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sexta-feira, 12 de julho de 2013

Esse é o Homem, Tractatus Poético-philosophicus – W. J. Solha (Ricardo Alfaya)



 
“Esse é o Homem”, de Solha, é um poema longo, de quase uma centena de páginas.  Pela extensão e pelos temas abrangentes que aborda, sugere um épico pós-moderno. No entanto, longe do tom solene que em geral caracterizam cometimentos do gênero, a sátira e a paródia são as linguagens empregadas pelo autor. Aliás, seria até apropriado aqui evocar o conceito de “carnavalização”, criado pelo russo Bakhtin, e que inspirou um belo ensaio crítico entre nós, “The Iceman Cometh:  A Carnavalização da Tragédia”, escrito pela mestre em literatura Cecy Barbosa Campos, de Juiz de Fora-MG, a respeito do teatro de Eugene O’Neill.

A sugestão de recorrer ao termo “carnavalização” se dá não apenas por afirmações como a presente na p. 56: “O Homem faz da natureza uma baderna.”  Ou pela entrada em cena, na p.28, de um autêntico e literal desfile de uma escola de samba – desfile cujo samba-enredo aparentemente tem o Homem como tema. Na verdade, além desses exemplos mais ostensivos, a própria estrutura do livro como um todo assume um feitio de colagem carnavalesca, de delírio surrealista.

O que permite o gigantesco desfile dessas alas, claro, é a poesia.  Erudito, Solha vai colhendo nomes e eventos, reais e fictícios, tanto da arte quanto da História e os vai colando lado a lado, fazendo com que de um se passe a outro, com ritmo vertiginoso.  Também, não raro, as imagens se interpenetram.  Em quase todas as páginas, uma profusão de nomes: de ícones da História, das artes e dos meios de comunicação. Por sinal, a presença da dita “cultura de massas”  chama a atenção. 

Nas páginas 14 e 15, por exemplo, começa-se falando do lendário Spartacus; passa-se ao Ulisses, de Joyce; chega-se ao Quixote que, por sua vez, evoca o Gordo e o Magro. Logo adiante, estamos no filme Metrópolis, de onde imergimos nas pinturas de Pompeia; daí, pulamos para as tiras de quadrinhos, que desembocam na grandeza de Trajano. Já na página seguinte, passamos pelo imperador Qin; voltamos ao Quixote; chegamos a Golias, grande, quando comparado com Gandhi.  Palavras vão chamando palavras, pela sonoridade ou semelhança. Imagens evocam imagens afins, num permanente jogo de espelhos.

Porém, não se trata absolutamente de um arranjo gratuito.  Desde a capa da obra, suas múltiplas setas, embora partam de diferentes pontos, sugerem ter uma direção em comum.  E é essa direção que confere ao escrito não apenas o tom de paródia, mas também o épico.  Ou seja, não se trata da carnavalização apenas pela carnavalização em si.  Do riso pelo riso.  O autor tem, nitidamente, um objetivo crítico e também um recado a dar para reflexão do leitor.

Outro aspecto, é que a despeito do surrealismo de boa parte das imagens e da profusão de dados e informações, não se trata de uma obra hermética.  Verdade que o leitor contumaz apreciará muito mais a obra do que outro de menor bagagem. Porém, a chave para a compreensão do livro não se acha em, digamos, “entender” ou “decifrar” cada uma das alusões feitas pelo autor.  A chave reside em vislumbrar-lhe o propósito geral e depois usufruir do prazer de observar-lhe os achados.  Afinal, antes de tudo, trata-se de um livro de poesia.  Não vá o leitor assustar-se com a paráfrase pomposa do subtítulo, que ali se acha muito mais pelo sabor do que pelo saber.

Porém, a despeito de sua jocosidade, o subtítulo não é também inteiramente gratuito. Pode-se perceber, de fato, a presença de uma crítica estética e filosófica que inspirou a tessitura da obra.

Conforme explica o autor, na orelha do livro, o título “Esse é o Homem” evoca o dizer de Pôncio Pilatos (“Ecce Homo”), quando apresentou Jesus Cristo à multidão para que lhe fosse decidida a sorte. Esse episódio geraria posteriormente inúmeras obras literárias e artísticas.  Dentre elas, o famoso livro homônimo de Nietzsche, “Ecce Homo”.

Como se sabe, a obra de Nietzsche foi profundamente crítica em relação à filosofia do cristianismo. Também no livro de Solha, Jesus Cristo é um personagem constante, presente ao longo da obra.  Aliás, não apenas Jesus, mas a Bíblia, desde o Gênesis, marca a sua presença.  A visão tanto do cristianismo quanto de outras religiões é permeada por um tom irreverente, no qual se lhes sublinham as contradições morais e práticas.  Ou seja, embora não tão violento e iconoclasta quanto Nietzsche, Solha recolhe diversas contradições que vai encontrando pelo caminho da passagem de Jesus.  Não as apresenta em bloco, mas, aos poucos, em pinceladas rápidas.

Porém, Cristo não é o tema único do livro.  Na verdade, aparece como um dos momentos da História humana.  Assim, o título “Esse é o Homem” remete também a ideia de tratar (“tractatus”) do Homem enquanto objeto poético-filosófico.  E que Homem é esse que aparece na poesia de Solha?

A julgar por esta obra, o traço distintivo do animal homem, em relação aos demais, revela-se na sua gigantesca e diversificada realização cultural.  Feito somente possível por não ser o homem um “animal mentecapto”, conforme sucede com os demais.

Porém, ao mencionar as variadas realizações humanas, Solha o faz despojado de qualquer tom enaltecedor.  Muito pelo contrário, o poeta vai ironicamente empilhando fatos e feitos, qual um colecionar de “bugigangas”, termo inclusive que aparece em dado momento do livro.

Ao ler a maneira como se refere até mesmo a consagradas obras artísticas da humanidade, foi inevitável lembrar do título de uma obra de ficção do escritor Ary Quintella: “Qualquer Coisa é a Mesma Coisa”.

O espírito de “carnavalização” atinge todos os fatos e todas as obras citadas.  Das grandiosas às medíocres.  As aproximações e colagens vão sendo realizadas ao longo do livro, ao sabor das necessidades poéticas.  O Homem se revela como um ser histórico sujeito a críticas. Gôndolas de Veneza e gôndolas de supermercado se confundem.  Entre Gioconda e Popeye, diluem-se as diferenças.  Tudo tem o mesmo valor ou desvalor cultural, num mundo em que o “Multiplicai-vos e dominai toda a Terra” chega “a suas retas finais” (p. 49).

Percebe-se, no entanto, que essa visão de equivalência e mesmice não parte exatamente do autor.  Ele a encarna para revelar o modo de ver e apresentar os fatos num mundo globalizado e sob a constante influência dos meios de comunicação social.  Sobretudo a tevê, da qual muito os estudiosos e críticos já falaram a respeito de sua visão de “mosaico”. Assim, Solha materializa, na poesia, a crítica feita amiúde por semiólogos sobre a banalização da obra de arte pela grande mídia.  Nela, a exibição de um pastel de carne é feita com o apuro e destaque de importância que muitas vezes não foi dado a uma grande pintura a pastel, exibida num museu. Exibição da qual o pastel de carne foi o patrocinador.

Aqui, chama ainda a atenção a imagem da capa, feita por Andréia Solha.  Na página de créditos, explica-se que se trata de uma parede frontal da casa do autor.  É interessante, porque temos a impressão de um ladrilho, o que remete à ideia de mosaico. Ainda mais que o desenho nele presente evoca a atual logomarca da Rede Globo e também o próprio Globo terrestre, o que remete às ideias de tevê e globalização.

Em suma, estamos diante de uma obra de grande riqueza poética, que nos convida à reflexão e ao exercício de interpretação de seu conteúdo.  Uma leitura sobremaneira gratificante.
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Ricardo Alfaya, poeta, contista e ensaísta, nascido e radicado no Rio de Janeiro, com 31 anos de atividade literária.

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