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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

No caminho de Marcel Proust (Franklin Jorge)



 
Seria melhor voltar para casa. Mais cedo ou mais tarde, ao mergulhar nas águas sulfurosas do seu romance-rio, todo leitor de Proust repete essas palavras premonitórias da duquesa de Létourville. De fato, seria mais tranqüilo ficar em casa, protegido pelo hábito, do que perder-se nessa Busca labiríntica laboriosamente construída por um asmático.

Guiado pelo instinto que aclara a obra, Proust sente o prazer do real capturado pela imaginação. Criou Bergotte, escritor cujas frases elegantes não teriam sido evidentemente possíveis sem fundas sondagens interiores e, ao fazê-lo, revelou-se um escritor diferente dos outros escritores que pareciam profundos por não escreverem tão bem. Sintetizou o realismo como uma reação à arte até então admirada e percebeu que, em sociedade, as novidades só horrorizam quando não são assimiladas.

Escritor impressionista, um raio do poente sugere-lhe instantaneamente uma época esquecida de sua infância em Illiers-Combray, no quarto-útero de sua Tia Leónie, eternamente recostada com a sua hipocondria sobre travesseiros macios, embebendo o pedaço de madalena no chá de tília, num gesto ritual que deflagra, postumamente, a memória involuntária de Marcel, para quem um livro eivado de teorias é como um objeto com etiqueta de preço.

No cinema proustiano, a arte tátil, fragmentária, prescinde de manifestos. Prisioneiro em seu quarto forrado de cortiça, sufocado pela asma e fumigações, Proust trabalha com a atitude modesta de quem não exige salário, porém o faz com a satisfação irritante de um doente a gabar-se de boa saúde, ao experimentar o prazer de descobrir coisas ridículas – um dos privilégios do artista, expresso no olhar circular de Proust, um autor que conheceu a noturna solidão dos leitores e a magia ilusionista da literatura.

Era contra a arte popular, ideia – como a da arte patriótica –, ainda que não fosse perigosa, lhe parecia sumamente ridícula. Predestinada a satisfazer o ócio e a curiosidade desses senhores que freqüentavam o Jockey Club e se compraziam em espionar através do folhetim literário o pitoresco da pobreza. Como os pobres, por sua vez, espionam a vida dos ricos.

Proust compreendeu que os livros verdadeiros se geram não na diurna luz e nas palestras, mas no escuro e no silêncio. Disso resulta a diabólica acuidade proustiana na composição de personagens como o Barão de Charlus, paralítico e polido, reduzido em sua capacidade de fazer o mal; sem dispor dos meios necessários para exprimir a maldade, parecia bom ao limitar-se a enumerar longamente todos os membros da família ou de suas relações de amizade, há muito falecidos, satisfeito de sobreviver-lhes. Assim, através da morte alheia, tomava consciência de sua própria vida.

Distinguiu os homens entre tolos completos e os completos gozadores e intuiu que o telefone é o símbolo das comunicações que nunca se realizam. Tinha a impaciência dos homens inteligentes demais. E inquiria como um velho que, sem memória, pede de vez em quando notícias do filho morto. Não teve a tentação de produzir as mesmas obras que admirava. Parodiou-as com o prazer egoísta do colecionador.

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