Translate

terça-feira, 23 de julho de 2013

Diário com Uliyana Maksymenko (Nilto Maciel)


(Quadro de Aldemir Martins)


Escrever diário é não viver. Ou é viver só para escrever. Com anotar fatos do cotidiano se parece fotografar ou filmar. Pintar ou desenhar também. A cada dia, a cada hora, o autor de jornal literário ou íntimo (ou pintor, fotógrafo, cinegrafista) estará a se perguntar: por que fui à praia? Para anotar o passeio no caderno. Para fotografar ou filmar o mar. Não para vê-lo, não para desfrutá-lo, não para correr nas praias, pisar a areia, sentir a brisa. O escritor de diário, do mesmo modo o fotógrafo, o pintor, o cinegrafista, é mero anotador de movimentos ou poses dos outros. Da vida dos outros. Ele mesmo não vive. A não ser que outro escritor, pintor ou fotógrafo “narre” seu cotidiano. E se outro, terceiro pintor, se dedicar a pintar o segundo pintor a pintar o primeiro pintor? 

Quando escrevia diário ou registrava em fotografia as férias de minha família, perdia meu tempo a fazer anotações em cadernos e em me entreter com a lente da máquina, enquanto minha mulher passeava e minhas filhas brincavam. Certa vez, passei viagem de avião a descrever nuvens, nimbos, cores, medos, angústias, esquecido da possibilidade de morrer no céu e ser espatifado na Terra. 

Estava eu a pensar nisso, quando o telefone me alertou: Olhei o número no visor. Não me dava ideia de ninguém. Seria voz a me oferecer plano de saúde, conta-corrente em banco multinacional, viagem ao Caribe. Pensei em não atender. Insistiram. Gritei: Quem é? Vozinha suave e com sotaque estrangeiro pedia desculpas por me causar incômodo. Ajoelhei-me aos pés da santa mesa e pedi perdões pela grosseria. Vocês imaginam o nome da insistente criatura? Não podem nem supor: Uliyana Maksymenko. Havia três meses visitava o Brasil, de cabo a rabo, isto é, de Norte a Sul. Encontrava-se em Fortaleza e muito desejava me ver de perto. Não indaguei o motivo desse interesse. Teriam falado de mim além do necessário. Confortei-me: os elogios servem para alguma coisa na vida. Há anos, encontrei na rua certo escritor, do qual lera uma ou duas histórias e mil páginas de elogio (enviadas por ele a centenas de pessoas). Cedo olvidei a mediocridade das narrativas. Os elogios, porém, chafurdavam na mente: exímio narrador, discípulo de Machado de Assis, dono de estilo singular. Ao vê-lo, senti vergonha de mim e, por pouco, não me prostrei aos seus pés, para venerá-lo. Nesse tempo eu não tinha ainda 20 anos e acreditava em ídolos. 

Ora, deixemos esses passados mortos e vivamos o presente. Uliyana chegaria dentro de alguns minutos e eu a pensar em escritores medíocres. Entreguei-me, de olhos fechados, a fantasiar suas feições. Por que teria me procurado? Informou-me, por telefone, ter percorrido quase toda Fortaleza: da estátua de Iracema à feirinha de artesanato da Beira-mar, do centro cultural Dragão do Mar aos caranguejos da praia do Futuro. E por quais vias você me descobriu, ó czarina de meus delírios pós-soviéticos? Ofereceu-se para vir ao Monte Castelo, onde moro. Pode ser agora? Pode ser a qualquer hora. Passadas cinco páginas de Tchekhov, um táxi branco e reluzente deixou diante de minha mansão a mais estonteante das raparigas russas de todas as eras. Joguei o contista sobre o diário e corri a abraçá-la. Trazia livrinho dentro da bolsa vermelha: O senhor pode me dar autógrafo? Percebi logo tratar-se de exemplar da edição russa de Carnavalha. Em russo ou português? Há mais de 40 anos estudo a língua de Dostoievski. Quando estive em Moscou, em 1963... Sorriu: Nesse tempo eu nem sonhava em nascer. Meu avô pertencia ao Partido. Conseguiu esconder, até morrer, sua simpatia pelo trotskismo. Tomei-lhe a palavra: Então éramos camaradas. E ela estranhou minha viagem: Como o senhor conseguiu enganar as autoridades soviéticas? Primeiro estive em Cuba. Ela se aproximou mais de mim, porquanto temesse não ouvir todas as palavras de minha saga marxista. E de que modo lhe pareceu o Che? Preferi mudar de assunto e ofereci suco de melancia. Relembrei a alcunha dada pelos direitistas aos guerrilheiros cubanos. Nesse tempo, eu vivia dentro das igrejas, em Baturité, morria de medo de ir pro Inferno e adorava os Estados Unidos. Um dia li, na revista Seleções da Reader’s Digest, artigo muito interessante, que me levou, de vez, aos braços do marxismo. Uma das frases, talvez muito engraçada para os estadunidenses, chamava os rebeldes de melones: “Fidel e seus aliados são verdes por fora e vermelhos por dentro”.  

Não contarei detalhes daquela viagem de minha adolescência. Disponho-me agora a retratar o corpo surgido na sala de minha casa, naquela tarde de preguiça e desilusão. Pedi-lhe autorização para usar a máquina fotográfica. Ela se ofereceu para ficar em trajes menores ou de modo como eu rogasse. Achei a proposta indecorosa e malvada. Certamente pretendia me matar, a espiã das estepes. Ao fundo, colado à parede, quadro de Aldemir Martins clamava por respeito. Está vivo? Faleceu recentemente. O senhor o conheceu? Repeti duas ou três frases aprendidas em salões: Pintava gatos e outros seres. Muitos gatos? Sim, centenas e centenas. Ela suspirou: adorava (adora) felinos. E fez menção de me azunhar (ferir com as unhas), mãos abertas em direção ao meu peito. 

Passados uns minutos, já sem assunto, ela quis saber se eu continuava ativo. Talvez se referisse à atividade de escritor. Confessei: Agora só garatujo minha vidinha sem sentido e sem rumo. E olhe lá. Ela agarrou o caderno espatifado sobre a mesa e se pôs a folheá-lo. Ora, isto é muito interessante. Talvez ironizasse. Perdoei-lhe o pecado, pela sua beleza. Quando aprendeu português? Recentemente. Na Rússia temos cursos de literatura portuguesa e brasileira, além de gramática. E quem é estudado ou lido por lá: Camões, Fernando Pessoa, Graciliano Ramos, Jorge Amado e certo Nilto Maciel. Dei pulos na cadeira e caí na gargalhada. Não se ponha a chasquear de mim, garota! É verdade, estou a ler o senhor e tenho intenção de fazer de sua obra o motivo de minha dissertação de mestrado. O telefone soou de novo. Irritei-me e tencionei desligá-lo. Seria outra vendedora de planos de saúde. Ora, por que não atender e fazer mais um plano? Não, talvez nem desse tempo de me salvar. Minha morte ocorreria naquele mesmo dia, ali na sala, entre os olhos de Uliyana Maksymenko e meu último caderno de anotações diárias. Ela me aconselhou: Pode atender, senhor. Pode ser uma de suas netas ou bisnetas. Ainda não tenho estas; aquelas sim: Maria Vitória, de 12 anos, e Manuela, de nove. Atendi o inconveniente telefone. E sabem quem falava? Pedro Malasartes, amigo meu, morador de Jacarecanga e autor de cronicazinhas para jornal local. Ria feito hiena: Ela já está aí? Quem? Desligou o aparelho na minha cara. Tornei-me roxo de raiva, com vontade de torcer o pescoço àquele desgraçado. A moça russa olhava de perto o quadro de Aldemir Martins. De quem se tratava? Cobrador. Ela riu. O senhor deve muito? Devo minha alma, meu passado, meu presente, meu futuro. Devo tudo, menina, devo até te devorar, feito lobo mau. E me fiz ávido de carnes eslavas. Entretanto, ela não passou a gritar nem a chamar pela vovozinha.  

Meia hora depois, saciados de artes e manhas, acordei suado. Aos meus pés jaziam meus chinelos rotos. Ao meu lado, a mais esplendorosa fêmea já aparecida diante de mim. E sabem o que fazia? Lia meus contos em português. Como e por que você inventou esse personagem? Qual? Esse astuto e perigoso Pedro Malasartes. Sorri. A vida nos ensina a fazer arte. E parti para a eternidade. Levei comigo Uliyana Maksymenko e seus olhos moscovitas. 

Fortaleza, 2/4 de junho de 2013.

/////