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quinta-feira, 20 de março de 2014

Sessão da tarde (Patricia Tenório)




Era um ladrão bem desligado. Esquecia as armas do ofício em casa, na mesa de bar, na cantina da escola, onde trabalhava meio expediente para ajudar com as contas do mês.

terça-feira, 18 de março de 2014

Notícia de Portinha Aberta (Nilto Maciel)




O sujeito cultiva bigodinho semelhante ao de Fernando Pessoa, usa a cabeleira de Castro Alves e se veste como Dorian Gray. Redige “artigos” ou “ensaios” de tão difícil entendimento que nem o mais sábio dos homens consegue entender. Apesar disso, nunca recusaram uma só de suas pérolas. Pleiteia vaga na Academia Brasileira de Letras. Sonha também com o Prêmio Nobel de Literatura. Imagina-se traduzido para duzentas línguas. Copia daqui uma frase, dali uma informação, dacolá um comentário. E arranja títulos pomposos: “A influência de Kafka na poesia de Ferreira Gullar”; “Ariano Suassuna e os moinhos de vento”; “Do grão de areia ao pequeno príncipe – um retrato de Guimarães Rosa”. De seu passado restaram duas ou três afirmações (por ele negadas): abandonou a escola, ao chegar às Montanhas Rochosas; da primeira à décima namorada, leu meia dúzia de sonetos parnasianos, três contos (numa revistinha em cuja capa se viam seios fartos de fêmea loira) e algumas páginas de romance (tradução brasileira), de autor desconhecido. Apresenta-se, a editores de jornais impressos e revistas eletrônicas, como ex-colunista do blog Senta a pua na letra; ex-editorialista da folha O lance de dados; tradutor da poesia de Dante Alighieri (de estrofe de uma tradução brasileira da Divina Comédia substituiu substantivos por adjetivos e verbos). Todo dia, jornais o exibem ao lado de acadêmicos federais e romancistas famosos no mundo inteiro. Seu “estilo debochado”expressão cunhada por um doutor em línguas neolatinas – seria resultado da intensa mesclagem de idiomas latinos com línguas aglutinantes, além de sânscrito (ou são cristo, segundo ele mesmo) e hebraico. Tem anunciado um romance: A vida de padrinho Cicerone nos confins da estrela guia.

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quinta-feira, 6 de março de 2014

Dois capitulinhos (Nilto Maciel)





Confúcio Galvez lembrava um galo: penas coloridas e esvoaçantes, bico afiado, esporões de aço, andar de príncipe britânico, voz de cantor de ópera. No entanto, não pensava em homem, não bicava ninguém, não esporava nem o vento, não morava em castelo e mal sabia “Touradas em Madri”. Arriscava umas frases: “Eu fui às touradas em Madri e quase não volto mais aqui”. Desafinava; riam dele. E cresceu assim, com ares de ave e chão de estrelas. Sempre de bico aberto: “Minha vida era um palco iluminado”. Andava pelo morro, subia e descia ladeiras, de olho nas cabrochas com latas d’água na cabeça, “Sobe o morro e não se cansa, lá vai Maria”. Experimentou rabiscar letras e rimas. As melodias, noites mel dormidas. Talvez doces, quem sabe azedas. Também sambou, desengonçado feito mamulengo. Viajou a Recife e encontrou o povo a pular nas ruas. Diante do frevo, extasiou-se: queixo caído, vestimenta de lorde, pés em transe. As meninas pareciam franguinhas ao sol do meio-dia. Misturou-se aos dançantes e se abrigou à sombra do homem da meia-noite e dos mil e um bonecos de pano. Entre passos e pulos, terminou grudado a certa pintassilga. Passado o carnaval, buscou outras mulatas, cavalgou mulas sem cabeça pelos sertões de Minas, perdeu-se em labirintos, maravilhou-se à frente da dança frenética dos bilros do Ceará e se fatigou de tanto vadiar. Então se casou com Camilinha Petres. E tiveram muitos filhos.

E assim se encerra esta história colorida. Porém, se inicia outra. A tragédia. Pois o tal Confúcio Galvez resolveu mudar de vida, ao se sentir relegado aos cantos da própria casa. Por todos os lados, televisões, computadores, celulares, viagens de Camilinha (tornada Camilona e gorda). Confúcio procurou as penas coloridas e nada encontrou, a não ser uma peruca dourada. E foi embora pra Pasárgada. Tempos depois, aborrecido de sonhar, voltou às ruas da infância e da juventude.

Em outro fevereiro, se enfeitou de urubu e conheceu Dalva de Oliveira, senhora alegre, mas nem tanto.  E lhe contou num dia o equivalente a cem anos de solidão. Casara-se com fulano, blablablá; passara a infância na serra da Meruoca, blebleblé; nascera filha, bliblibli; o fulano vivia com sicranas e beltranas, bloblobló; beberam umas cervejas, blublublu. O bicho velho se recordou, então, dos tempos de terreiro cheio de galinhas e franguinhas e quis ser galo de novo. No dia seguinte, reparou bem a filha de Dalva, grávida de alguns meses. Conversaram e cantaram durante noventa dias e noventa noites, até nascer linda menina. E, alguns anos depois (para encurtar o blablebli), ocorreu o capítulo trágico da vida de Confúcio. Blo-blu.

Fortaleza, 4 de fevereiro de 2014.     

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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Natal de cada um (Nilto Maciel)



 
Chapeuzinho Vermelho beijou papai e mamãe, deitou-se na caminha e se preparou para dormir. Papai e mamãe se afastaram da menina, fecharam a porta do quarto e se esgueiraram pelos cantos. Feito gatos borralheiros, iriam tocaiar monstros, enquanto não dormissem.

À meia-noite, Papai Noel subiu ao telhado da casa, encontrou a telha vã e avistou o corpo dormido da garotinha. Alisou a barba, lambeu os beiços e se pôs a descer pelo escuro, feito rato de botas.



domingo, 22 de dezembro de 2013

Presentes de Natal (Luiz Martins da Silva)



Cena I

Pai:
– Filho, quero de você um presente!
Filho:
– Não enche, velho.

[Mas, naquele Natal o “velho” não ‘encheu’ e o filho não se drogou].


Cena II

Esposa:
            – Amor! Posso lhe pedir um presentinho de Natal?
Esposo:
            – Pode, não!

[Mas, naquele Natal o marido ‘não bebeu’].


Cena III

Neto:
            – Vô, você vai aparecer na Noite de Natal?
Avô:
            – Querido, eu trabalho de Papai Noel...


[Mas, naquele Natal, o “bom velhinho” foi o próprio Vovô].


Cena IV

Namorado:
            – Amor! Neste Natal, adivinha o que eu quero!
Namorada:
            – Sem camisinha, não vai rolar!

[Mas, naquele Natal, fizeram um teste de HIV].


Cena V

Doente:
            – Na Noite de Natal, me dê um sonífero!
Enfermeira:
            – Pode deixar, você vai sonhar com Papai Noel!

[Mas, naquela Noite de Natal, houve confraternização no Hospital].


 Cena VI

Assaltante:
            – Criança! Avise lá que o Papai Noel chegou!
Criança:
            – Mãe! Tem um homem lá fora, dizendo que ele é Papai Noel!

[Mas, naquela Noite de Natal, o assaltante virou convidado].


Cena VII

Carcereiro:
            – Indulto de Natal! Feliz Natal!
Preso:
            – Adeus! Feliz Ano Novo!

[Mas, depois daquele “saidão”, o beneficiário retornou].


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domingo, 24 de novembro de 2013

Pão (Clauder Arcanjo)




 “A prosperidade, assim como a depressão, também cria as suas filas de pão.”
(E. B. White, em Aqui está Nova York)

Migrara para a grande cidade em busca da riqueza. Mas, veio a depressão, e tudo — sonhos, esperança e vagas — foi para o ralo, na correnteza da crise.
Hoje, a metrópole, feericamente iluminada, palpita. As manchetes dos jornais, em letras graúdas e escuras, anunciam o boom do crescimento — sonhos, esperança e vagas a desfilarem pelas ruas e avenidas. No caso de Silveirinha, na longa fila do pão, restou-lhe tão somente a crise, renhida crise, da prosperidade.

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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Viajante (Clauder Arcanjo)

“Esses homens talvez morram com uma tremenda quilometragem a seu crédito, mas nunca foram a lugar nenhum”. (E. B. White, em Aqui está Nova York)


Quando criança, o choro. Chave para subir nos braços da mãe e caminhar. Pra lá, pra cá. Pra cá, pra lá.
Jovem, a decisão: pé na estrada. A descobrir novos horizontes, segredo para entrar nos céus de outras cidades. Pra lá, pra cá. Pra cá, pra lá.
Adulto, a escolha do meio de vida: viajante. Com a bolsa de produtos a tiracolo, a descobrir clientes. Pra lá, pra cá. Pra cá, pra lá.
Hoje, cansado, olhos baços postos nos chinelos puídos, e uma dor no peito magro. Preso no asilo, e com a cadeira de balanço a ringir, ao sabor da monotonia. Pra lá, pra cá. Pra cá, pra lá.

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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O livreiro (Clauder Arcanjo)



Para Ronaldo Cagiano


Encimando a prateleira principal a frase, em letras góticas e vermelhas: “Um país se faz com homens e livros.” — Monteiro Lobato.
A mulher sempre a queixar-se do ramo que abraçara. “Nós vamos morrer de fome, Zacarias. Este é um país de analfabetos, homem!”
O negócio aberto pontualmente às sete da manhã. Aproveitava o vazio das primeiras horas para limpar os volumes expostos. Lá, o encontro com Machado de Assis, Dante, Eça de Queirós, Shakespeare, Balzac, Victor Hugo, Dostoiévski, Herman Melville, Gregório de Matos, Goethe, Cervantes, Camões... Velhos companheiros, sob uma fina camada de poeira.
O ajudante Nicolau Bartolomeu estranhava por que Seu Zacarias sempre escolhia arrumar a estante menos visitada.
— É ela que precisa de um bom espanador, meu caro. Os demais são sempre limpos pelos próprios dedos dos incautos!

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