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quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Passeio pelo Brasil (Nilto Maciel)





A coletânea Mapas de viagem (Niterói: Alternativa, 2012) me foi enviada por Alexandre Brandão. Brinde pré-natalino. São 14 dramas, ao todo, dois de cada autor: o próprio Alexandre, Cristina Zarur, Marilena Moraes, Miriam Mambrini, Nilma Lacerda, Sônia Peçanha e Vânia Osório. Os sete se conheceram em 1991, numa oficina literária. E este é o terceiro volume publicado pelo grupo.


Após a leitura das 14 peças, ofereci o livro a Cleto Milani, o mais devasso ancião do Benfica. Trocaríamos ideias. Ontem veio me visitar. E varamos a tarde a estudar os contos. Teríamos entrado pela noite, não fosse minha advertência: “Trinta minutos para cada autora, assim como para o autor”.

O resenhista se exaltou: “‘O anjo negro’ lembrou-me o filme Sei donne per l’assassino”. Confesso minha ignorância: “Quando o senhor assistiu a essa fita?” Não perdeu a quietude: “Marilena Moraes mostra o racismo em relação aos negros no Brasil. Porém, conseguiu apenas engendrar uma história linear, de fundo moralista e cristão. Isso se evidencia na pergunta de Alice, no desfecho: ‘Será que ele não leu a Bíblia?’ (Aludia a padre Moreira, por seu ato de impedir a menina negra Antônia de cantar, na igreja, ao lado de meninas brancas)”. Aproveitei a deixa e alfinetei certas pessoas: “E ainda maldizem o realismo socialista”.

Chegamos a‘O turista inconstante’, de Miriam Mambrini. Para o lascivo macróbio, “a viagem do protagonista poderá agradar a leitores jovens e curiosos. Tem por assunto a ilusão em duplo sentido: do leitor e do personagem. São oito páginas de ‘viagens’ (não se sabe de onde ‘partiu’). O narrador ‘desembarca’ em Ushuaia. E prossegue por mares nunca dantes navegados. Aventuras de todos os tipos. No epílogo, a graça da fantasia, com a revelação da verdade. Humor? Não importa. Preferível um grito de raiva a uma risada. O viajante, então, desperta o leitor: ‘O jantar será um frango grelhado’”. Tenho opinião idêntica à de meu convidado. Nessa narrativa bem elaborada, Miriam Mambrini demonstra talento de sobra.

Precisávamos correr. Exigi do velhinho mais celeridade na exposição dos comentários. E ele se pôs a gaguejar: “Nilma Lacerda é outra narradora vigorosa. ‘As linhas frágeis’ tem a força das águas correntes. E puxam o leitor para o abismo”. Gargalhei: “Deixe disso, Cleto. Não seja patético”. Sorriu e continuou: “É interessantíssimo esse modelo de short story: narrador conta estória, da qual também participa ou dela é testemunha. Logo adiante, outro ser fictício assume o lugar de apresentador do enredo. Aqui há uma narradora, em conversa com um homem (‘Não faça cerimônia, é só falar que me calo). Inicia o drama no presente (‘Estamos para entrar na barra, um pouco mais e o navio circunda o morro’ (...).

Tomei a palavra, para não permanecer apenas como ouvinte: “O leitor é conduzido ao terreno (no caso, ao convés da embarcação) da ilusão de uma viagem: ‘Tenho fascínio por esses fachos de luz cortando a escuridão’ (...). Ou seja, são dois episódios e dois narradores: uma no presente, outra no passado. E ambos se acham frente a frente, num barco, nas proximidades da ilha Rasa”.

Se eu deixasse, nossa conversa se estenderia por toda a tarde, entretidos com aquela boa invenção. No entanto, precisávamos nos dedicar a outra. E dei a ordem: “Analise a primeira composição de Sônia Peçanha. Não vá se alongar em demasia, pois ainda teremos Cristina Zarur, meu amigo Alexandre Brandão e Vânia Osório”. O ancião letrado se enervou. Tive medo de vê-lo estertorar no sofá e dar por encerrada sua missão na Terra. “Contenha-se, homem. E dê logo a aula”.

O vovô libertino se ajeitou no sofá: “Gosto de títulos em inglês, francês, italiano. Admiro essa competência de nossos escritores. Você mesmo elaborou algumas pérolas com nomes em outras línguas”. “É verdade”. E citei ‘Avisserger megatnoc’, ‘Basma xikga’, ‘Ecce homo sapiens’, ‘Jingle Bells’, ‘Lentus in umbra’, ‘Mea culpa’, ‘Mon amour’, ‘Never more, ‘Urbi et orbi’ e ‘Vers sans rimes’. O decrépito visitante interrompeu minha fala: “Basta! Basta! Se deixar, você não para mais de se referir a si mesmo, seu vaidoso”.

Aproveitei a oportunidade, e me devotei à arte de Sônia: “Não avaliarei o enredo, que isso fica para crítica de romance. Ficarei na linguagem e na estrutura. A contista tem a sobriedade e a clareza dos bons escritores. Frases curtas (ou longas, quando preciso) e objetivas arrastam o leitor para o durame da obra. Só um exemplo: ‘E então o telefone toca. O cachorro do vizinho desata no latido habitual. Ana, o garfo que enxuga, espetado no ar. Dani tem vontade de rir. Que Ana parecia uma maestrina descabelada, regendo um coro de fantasmas’. Sem precisar de explicações, a narradora vai da narração à descrição e ainda insere falas, sem necessidade de aviso ao leitor, como se anunciasse: Agora fulano irá se manifestar”.

Fiz nova interrupção: “E onde você descobriu a origem do título?” Cleto não perdeu o ritmo: “Lá pelo meio da intriga, após a chegada do pai de Daniel ao apartamento onde se encontram... Bem, isso não interessa agora. O pai ‘coloca um CD e aumenta o som’. Daniel gosta da música. O pai explica: Pink Floyd.

Mais alguns minutos de atenção ao “Wish you were here” e logo chegamos à ficção de Cristina Zarur. Tomei a palavra: “O ambiente descrito não se assemelha ao dos apartamentos classe-média ou das casas pobres: ‘O corredor da casa era comprido como uma avenida’. A protagonista se chama Memei, tem um fusquinha e vive na mais cômoda rotina. O título virá disso: “O canto das pequenas coisas”. Vivem na casa, além dela, o marido e os filhos jovens. Moram em cidade da costa: ‘Um domingo ensolarado, bom para ir à praia’. Como em muitas histórias de suspense e mistério, o leitor é conduzido, pelo narrador onisciente, ao chamado estranho ou à fuga da rotina do personagem principal. E logo se põe a imaginar aventuras. Ou desfecho trágico”.

O escrevinhador de resenhas interrompeu minha fala: “Parece-me faltar algo, além da camisola de Memei”. Sugeri café. O polemista do Benfica não gostou da ideia. Achou-a ardente para aquela hora. Preferia suco gelado. “Graviola ou sapoti?” Chamei minha secretária. Deitei o livro na mesinha. A moça apareceu, a se rebolar aos olhos do ancião. Cantarolei uns versos antigos e enfiamos os olhos nos copos. Saciados, voltamos ao artefato de papel.

Fui categórico: “Agora você terá pela frente meu amigo Alexandre. Se, por acaso, fizer papel de professor exigente, serei o seu censor”. Meu convidado sorriu: “Não, não admito mais censura. Sofri na ditadura de Getúlio Vargas e na dos militares de 64. Estou farto disso”. Sondou o infinito, calado, e voltou a tagarelar: “Gosto também desses títulos extraídos do próprio texto: ‘André seguiu adiante’. Está no final da trama. André é o segundo ator. O primeiro (o narrador) não se identifica. Dirige carro por estrada e só pensa em Maria. O outro não conhecia o motorista; pedira-lhe carona. E assim se narra um passeio, sem aventuras (embora o veículo trafegasse em alta velocidade) e sem mistérios. Ou haverá algum enigma em Maria ou no próprio André? Ao leitor resta ler e reler. Ou apenas mudar de página”. Fiquei desconfiado: “Não gostou também desse?” Meu comensal não deu resposta: “Vamos logo à última peça?”

E tomou a palavra: “‘O coração do mapa’” terá sido escrito por Vânia Osório a partir do título da seleta? É bem possível”. Fez uma pausa e atacou: “Outro conto extremamente espichado, repleto de pessoas, com excesso de ações, tempo longo demais, situações diversas. Salvará a estória, talvez, o mistério de Felizberto, filho de Luís Bento e Tonha. Não há referência ao nome da cidade onde moram. Possivelmente no sertão nordestino: ‘Li sobre a seca aí, que está pior que nos outros anos’. Quase todos os filhos tinham ido embora para longe, em busca de emprego ou vida melhor. Menos Gertrudes, ‘que era meio ruim das ideias’. Pelo visto, mais uma tragédia de retirantes nordestinos”.

Irritei-me: “Pelo visto, meu caro Cleto, os sete escritores cumpriram o compromisso de elaborar relatos de viagem. Cada um com seu modo de narrar. E se saíram bem. O impresso traz 14 momentos bem interessantes, espécie de passeio pelo Brasil”.

Íamos ainda devassar o restante do opúsculo. Contemplei o céu e não vi mais claridade solar. Sugeri a meu dileto êmulo outra tarde, durante a qual pudéssemos concluir o trabalho. Fez ouvidos de mercador e se despediu, sem entusiasmo.

Fortaleza, 2/3 de dezembro de 2013.

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