecia pasmada. Mirava o infinito, embora tudo fosse limitado ao nosso redor: a sala, as paredes, os móveis, as portas, os livros (objetos). E nós, eu a soletrar versos, ela a ouvir e se encantar. Distraí-me por um minuto e ela agarrou os 50 poemas escolhidos. Deixei-a mergulhada nas páginas e me retirei, para buscar um resto de perfume, um raio de estrela, uma sombra da Lua. Ela pediu autorização para recitar: “o pijama despido do corpo / dorme seus sonhos // o rosto no retrato / estampa uma febre antiga // o piano dedilha / memória e descompasso // o fantasma de um gato / descansa no sofá / a escada suspira / os passos dos homens // no escuro as coisas brilham seus nomes”. Maravilhei-me (não apenas agora, pois leio Tanussi há mais de trinta anos) e, por pouco, não saí a voar pela casa. A menina me conteve. Mergulhou em mim um olhar de eternidade, molhou os lábios e eu senti sede. Ofereci-lhe água, suco de maçã ou ambrosia.

Enquanto me retirava, ouvi: “Esse poeta é apenas maravilhoso”. Mudei de assunto: “Como estão seus pais?” Ela não balbuciou mais que um monossílabo. Lembrei-me de sua origem: “E São Paulo?” Sorriu e passou a língua ardente na borda do copo: “Continua crescendo”. Peguei o outro pergaminho e declamei, com pompa: “El ojo cortado del perro andaluz / el ojo de la lamina afilada / el ojo de la sangre y su chorro / el ojo y la visión de Borges / el ojo ciego que ve / el ojo de los brujos / el ojo oculto del eclipse / el ojo de la parábola y de la profecia”. Minha convidada se exaltou, deu um gritinho e se estirou no sofá: “Isso é lindo, seu Nilto Maciel. Ou parece Francisco Carvalho, esse monumento do Ceará e do Brasil, tão desconhecido, ou se assemelha a Lorca, a Borges e aos nossos ancestrais ibéricos”.

Conheço o hinário de Tanussi Cardoso desde quando o chamavam de “poeta marginal”. Sem preconceito, nunca o vi assim. Pois está muito além dos epicentros e das epidermes. Leo Lobos (chileno, ficcionista e tradutor do bardo carioca para a língua de Neruda) fez este resumo: “A poesia de Tanussi Cardoso possui a capacidade de brilhar como um piscar de olhos, num átimo, distante do futuro, e, nesse momento, a vida se afirma na Terra”.

A visitante fez esta revelação: “Esse Cardoso é feito de olhar”. Observação perfeita. Nesta pérola de três lados (versos), a síntese dessa galeria de formas e visões: “das sombras / nasce o poema / luz e nudez / : absurdo caracol”. A densidade aliada ao requinte artesanal. Além de tudo, o menestrel conseguiu se livrar dos modelos pessoais (alguns críticos teimam em chamar isso de estilo). Modelos pessoais são cacoetes, manias, sestros responsáveis por fazer do seu dono algo assim como um bonequinho de pano. Tanussi vai do poemeto de três linhas ao afresco ou mural, sai da linguagem coloquial (“maior / que o quintal / da minha infância”) à mais rutilante metáfora (“o tempo / nasce das escrituras dos pássaros / ou do seu canto / ou do riso do primeiro galo”), bateia os nomes sem medo dos verbos e adjetivos: “o olho do verbo ser / o olho duplo da androginia / o olho do que sou e não sou” (...) “o olho insuportável dos limites / o olho sem algemas” (...) “o olho paradoxal da contradição”.

Para terminar a tarde, entreguei os três presentes vindos de Tanussi Cardoso a Lucíola Buratti. Queria burlar o destino: com mimos, ela certamente voltaria. Antes de partir, ainda li uns versículos: “sei que toda aurora tem seus olhos negros / que um grão de areia do deserto é o deserto todo / e que prefiro o cedro, amargo e forte, / ao cupim com sua garganta de morte// não sei dos barcos quando navego seus peixes / o casco ácido do seu beijo / a espuma líquida do seu cheiro / a boca úmida dos seus pelos / as algas dos seus cabelos” (...).

Não pude mais dizer nada: ela partia. Fui até o portão: quis beijá-la. Não tive coragem. “Volte... quando quiser. Ou se quiser”. Lucíola ria e pela rua saiu, faceira feito um bando de passarinhos às vésperas do derradeiro voo.

Fortaleza, 13 de maio de 2013.

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