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terça-feira, 8 de abril de 2014

O estranho telefonema (Carlúcio Bicudo)




Tudo transcorria na mais perfeita paz. Na sala, Veridiana lia o livro Mistério de Marie Roget, do grande escritor Edgar Allan Poe.
O enigmático livro tem por base um fato verídico ocorrido em 1841, nos arredores de Nova York, com o aparecimento do corpo da jovem Marie Roget.
Poe acabou ficcionando e ambientando a trama da história na cidade de Paris.
Veridiana, muito empolgada, degustava cada palavra, linha ou parágrafo, como se fosse a última coisa a ser feita na vida. Lá fora, o tempo estava fechado. Uma ventania soprava um ar aquecido e com ele o cheiro de terra.
Já era tarde, final de sábado. Ela estava sozinha. Seu filho havia saído com amigos para uma festa.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Eu te saúdo, ó Mestre (Nilto Maciel)





Todo santo dia, Cássio Botelho sai de casa, aí pelas 11 horas, e se dirige a um restaurante. Procura os menos concorridos. Evita filas. Dá uma olhadela nas carnes e se decide por esta ou aquela. Às vezes, a gula o trai e ele deixa o prato pela metade. Sua intenção é nunca se repetir, além de mastigar bem e ter prazer: hoje peixe frito, amanhã carneiro cozido, noutro dia frango, e assim por diante. Senta-se o mais distante possível dos comilões. Conhece o mais profundo asco de pessoas que se comportam como porcos, cachorros, gatos: a cara enfiada no prato. Tem pavor de certos comportamentos dignos de guerreiros romanos ou medievais: enfiam o garfo nas carnes (de animais assassinados), como se matassem feras (cheios de ódio).

terça-feira, 18 de março de 2014

Ladrão de galinhas (Carlúcio Bicudo)


 

Quando eu morava no interior do estado do Rio de Janeiro, conheci um cabra safado, mais conhecido como “Manequinho, o ladrão de galinhas”. Morava às margens da BR 101, próximo a Itaboraí.

Todos os dias o diacho do Manequinho percorria as ruas com uma galinha embaixo do braço. Mas até, então, ninguém sabia que ele roubava galinhas dos sítios próximos.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Conversa de botequim (Carlúcio Bicudo)




— Bom-dia, Geraldo. Tudo bem com você?
— Mas ou menos, Alfredo.
— Pela sua expressão, estou vendo que a coisa não anda boa para o seu lado. O que foi que houve?
— Caro amigo, lá onde moro a bandidagem está demais. Todo dia tem um presunto na esquina... Minha mulher anda dizendo que irá me largar, caso eu não arrume um outro canto para morarmos.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

(Santos olhos) Clauder Arcanjo




Quase noite. Ela desceu do ônibus, deixando, atrás de si, um rastro de rútila incredulidade. Tudo por culpa daqueles olhos. Santos olhos.
A lotação logo saiu, e todos os passageiros seguiram com um quê de profundo abandono. Melhor diria: pior do que abandono. Com um jeito de quem, num piscar de vista, se viram órfãos, privados da luz guia, da estrela que lhes davam, ao fim de um dia tão comum, num cair de tarde tão burlescamente cinzenta, um ar de imperial e singela majestade. Pois haviam, suditamente, ao longo de várias ruas e avenidas da grande cidade, estado ao lado deles, daqueles olhos santos olhos. De tão belos, quase anormais.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Tô cansado! (Carlúcio Oliveira Bicudo)





                 
─ Alfredo, vá ao supermercado pra mim?
─ Ah, mãe! Estou tão cansado!
─ Ai... Ai... Cansado de que, Alfredo?
─ Mãe, a senhora pensa que não cansa ficar o dia todo batendo pernas?
─ Alfredo, você é demais, meu filho. Tão novo e já cansado. Pelo jeito, já nasceu cansado, não é?
─ A senhora diz isso porque não brinca com pipas e nem de pique de esconder. Queria ver a senhora disputando corridas com o Luís Pesão.
─ Deixe de bobagem, moleque! Tenho muito que fazer todos os dias. Lavo, passo, cozinho, arrumo a casa e, de quebra, ainda tenho que pôr você para tomar banho todos os dias.
─ Ué! A senhora não se cansa desta trabalheira toda?
─ Claro que sim, meu filho, mas tenho que fazer. Se não fizer, quem fará o meu trabalho?
─ Deixe para o papai fazer.
─ Seu pai? Coitado! Passa o dia todo pegando no pesado lá na fábrica. Quando chega em casa é mais do que justo que descanse para começar tudo de novo no outro dia.
─ Pois é, o meu pai, a senhora diz que vive cansado. E eu? Por que não posso me cansar? Afinal, todos os dias eu corro para esticar as pernas. Tento dominar o vento com as minhas pipas multicoloridas.
─ É, pelo jeito, você anda muito ocupado mesmo, não é filho?
─ E como! A senhora não sabe o trabalhão que dá  ficar contando carneirinhos ou descobrindo novos animais escondidos nas nuvens. E contar estrelas durante a noite, como é cansativo.
─ Já vi tudo. Eu mesma terei que ir ao supermercado. Esse menino, pelo jeito, anda com a mente ocupada demais.
 ─ Ainda bem que a senhora entendeu, mamãe!  Eu ainda tenho que descobrir um jeito de mudar as cores do arco-íris. A senhora não sabe o trabalhão que dá ficar pensando num jeito para que isso seja possível. Isso dá uma canseira!
─ Toma tento, menino, não tá vendo que isso é praticamente impossível?
 ─ Que nada! Já projetei novo modelo de casa para o João de Barro. Inventei um jeito de domesticar piolho.
─ O que você está falando, menino? Já estou ficando cansada de ouvir tantas asneiras. Você tá ficando é louco!
─ Louco não, mãe! Tô cansado!
                                                      
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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Corpo estranho (Paulo Lima)



Até o dia em que fez a terrível descoberta, Ana podia dizer que levava uma vida estável e satisfatória. Bom emprego, filhos já crescidos e um marido compreensivo e amigo. “Um companheirão”, era seu cartão de visitas sempre que se referia a ele, romantizando um casamento de vinte e cinco anos com raras manifestações de ciúmes de ambas as partes. Mas era mais velha que ele, e a diferença de cinco anos despertava o receio de que um dia ele pudesse trocá-la por outra mais jovem. Ela nunca discutia esses temores abertamente. Cuidava de manter a forma em dia, como um atleta que precisa estar sempre pronto para uma prova.  Encontrava uma brecha em sua rotina para ir ao menos duas vezes por dia à academia. Produtos especiais para o corpo ocupavam uma margem elevada em seu orçamento. Já passara por pelo menos três cirurgias plásticas para consertar alguma imperfeição que só ela via em si mesma. Se, ao se observar no espelho, notava uma nova ruga, entrava em pânico. O dia estava irremediavelmente perdido. Mas nada podia se comparar ao sentimento de pavor que a invadia, caso ela, explorando o próprio corpo, concluísse que a bunda já não exibia a mesma solidez. Tatear a si mesma buscando imperfeições era um hábito que ela cultivava da mesma forma como se cultiva um hobby ou esporte favorito.
            

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Os vizinhos (Caio Porfírio Carneiro)



                                      
            Cedo, ao sair, antes de entrar em casa, à tardinha, cumprimentava os vizinhos, tocando com os dedos no chapéu, numa postura e polidez que o quarteirão inteiro admirava. Curvava-se, em particular, para a vizinha do lado, que estava sempre à janela do andar superior. Senhora recatada, viúva, bem vestida, como se estivesse sempre pronta para sair. Serviam-se ambos de criadas, que chegavam cedo e saíam à tarde. Ela também cumprimentava a todos do alto da sua janela.
            Chamavam-no de professor e admiravam o seu cavalheirismo silencioso. Nos fins de semana ele se trancava no escritório e biblioteca e a criada não aparecia. Não permitia que ela entrasse. Ele arrumaria e limparia tudo.
            Achavam a senhora viúva uma deusa, soltando sempre beijos às crianças de colo ou que passavam levadas pelas mãos dos pais. Tinha o seu quarto de lembranças raras. Não permitia também que a criada, que não vinha nos fins de semana, entrasse nele. Eram lembranças antigas. Zelaria por elas sozinha.
            Os moradores do quarteirão elogiavam e elogiavam a boa postura dos dois, exemplos vivos de educação rara. Os pais contavam aos filhos a diferença enorme da boa educação antiga e as loucuras de agora, que veiculavam até nas televisões.
            Nos fins de semana, à noitinha, enquanto os pais, à mesa do jantar, voltavam a lhes lembrar a boa educação de outrora, e tornavam a dar, como exemplo, os dois que moravam sozinhos, o professor afastava a cortina, por trás da estante de livros, abria a passagem secreta que dava para a casa vizinha, e ia miando:
            – Cadê a minha gatinha querida?
            Ela, a viúva, miava também alegre:
            – Estou aqui, meu gatão.
      E os dois se envolviam em gritinhos e miadinhos abafados, recortados de beijos continuados, e iam até... até...
                                                                      
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sábado, 18 de janeiro de 2014

O homem e a cura (Belvedere Bruno)





Fazia um tempão que nem alegria eu tinha. Tudo o que mais gostava, agora jogava fora. Enjoei de tudo: amizades, papo no boteco, sinuca. Pra quê, se era sempre a mesma coisa? O pessoal resmungava: cadê Diógenes? Onde andará metido aquele cara? Vai ver arrumou alguma nega e se mandou. E eu nada. Era comer, deitar e dormir.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Nadja (Paulo Lima)




            Eu acreditava que o Google poderia encontrar qualquer informação sobre qualquer pessoa, em qualquer tempo ou lugar. Mas descobri que um vasto território do mundo real ainda não havia caído em seus tentáculos. O poderoso mecanismo de busca, aha, não era infalível como se pensava. O que me levou a esta conclusão foi a necessidade que tive de me reconectar com alguém do passado, uma mulher de outro país que conheci quando tinha 18 anos.
           

sábado, 14 de dezembro de 2013

Anônimos (Paulo Lima)



Esta história poderia começar numa livraria, um espaço que é de todos e não é de ninguém, onde ser surpreendido é uma forte motivação para quem ali adentra. Ser surpreendido por um grande livro, ou não tão grande assim, mas digamos que bom o suficiente para quem o descobriu, um prazer que pode se tornar ainda mais relevante se a tal descoberta resultar dos desígnios do acaso. O leitor tropeçou na obra, sentiu-se atraído pela capa, talvez pelo título, ou por um início arrebatador.  Ele pagou pela obra, certo de que havia conquistado o direito de avançar num território desconhecido e emocionante.
             

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Joia rara (Caio Porfírio Carneiro)





                                       
  Dê-me a vareta e pode ir embora. Não precisa ficar me atrapalhando. Vou percorrer essa beira do riacho, todo o trecho em que estivemos aqui. Você é tonta mesmo. Lhe dei um presente raro, tradição da minha família, e você nem deu bola. Meteu no bolso do vestido e nem um beijo ganhei de presente. Perdeu e, ainda por cima, pôs a culpa em mim. Eu o quê? Rasguei o seu vestido? Queria mais do que um beijo? Vá embora, para eu poder procurar em paz. Não fique me aporrinhando. Se eu achar aviso. Vá com Deus. Desapareça. Tchau.

Ela se foi irritada, falando pelos cotovelos, e eu fiquei procurando a joia rara, nervoso e buscando manter a calma. Risquei o chão com a vareta, ao longo do pequeno riacho que corria entre as pedras. Fui e voltei inúmeras vezes, pisando com cuidado. Cansado, sentei-me numa das pedras do riacho, respirando fundo. E não me conformava: "Meu Deus! Por que fui dar objeto de família tão raro para ela? Pensei que, com esse presente, ela... pois... é... cedesse. Vamos lá."

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O encontro (Paulo Lima)


 
            Lucy,
            Vou chamá-la assim. Não sei o seu nome. Lucy, como na música dos Beatles. Creio que posso também chamá-la de querida. Querida Lucy. Porque ontem, quando nos reencontramos, depois de tantos anos, redescobri em mim um antigo afeto. Quem diria, hein? O acaso. Eu estava lá num daqueles dias modorrentos, trancafiado na minha rotina de funcionário público. Eu e minha cota de tédio e sacrifício. E você surge do nada, como uma brisa agradável que o passado empurrou para o presente. Você veio pisando com cautela, estudando o terreno. Precisava de uma autorização, algo que eu, naquele momento, poderia resolver, naquela sala, naquele birô, naquele prédio. Então, você se aproximou, sentou-se e estendeu o documento, o documento que eu deveria liberar após um telefonema. E foi o que fiz. Não levei mais do que dois ou três minutos. Eu lhe devolvi o documento com a autorização. Com calma, você assinou seu nome. E enquanto assinava, sem erguer a cabeça, você falou comigo, quase num sussurro, como quem faz uma confidência. “Eu já estudei com o senhor”. Fiz um ar de surpresa, busquei seu olhar.  Quer dizer então que, nesse curto tempo, você me observava.  E me reconheceu, um vulto do passado. Você se apressou em esclarecer: estudara comigo no segundo grau. Quanto tempo faz? Passaram-se mais de 30 anos.  Confrontamos informações. Sim, havíamos sido colegas no colégio. Entre mim e você havia uma espessa cortina do passado. É inevitável que o tempo tenha deixado suas marcas. Notei que você ainda era uma mulher bonita. Senti-me intimidado. Ainda hoje sou um homem tímido. Talvez eu seja a negação do que o poeta escreveu: Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos. Não sei se concordo com ele. Mudamos, mas no fundo permanecemos os mesmos. Ainda sou tímido. E sua beleza, Lucy, me emocionou. Não trocamos mais do que umas poucas palavras. Mas senti que, por um momento, voltamos a ser colegas, como antes. Foi tudo tão fugaz, mas aquele instante deu um sentido especial ao meu dia. Deu uma dimensão ao meu próprio passado. Alguém, uma mulher bonita, lembrou-se de mim, tantos anos depois. Você pegou seu documento e partiu tão silenciosamente como tinha chegado.
           

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O pentear de cabelos (Caio Porfírio Carneiro)



                                                               
(Quadro de Edgar Degas)

Comprou o jornal na banca, como fazia todas as manhãs, e resolveu estender o passeio por outras quadras, além das habituais que percorria. Entrou numa rua de edifícios altos, silenciosa, poucos passantes. Descobriu, no alto da janela de um velho prédio, uma mulher olhando indiferente a rua, penteando lentamente os cabelos. Ficou olhando-a curioso e até sorrindo. Chegou à esquina e de lá ficou observando-a. Ela continuava, ar de devaneio, a pentear-se, em ritmo lento. Balançou a cabeça, sorriu, e tomou o caminho de casa.
             

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A nudez de Alice (Paulo Lima)




A gente nunca sabia quando Alice ia dar o show.  Ela irrompia rua abaixo aos gritos, cabelos alvoroçados, como se tivesse acabado de ver assombração. Os pés estavam sempre descalços. Usava uma saia um pouco acima do joelho, naquele limite suficiente para fazer disparar a imaginação. Uma camiseta, que ela usava sem sutiã, completava o conjunto.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O misterioso caso das Quatro Bocas (Paulo Lima)



                                                                                                
                                                                       1
                                   
            O carro estava parado lá no começo da manhã. O carro continuou parado no mesmo lugar também à tarde. E à noite ninguém apareceu para levá-lo. No dia seguinte, uma segunda-feira, o carro permanecia intocado, como se fizesse sempre parte da paisagem. E a paisagem era a Praia 13 de Julho, bem defronte das Quatro Bocas, mas eu estou falando de como o lugar era há quarenta anos, um areal cortado por um canal, por onde o mar desaguava sua fúria.