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segunda-feira, 24 de março de 2014

Minhas memórias dos outros sobre o “Contestado” (Enéas Athanázio)




 
A chamada Guerra ou Campanha do “Contestado” aconteceu entre 1912 e 1916, de modo que só uns trinta e tantos anos depois é que tomei conhecimento dela. Tudo o que sei a respeito veio dos livros e de informações de outras pessoas, mas é a estas que desejo me ater neste comentário, para que não fique uma coisa livresca como tantas.


Por circunstâncias da vida, nasci e cresci em localidades ligadas, por algum motivo, a esse movimento, e assim ouvi referências a ele muito cedo. Observo desde logo, porém, que o povo o designava por “Revolta dos Jagunços” e jamais por “Contestado”, nome que lhe atribuíram os historiadores e que não foi feliz, uma vez que parece indicar uma guerra entre Santa Catarina e Paraná, como muita gente imagina e até já encontrei em apostilas colegiais. Na verdade, a questão de limites entre os dois Estados, coincidente com a guerra e uma de suas causas, nunca passou dos Tribunais e abrangia área menor que aquela onde se desenrolou a luta.

Por muitos anos meu padrasto foi funcionário da célebre Companhia Lumber (Southern Brazil Lumber & Colonization Company), pertencente antes ao grupo de Percival Farquhar e já “incorporada” ao patrimônio nacional, apontada como uma das causadoras da revolta, e contra a qual se voltava o ódio surdo do povo, mesmo depois de tantos anos. Ele prestava seus serviços na vila de Calmon, hoje município, situada às margens da Rede Viação Paraná - Santa Catarina (RVPSC), cerca de sessenta quilômetros ao sul de Porto União. Ali a Companhia mantinha uma de suas sedes em Santa Catarina, ficando a outra em Três Barras, na época distrito de Canoinhas, ambas administradas pela direção geral, no Rio de Janeiro. Nessa época a sede de Calmon pouco ou nada realizava, limitando-se a conservar o imenso patrimônio em terras, pinheiros (araucárias) e madeiras de lei. Na área da colonização, limitou-se a vender alguns terrenos, e mesmo assim de forma algo suspeita, tanto que um dos administradores acabou demitido por esse motivo. O reflorestamento, pelo que me lembro, nunca foi levado a sério e a própria serraria só funcionou de forma permanente nos últimos tempos, quando a empresa estava prestes a mudar de mãos. Foram administradores do setor de Calmon, nesse período, o carioca Murilo Mavignier Colin e o americano Ernesto Bishopp.

Este último era uma figura folclórica. Solteirão, vivia só num imenso casarão um tanto afastado da vila e consumia seus dias dormindo, lendo Érico Veríssimo e tomando cervejas. Dizia-se que consumia 45 garrafas numa noite, o que talvez fosse exagero, mas o fato é que todas as lembranças dele retratam-no ao lado de algum balcão, com as bochechas arroxeadas e uma descomunal barriga.

Calmon, segundo consta, deve seu nome ao ministro da Viação Miguel Calmon Du Pin e Almeida, engenheiro que exerceu esse cargo muito jovem e que fôra colega do escritor Lima Barreto, na Escola  Politécnica do Rio de Janeiro. Por ele o escritor tinha incoercível aversão, destinando-lhe as maiores ofensas durante suas bebedeiras e até ameaçando-o das formas mais ridículas, como a de comprar uma espada para matá-lo. Não satisfeito, pintou-o de maneira negativa nos seus escritos, em especial no conhecido panfleto “O Ideal de Bel-Ami”, hoje recolhido às suas Obras Completas, e no qual comparava o antigo colega ao célebre personagem de Maupassant.

Pois bem. Em função do emprego de meu padrasto, muitas férias do Colégio passei em Calmon, ouvindo as histórias dos jagunços e conhecendo lugares relacionados a episódios da guerra.

Conheci o local onde se situava a serraria da Lumber, a antiga. Um chapadão descampado, à direita da ferrovia, onde funcionava a imensa indústria, uma das mais modernas daquele tempo, creio mesmo que só superada pela de Três Barras, e que devorou florestas incontáveis, desmatando sem piedade e com grande desperdício a região. Toda ela, incluindo enormes estoques de madeira serrada, toras e dormentes, foi queimada pelos jagunços, com o fogo que a devorou ardendo por dias e noites, as labaredas iluminando a vila cercada de morros e o sertão em derredor. Segundo os comentários que ouvi em criança, o espetáculo promovido pela fogueira descomunal foi impressionante e dele as pessoas que o testemunharam jamais esqueceriam. Ainda pude ver peças de máquinas da indústria, importadas, calcinadas pelo fogo e que resistiam à intempérie a que estavam relegadas.

Nas proximidades, com águas viscosas e escuras, abria-se grande poço onde o povo comentava terem sido encontradas ossadas de pessoas decapitadas nas terríveis degolas a facão. Nesses meus dias de criança o poço ali permanecia, cercado por um tapume, como testemunha muda de dias trágicos. Chamavam-no de “Poço dos Jagunços” e creio que foi atulhado.

As principais casas da vila também foram incendiadas, inclusive a residência dos pais de meu padrasto, forçados a fugir com a família para abrigar-se em Porto União, cidade que chegou a correr sério risco de invasão pelos fanáticos e cuja ocupação constava de seus planos. No mesmo local dessa casa, numa esquina próxima do pátio da estação ferroviária, foi erguida outra – a Casa Verde – onde funcionaram por muitos anos os escritórios da Companhia e residiu o administrador Murilo Colin.

Conheci também, em Matos Costa, o local onde o capitão Matos Costa teria sido morto a golpes de facão pelos jagunços, à margem dos trilhos e perto da antiga estação. Ficava cerca de três quilômetros ao norte, mais ou menos no ponto em que a estrada velha cruzava sobre os trilhos, segundo os mais antigos moradores. O valente capitão Matos Costa comandava os soldados com os quais acabava de chegar e havia desembarcado, marchando ao lado da composição, quando o trem que os conduzira foi atacado de surpresa por grande número de jagunços. Desnorteados pelo ataque repentino, na escuridão da noite, refugiaram-se em baixo dos vagões e tentaram resistir. Sem saber como agir, o maquinista apavorado teria posto o trem em marcha-a-ré, esmagando e ferindo muitos soldados. Foi uma carnificina, não apenas por isso, mas também pelo ataque violento e inesperado.

Existe também a versão de que o trem, desgovernado, recuou sozinho e ganhou velocidade, o que me parece pouco verossímil porque não existe descida forte no local e os lerdos trens de então não se embalavam com tal facilidade. O prof. Estevão Juk, conhecedor do assunto, inclinava-se pela primeira hipótese.

Por essa razão, homenageando aquele militar, a antiga São João dos Pobres passou a se chamar Matos Costa. Nas cercanias dessa cidade conheci lugares onde aconteceram violentos combates. A vila de então foi totalmente destruída pelo fogo e muita gente assassinada.

Esse recanto do Estado ficou empobrecido pela guerra e pela devastação. A multinacional e suas sucessoras sugaram tudo que puderam e nada deixaram em troca. Nem uma estrada, um hospital, uma escola, um clube, uma instituição qualquer que servisse àquele povo cuja força de trabalho exploraram por tantos anos. Como diziam as pessoas de lá, só deixaram montes de serragem e...aleijados de serraria.

Em Campos Novos, minha cidade natal, corriam muitas histórias sobre o “Contestado”, acontecidas por lá, em Curitibanos e outros locais da região. Lembravam-se muito as proezas dos Doze Pares de França e do temível Adeodato, também mencionado como Leodato, mas tudo um tanto vago e difuso, dando a impressão de que aquela revolta se confundia na consciência coletiva com tantas outras que por ali passaram. Dizia-se que o monge “São” João Maria, maltratado por algumas pessoas, teria praguejado minha terra, desejando que se transformasse num grande “purungal”. Felizmente, porém a suposta praga não pegou.

Para os lados do Fundo Grande, onde meu avô tinha fazenda, erguia-se numa encruzilhada dos campos uma capela votiva ao referido monge. Sobre seu altar, sempre florido e recoberto de brilhantes toalhas de crochê engomado, feitas pelas mulheres da redondeza, ardiam grandes velas. Foi nela que vi pela primeira vez a foto do monge, sentado, com as pernas cruzadas, calçando sandálias e tendo na cabeça o gorro de couro de jaguatirica que se tornou sua marca. Naquele local, segundo o povo, ele pernoitou, orou e pregou. As águas de um córrego campeiro próximo à capela teriam poderes curativos.

Em Campos Novos, por volta de 1910, teria aparecido pela primeira vez em Santa Catarina o monge José Maria – o monge guerreiro – originário do Paraná. Ou, pelo menos, foi então notada sua presença.

Dois sentimentos populares me pareceram constantes em relação à sangrenta “Guerra do Novo Mundo.” Na região de Calmon e Matos Costa, o rancor generalizado contra a Lumber e os “americanos”, aí se incluindo administradores e funcionários graduados, entre eles os que vinham de Três Barras e do Rio de Janeiro. Em todos os lugares, de um modo geral, era perceptível o misto de medo e admiração por Adeodato e suas atrocidades, cujo nome “fazia criança dormir.”

Resta escrever sobre os livros e ensaios inspirados pelo “Contestado”, que são numerosos, na história, na ficção e na poesia, mas isso é matéria para, quem sabe, outra ocasião.
Como neste ano se comemora  o centenário da invasão e incêndio do povoado de Calmon pelos revoltos, a 5 de setembro de 1914, creio que estas lembranças da pré-história de minha vida podem interessar aos leitores que apreciam o assunto.

Faço ainda uma observação. Tenho lido em vários lugares referências aos “turmeiros” como se fossem os trabalhadores braçais da estrada de ferro. É um equívoco. Turmeiros eram os “conservas” da ferrovia, que residiam em pequenas vilas situadas entre as estações e percorriam o trecho em vagonetes para a manutenção. Os trabalhadores braçais eram conhecidos como “arigós” e ainda conheci alguns deles.

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