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terça-feira, 22 de novembro de 2005

Duas antologias (Nilto Maciel)


Cidade e Caminho reúne contos de cinco escritores de Ituiutaba: Alciene Ribeiro Leite, Jair Humberto Rosa, Luiz Vilela, Rauer Ribeiro e Roberto Maciel.

A melhor qualidade de Alciene está na linguagem, trabalhada, concisa, produto de uma insistente busca da palavra e da frase apropriadas ao corpo do texto, como se se dedicasse a criar um corpo idealizado a partir de infinitas micropeças postas à sua frente. Realiza o verdadeiro trabalho de criação, ou seja, de escolha. Porque a realidade é um todo, cabendo ao artista a tarefa de captar ou capturar este ou aquele detalhe, esta ou aquela parte do todo, e a partir daí montar a sua reprodução microscópica do mundo. Estes detalhes (ou partes) são para o escritor as palavras. Nada mais do que elas.
Ao dominar a técnica de captação das palavras necessárias à criação do texto, a autora de O João Nosso de Cada Dia consegue desenhar e pintar os personagens dentro dos limites interiores de cada um deles. Os limites que a cultura impôs à escritora. O velho, então, é um velho, “quase personagem de ficção”, porque tão real quanto todo real velho.

No seu livro de estréia, Eu choro do palhaço, Alciene Ribeiro Leite apresenta narrativas bem estruturadas. A temática e a linguagem lembram Dalton Trevisan. Os dramas das pequeninas criaturas urbanas, sacudidas por devaneios, frustrações, medos e ousadias, que às vezes levam à presença das autoridades ou simplesmente dos curiosos e até dos carcereiros.

O livro de Alciene não tem ainda uma marca pessoal, como a têm contistas mais experimentados. E ela reconhece essa limitação de quem bota os pés na estrada pela primeira vez, fugindo da gaveta e do anonimato.

Outras peças do livro construídas de monólogos interiores, nas quais transparece a oralidade, não chegam a atingir a beleza técnica das "daltonianas", embora quase sempre o aprimoramento da técnica venha em desproveito da palavra, do pensamento e do ser-personagem. Porque a técnica é uma brida na boca do cavalo que quer correr selvagem e puro – a palavra. Mesmo assim, o mais comovente, o mais poético, o mais "selvagem e puro" conto do livro é o "Eu choro do palhaço". A partir deste conto pode-se dizer que o texto literário mais se aproxima da arte, quando punge, quando toca a chaga da alma do leitor. Porque antes pungiu com violência o ser do artista – que chorou com as personagens que criou ou recriou, cada um na sua dimensão. A dimensão do criador, a dimensão do criado. Mas essa delimitação de dimensões é apenas didática. Na verdade, o criador está no criado e vice-versa.

Jair Humberto Rosa se opõe ao modelo natural da criação artística. E subverte sua própria inclinação ou primeira pretensão para gerar imagens da realidade. Inverte o modelo de Alciene, para principiar o texto pelo personagem, que já é um todo, porque um ser, um mundo, uma realidade. Não o monta, peça por peça, mas o torna inteiriço, acabado, e o cerca da realidade maior. Lança um contra o outro, em catastrófica refrega. Seus personagens se esmigalham contra os muros do mundo. Daí não terem nomes, serem apenas imagens semelhantes dos outros, meros exemplares da edição humana. O original talvez haja desaparecido ou reapareça em edição luxuosa num futuro incerto. Mas o pessimismo do autor não acena com esta última hipótese.

Luiz Vilela, o mais conhecido dos cinco, também não se inscreve na escola professada por Alciene, e muito menos na de Jair. Se nela chama a atenção a linguagem quase cinzelada, no autor de Tarde da Noite é de admirar a mestria com que cria ambientes e situações. E, com é natural, os personagens se vão enriquecendo à medida que o texto é composto.

Rauer Ribeiro, autor de Lugares Intoleráveis, do qual foram extraídos os contos para a antologia, tem muito de Luiz Vilela, no que diz respeito à técnica de narrar. No entanto, sua visão se volta quase que exclusivamente para o sexual das personagens, o que o distingue dos demais contistas do livro.

Roberto Maciel também utiliza as mesmas técnicas narrativas de Vilela, embora se deixe levar pelo ímpeto da prolixidade, que pode enfastiar o leitor. É o caso do conto “Os caçadores”, cujo narrador, uma criança, conduz a narrativa ao seu bel-prazer, cheia de meandros, repetições, obscuridades. Certamente o autor quis que assim fosse, mas sobre as vontades do escritor há muito que se discutir. E, se o leitor discorda do autor, a obra não terá atendido à sua função comunicativa.

Resultado de um concurso de contos, Aqui e Agora é mais uma amostra da ficção curta brasileira do pós-64. São contos ou relatos de escritores jovens. Apresentam uma escrita a caminho do amadurecimento. Alguns, não fossem as biografias, poderiam até ser confundidos com escritores já amadurecidos no exercício de escrever prosa de ficção. A começar pelo relato original de Carlos Emilio Corrêa Lima. Em linguagem poética e apocalíptica, cria frases novas para a literatura brasileira, frases mágicas, como “eu quero libertar-me do medo de não continuar com as palavras”. Espécie de grito contra a castração gradativa e perniciosa da linguagem milenar do homem. Outros, como Elias Fajardo, Francisco Sobreira e Wallace Borges, apresentam contos sem grandes novidades formais. Mesmo utilizando a linguagem dos meios de comunicação, o segundo deles consegue dar uma força estranha ao conto, pela penetração nas profundidades da alma da personagem: um velho senador, ex-amante de cinema e especialmente de Chaplin, que morre após rever uma de suas películas, reencontrando o seu passado e descobrindo a sua consciência soterrada por anos e anos de dedicação ao poder outrora abominado por ele. Fajardo, na tentativa de literaturar sua angústia de homem fugido do campo para a cidade, faz apenas espécie de reportagem piegas, com informações aqui e ali sobre a vida no campo. A personagem não se delineia, como numa diluída autobiografia. Wallace, em pequeno conto realista, dá um salto sobre a maioria dos escritores de sua escola, desnudando magistralmente a alma das personagens soterradas na miséria da lama social.

Há no livro Aqui e Agora alguns contos merecem destaque pelo inusitado das situações ou da vida das personagens, apesar de uma aparente vulgaridade. É o caso da narrativa de Fernando Vaz. Outros apresentam situações e momentos em que as personagens são simples joguetes na sociedade, quer como míseras pessoas numa fila do INPS, quer como artistas em fim de carreira, como no conto de Inez Barros. Em “Madrugada Provisória”, de Hugo Zorzetti, as personagens, ou figuras apagadas à luz morre-não-morre de um poste de iluminação pública, discutem sua condição de “segurados da previdência social” e chegam à conclusão de que são humilhados e espezinhados por uma força invisível: o aparelho burocrático da assistência médica do Estado. Chegada a manhã, terminam conformados, desconhecidos entre si, desiludidos da própria força descoberta na noite e desunidos diante da crua realidade do dia – a peia do trabalho assalariado.

A “pequena crônica” antiantropofágica de Silvio Fiorani – a metáfora da histórica “deglutição” praticada por nossos índios, prato delicioso para os colonialistas europeus – pode ser muito bem alinhada aos relatos borgeanos. O conto de Yêda Schmaltz, apesar da utilização demasiada de letras de música, mesmo proposital, e das opções para o “fim” do conto (nenhuma novidade), prima pela riqueza das situações e das frases bem feitas. A narrativa de Ricardo Leitão não chega aos calcanhares dos demais, parecendo mais uma tentativa adolescente de escrever.

Ao final das contas o saldo é positivo, mesmo levando-se em conta tratar-se Aqui e Agora de uma coletânea resultante de um concurso. Não chega a ser a expressão do conto brasileiro dos anos 1970, mas apenas mais uma amostra dele. E, como tal, tem seus defeitos.
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