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segunda-feira, 1 de julho de 2013

O sertão de Riobaldo – 2 (Enéas Athanázio)

(Continuação)


Riobaldo Tatarana, o narrador de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, define com precisão o que seja o sertão e as coisas que nele acontecem. Muito do que ele diz hoje caiu na boca do povo e vem sendo repetido sem que se saiba a fonte. Assim, por exemplo, acontece quando ele descreve o sertão, logo no início do romance: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristão-jesus, arredado do arrocho de autoridade” (p. 8). Não é por acaso que os cangaceiros votavam ódio mortal às cercas, uma vez que elas atrapalhavam as andanças e as fugas das volantes que os perseguiam. E Riobaldo era um jagunço, em tudo semelhante ao cangaceiro. Em outra passagem, aliás muito conhecida, diz o seguinte: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...” (p. 19). Mais adiante, volta ao assunto: “Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar” (p. 35). E ainda: “O sertão é do tamanho do mundo” (p. 73). Afinal, a conclusão: “O sertão vai repondo a gente pequenino” (p. 312). Aqui ele reflete a insignificância do homem diante da imensa grandiosidade do sertão que o cerca.

                        Mesmo envolvido em combates, escaramuças e tiroteios, Riobaldo revela permanente preocupação com o divino. “O que não é Deus, é estado do demônio – afirma ele. – Deus existe mesmo quando não há” (p. 60). Também as orações o preocupam. “Bem, rezar, aquela noite, eu não conseguia. Nisso nem pensei. Até para a gente se lembrar de Deus, carece de ter algum costume” (p. 114/115). Não obstante, repete com frequência: “Deus esteja!”.

Sobre a vida e suas surpresas Riobaldo faz curiosas reflexões, algumas delas hoje de domínio público. Falando a respeito do sertão, afirma de repente: “Viver é muito perigoso...” (p. 25), É uma afirmação muito repetida, às vezes com algumas alterações. Em outra passagem, diz: “Viver é um descuido prosseguido” (p. 70). Mais adiante, afirma: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim... Viver é muito perigoso” (p. 85). Acontecimentos com começo, meio e fim, bem arrumados, estão mais na imaginação que na realidade. Isso porque “a vida não é entendível” (p.140).

Mas os tempos de jagunçagem passaram, o sertão foi ficando menor porque as cidades acabaram com ele. E o ex-jagunço, agora fazendeiro, curte grande saudade. “Já tenteou sofrido o ar que é saudade? – indaga ele. – Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração...” (p. 27). Mais adiante: “Moço: toda saudade é uma espécie de velhice” (p.40). Com os anos a pessoa vive mais no passado. E os fatos antigos parecem mais nítidos na lembrança. “Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data” – concluiu (p. 99).

O sertão de Riobaldo também é rico em histórias, algumas delas chocantes. É o caso dos jagunços esfomeados que, cruzando o Liso do Sussuarão, se deparam com um bugio volumoso, de tamanho acima do comum. “Com outros nossos padecimentos – relata ele, – os homens tramavam zuretados de fome – caça não achávamos – até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo...” (p. 54). E estavam ainda assando mais quando alguém observou que o tal não tinha rabo, não era bugio, mas um coitado que por lá andava. “Era homem humano, chamado José dos Alves. Juro ao senhor!” (idem). 

Já o Davidão, jagunço grado, remediado de posses, começou a ter medo de morrer. Pensou e pensou até encontrar solução. Contratou com o Faustino, pobre entre os pobres, por dez contos de réis que este morreria no lugar dele quando chegasse a hora. Faustino aceitou, recebeu, fechou o negócio. Começa, então, uma fase de muitos combates e nenhum deles morre, seguem vivos como antes. Até que um dia o Faustino também começa a ter medo da morte e quer desfazer o trato, devolver o dinheiro, deixar o dito pelo não dito. Davidão não concorda, discutem, altercam, entram em luta. Surge uma faca e Faustino acaba varado por ela (p. 84).

Assim é o sertão. Nele tudo pode acontecer. Nada espanta, nada assusta. Fazendeiro estabelecido, entrado em anos, Riobaldo se considera feliz, bem tratado e limpo. Porque, diz ele, “homem limpo pensa limpo!”  Deus esteja!

(continua)

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