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segunda-feira, 31 de março de 2014

Eu te saúdo, ó Mestre (Nilto Maciel)





Todo santo dia, Cássio Botelho sai de casa, aí pelas 11 horas, e se dirige a um restaurante. Procura os menos concorridos. Evita filas. Dá uma olhadela nas carnes e se decide por esta ou aquela. Às vezes, a gula o trai e ele deixa o prato pela metade. Sua intenção é nunca se repetir, além de mastigar bem e ter prazer: hoje peixe frito, amanhã carneiro cozido, noutro dia frango, e assim por diante. Senta-se o mais distante possível dos comilões. Conhece o mais profundo asco de pessoas que se comportam como porcos, cachorros, gatos: a cara enfiada no prato. Tem pavor de certos comportamentos dignos de guerreiros romanos ou medievais: enfiam o garfo nas carnes (de animais assassinados), como se matassem feras (cheios de ódio).

Ontem, contudo, experimentou outro tipo de refeição. Preparou o prato, submeteu-o à balança, entregou à atendente um cartão de débito e caminhou até a mesa mais próxima. Ao seu redor, casais se lambuzavam de picanhas; grupinhos de empregados de empresas se apressavam a devorar coxas de frango e costelas de porco; senhoras ruminavam, com demora e paciência, arroz regado a caldo de carne. À sua direita, ninguém. À esquerda, nenhum ser humano. À frente, nada, além de solidão. Mais de dez mesas completamente desocupadas. Sentiu-se quase feliz.

Coitado de Cássio! Mal a breve e pífia felicidade se acercava de seu prato, acomodou-se um sujeito ao seu lado (à mesa havia quatro acentos, assim como nas demais). Não pediu licença (pelo menos, não ouviu Cássio tal pedido) e se abancou. A vítima deu uma espiada no intruso: poderia ser um amigo, um conhecido, uma simpática senhora solitária. Não o reconheceu. O ilustre cidadão meteu duas ou três garfadas entre os dentes e puxou assunto: “O senhor viu o caso dos médicos cubanos?” Cássio não entendeu o motivo da pergunta. “Não, não vi”. Então o outro se apresentou, como para se dizer sabido, instruído, capaz de ter ideias: “Sou médico, formado pela Universidade Federal et cetera e tal”. Cássio não falou de sua formação acadêmica nem de sua dedicação à literatura. Para quê? Alguns continhos impressos, dois ou três leitores, desilusões. Enquanto isso, o desconhecido se dedicou a expor teorias e mais teorias, a respeito da vinda de médicos cubanos ao Brasil. “São os comunistas brasileiros ajudando os comunistas cubanos. Uma vergonha, uma safadeza, um insulto a nós médicos e brasileiros em geral”. Cássio pediu licença e se afastou. Não conseguiu almoçar direito e retornou à sua casa, quase com fome.

No mesmo dia, na parte da tarde, encaminhou-se a um shopping. Pretendia comprar canetas, envelopes, visitar uma livraria e degustar suco de cenoura com laranja. Depois de muito decifrar títulos e nomes, optou por 14 contos de Kenzaburo Oe. Sentou-se a uma mesinha na praça de alimentação e retirou o livrão do saco plástico. Em casa, à noite, leria uma peça. Pediu o suco desejado e aguardou o garçom. Nesse esperar, passou por ele uma jovem. Devia ter 18 anos. Contemplou o impresso, seguiu, virou a cabeça e, por pouco, não esbarrou noutro transeunte. Minutos depois, reapareceu. Deve ter dado uma volta completa pelo quadrado de lojas do segundo andar. Pois, para desassossego de Cássio, de seu pobre coração sofrido de amor e desamor, aproximou-se devagar de seus olhos a mocinha. Sorriu e seguiu. Logo, porém, regressou. E tomou assento à frente do solitário leitor. Apoderou-se dele um medo estranho, quase um pressentimento ruim. “O senhor conhece Kenzaburo Oe?”

Em dez minutos, tomou ciência de um resumo da curta vida da estudante: tinha 17 anos, pretendia ingressar na universidade e gostava de literatura, principalmente japonesa. A carinha dela seria de filha, neta, bisneta ou trineta de japoneses. O garçom fazia piruetas entre as mesas. Cássio lhe ofereceu (à jovem obviamente) suco. Ela aceitou e ele chamou de novo o serviçal. A seguir, percebeu-se Cássio cercado por dois desconhecidos. Disseram-se agentes da polícia (delegacia da criança e do adolescente). “Fomos informados de que havia aqui um senhor idoso com uma menor.” O desconhecido escritor levou um susto daqueles. “O senhor sabe que está a praticar crime hediondo?” A mocinha se explicava: “Estamos conversando sobre livros. Deve estar havendo um engano”. Um dos espiões, com cara de idiota, sorria: “Não importa o motivo da conversa. A lei é clara. Aproximar-se de criança ou adolescente é crime conhecido como estupro de vulnerável”.

Cássio lembrou-se do almoço, do médico anticomunista e teve vontade de desaparecer. Doou o objeto à japonesinha e se pôs a andar, seguido pelos policiais. Convidaram-no a conhecer o carro deles, estacionado no subsolo. Depois de muita conversa, exigiram dez mil reais, em troca da liberdade. “E se eu não aceitar a extorsão e os denunciar ao delegado?” Eles gargalharam: “Faça isso. Verá se o delegado acredita em nós ou em você”.

O duplamente enganado cidadão rumou na direção de um banco (os dois espiões ao seu lado, sempre) e executou o saque da quantia exigida. Antes de se despedirem, fotografaram-no (como garantia), apertaram suas mãos (como se fossem amigos) e se afastaram sorrateiramente. Cássio Botelho fechou os olhos e, como em relâmpago indesejável e sacrílego, recordou uma imagem antiga, uma cena célebre e milhões de vezes repetida: ‘Então, aproximando-se rapidamente de Jesus, disse-lhe Judas: Eu te saúdo, ó Mestre! E lhe deu um beijo’.

Fortaleza, 29/30 de março de 2014.

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