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quinta-feira, 10 de julho de 2014

Nilto Maciel revisitado* (Batista de Lima)




Sânzio de Azevedo me telefonou à tarde de 30 de abril último para anunciar a morte de Nilto Maciel. Já não bastava a aflição da Declaração do Imposto de Renda, no seu último dia. Havia prenúncio desde cedo, com Fortaleza engasgada de carros que não se moviam. Inacreditável tão fatídica notícia sobre alguém tão presente na nossa vida literária, sobre um líder entre gerações de escritores de 1970 até hoje. Talvez só parelha com Rogaciano Leite Filho, que, mesmo assim, teve uma morte mais ou menos convivida. Nilto sempre foi surpreendente, em Fortaleza ou em Brasília, em que residiu por três décadas, estava rodeado por escritores, falando pouco e dizendo muito.

Nilto Fernando Maciel nasceu em 30 de janeiro de 1945 em Baturité, cidade em que fez seus primeiros estudos. Ainda adolescente já estava em Fortaleza para estudos mais avançados que o levariam, com o tempo, a ingressar na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Como advogado candango chegou a Brasília, enquanto aquela cidade ainda adolescia, e por lá ficou trabalhando no Tribunal de Justiça até quando aposentou-se e retornou para Fortaleza. Tanto na Capital Federal quanto na Capital Cearense, engajou-se no mundo da Literatura como notável narrador e também como organizador de grupos literários e periódicos de vasta repercussão nacional.

Fui apresentado a Nilto Maciel em 1971, pelo seu irmão Ednardo, que como eu, fazia Letras, curtia literatura e frequentava o Restaurante Universitário. Ednardo faleceu em um acidente automobilístico e a amizade com Nilto ampliou-se quando ele, ao lado de Jackson Sampaio, Carlos Emílio Correia Lima e Manoel Raposo fundaram a revista O Saco de que éramos curtidores assíduos. Sua ida para Brasília parecia que ia quebrar esse vínculo afetivo. Acontece que em 1979, com o surgimento do Siriará, grupo literário com mais de duas dezenas de escritores, estávamos de novo batalhando juntos pela Literatura Cearense.

A distância entre Brasília e Fortaleza não impediu de Nilto atuar no novo grupo literário, principalmente lá fora, na divulgação do que fazíamos aqui. Qualquer feriado, período de férias e final de ano, estava o companheiro conosco em reuniões literárias e noitadas no Estoril. Era um boêmio de poucas palavras e muitos goles, no entanto, sempre comedido, parceiro e fraterno. Qualquer um de nós quando íamos a Brasília, era festa na certa. O Bar Macambira era local de reunião de confrarias literárias. Ali se reuniam poetas, políticos, leitores e boêmios em papos e doses que varavam a noite.

Ao se aposentar, Nilto Maciel retornou em definitivo para Fortaleza e dedicou-se exclusivamente à Literatura. Aqui, nessa nova fase, transformou-se em verdadeiro guru das novas gerações de escritores, sem esquecer as antigas. Circulava com desenvoltura entre remanescentes do Grupo Clã (década de 1940), Grupo dos Concretos (década de 1950), Grupo SIN (década de 1960), Grupo Siriará (década de 1970) e estava sempre cercado de jovens escritores que se tornariam revelações de nossa Literatura como Pedro Salgueiro, Dimas Carvalho, Cândido Rolim, Hermínia Lima, Aíla Sampaio, Tércia Montenegro, Raymundo Netto e muitos outros.

Aliás, foi Raymundo Neto quem primeiro tomou conhecimento de sua morte. Afinal, há dias ele não atendia telefonemas e estava descumprindo o compromisso literário com a UVA (Universidade Vale do Acaraú), em Sobral, em evento sobre a Literatura Fantástica no Ceará, em que seria um dos palestrantes. Não seria a primeira vez que Nilto Maciel falaria para estudantes de Letras em Sobral. Lá estivemos, tempos atrás, com o mesmo objetivo e foi visível o sucesso de sua fala. Também estivemos em missão similar em Aracati e em várias oportunidades em Fortaleza.

Nilto Maciel é autor de doze livros de contos, nove romances, três coletâneas de ensaios e mais três livros de crônicas memorialísticas. Descendente da estirpe da família Maciel, de Quixeramobim, um de seus ancestrais é Antônio Conselheiro, líder do episódio épico de Canudos. Talvez esse DNA o tenha tornado um escritor cultivador do fantástico, conhecido nacionalmente. Seus livros trazem o selo de editoras locais, de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Há deles traduzidos para outras línguas e pelo menos um transformado em filme. Sua mais recente publicação foi "Sôbolas manhãs" que me foi enviado 20 dias antes de sua morte.

De 1992 a 2008 Nilto Maciel editou e distribuiu "Literatura: Revista do Escritor Brasileiro", em mais de trinta números. Dada a nossa amizade, sempre publicava meus textos, a ponto de me orgulhar de estar presente em todas as edições. Sempre o correio me trazia dez exemplares de cada número. É por isso que sua partida inesperada traz um vazio imenso para nossas letras. Deixa órfã uma geração de jovens escritores que o tinham como referência e põe em alerta os da sua geração que o admiravam tanto. É que essa vida é traiçoeira e que esse seu mais recente livro em vez de "Sôbolas manhãs" se afigura aos nossos olhos como "Sôbolas tardes". Nossa geração Siriará já ultrapassou o meio dia.
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* Originalmente publicada no Caderno 3 do Diário do Nordeste. Clique "aqui".
- Sobre Batista de Lima, acesse: http://pt.wikipedia.org/wiki/Batista_de_Lima.

Quem terminará as tarefas do morto?* (Pedro Salgueiro)



Quem completará as inadiáveis tarefas do morto? Quem acabará de arrumar sua penúltima mala, na qual só faltava uma camisa engomada, já que a calça de brim jazia bem dobrada ao lado da pasta com o fecho aberto até quase a metade (por onde dali a pouco ele enfiaria o discurso de abertura de um congresso macabro).

Quem terminará de pôr sua derradeira postagem na página que era seu barco, sua âncora, sua tábua de salvação de náufrago sem remissão? Qual dos amigos postará um primeiro e o último comentário póstumo, com a bendita insulina do elogio fácil que tanto azeitava o parco sangue do morto?

Quem de nós, amigos de sempre e os ausentes, aparará pela última vez as unhas tortas do morto; qual deles se sentará desconfortável no sofá puído, sobre a velha toalha com emblema gasto do glorioso “Tricolor de Aço”, que tanta tristeza vinha trazendo ultimamente ao finado?

Quem completará o último romance do corpo magro e putrefato que jaz inocentemente estendido no pequeno corredor entre o banheiro, o quarto de dormir e a sala?

Quem ouvirá de sua boca minúscula que aquele seria seu Ulisses, seu canto de cisne, sua última e mais perigosa jogada: depois da qual não se sustaria pedra sobre pedra do que imprudentemente escreveu antes?

Quem da famigerada corja dos companheiros de copos, de colegas de geração, de novos e velhos parceiros de penas, escutará suas derradeiras idiossincrasias, seus restantes insultos velados, suas últimas indiscrições escritas?

Quais dos ouvidos singelos, limpos e sempre disponíveis, escutarão suas reles blasfêmias de ateu reimoso, seus vãos arrependimentos, suas dolorosas lembranças de infância, por onde desfilarão – irremediavelmente sumidos – seus pais, tios, irmãos, todos mortinhos covardes que o foram deixando sozinho pelos pedregosos caminhos da vida?

Quem dentre os muitos companheiros de vida ecoará pelos ventos suas iras, sonhos, amores, dissabores, langores, sussurros e preces?

Quem raspará a rala barba diária do morto, quem cofiará com seu modo único o velho bigode aparado tão baixo, discretamente escondendo o riso cínico, a impune maledicência, os dentes finos trincados de dor?

Quem dentre os já mortos o vai auxiliar no profundo estudo da geologia dos campos santos? Quais dos Josés, Aírtons, Edinardos, Aldas, Alcides, o ajudarão a aparar as raízes desse imenso “mato baixo” que somos no fundo todos nós que por aqui restamos?

Quem editará seus livros esquecidos, os quase concluídos e – principalmente – os que ainda seriam escritos? Quem os postará nos correios para os tantos admiradores desse Brasil tão grande? Quem receberá, por sua vez, a enorme quantidade de livros que lhe enviarão todos os novíssimos poetas desse país gigante?

Quem vai restaurar os derradeiros filmes, fotos e lembranças de vida para mostrar no moderno projetor, que ele havia acabado de comprar e posto no quarto para presentear as quatro filhas quando elas aqui por ventura aportassem?

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Não! Não! Senhores! Um morto assim não deveria morrer tão cedo, pois ele ainda tinha diversas coisas a fazer, bastantes (e inadiáveis) tarefas para completar...

E muita, muita vida ainda por viver!

“Demorou dias a agonia de Ascânio Bustamante Coimbra. Vomitava versos, retorcia-se na cama, agitado, febril, voz sumida. E finalmente expirou, translúcido como a evidência, magro, quase ossos, e a pele manchada de letras.” (Nilto Maciel – do conto O translúcido Ascânio).
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* Crônica publicada no jornal O Povo, em 10/05/2014 - clique "aqui".

terça-feira, 22 de abril de 2014

Do Pici ao Quinze (Nilto Maciel)



(Casa onde viveu Rachel de Queiroz, no Pici)




Ganhei de Pedro Salgueiro livrinho (pocketbook) de capa originada de fotografia, cerca de 80 páginas, impresso em Fortaleza. Intitula-se Pici: dos velhos sítios à periferia. Não fosse o subtítulo (ausente na capa), o leitor de fora do Ceará jamais imaginaria Pici como nome de bairro. O povo da capital cearense, porém, sabe muito onde se situa essa parte da cidade. O entendedor de futebol terá outro motivo para falar dela: No Pici está localizado o estádio do Fortaleza Esporte Clube, o grande rival do Ceará Sporting Clube.

Li-o de uma assentada, tão gostoso é. Não por ser também apaixonado por nossa ‘loira desposada do Sol’, nem por ser torcedor do Tricolor de Aço. O danado do livro nos prende desde a primeira linha: “O Pici é um bairro que está localizado na zona oeste da cidade de Fortaleza, capital do Ceará”. Frase ordinária, é verdade. Linguagem de geógrafo ou urbanista. Mesmo assim, o leitor se sentirá atraído pelo relato. Pois são raras as manifestações ‘literárias’ de exaltação à nossa metrópole. Quase todos os críticos da urbe cearense só se sentem realizados quando pintam, com tintas sujas ou pincéis rombudos, a maior ou segunda mais populosa cidade do Nordeste brasileiro.

Lido, pu-lo nas mãos de Maria Eduarda Ardire. Quem é ela? Resumo a história dela comigo: Primeiro recebi mensagem curta, nestes termos: “Oi, Nilto Maciel. Tenho lido suas brincadeiras no blog literaturasemfronteiras. Nunca deixo de cair na gargalhada. Queria tanto conhecê-lo”. Imaginei-a com cerca de 50 anos, um pouco além disso, menos de 80; separada recentemente; aposentada de órgão público; solitária etc. Tudo asneira minha, tudo preconceito. Aparenta 20 anos de idade, não tem namorado, nunca trabalhou, vive com os pais e três irmãos, adora praia, balada e toda a liturgia da juventude de hoje.

Uma tarde, veio me ver, fomos da literatura ao teatro, do cinema à música, viajamos, sonhamos. Ainda na parte da manhã, dera por encerrada a leitura de Pici. “Se quiser, é seu. Por alguns dias”. Levou, leu e voltou. E, na segunda visita dela ao meu rancho, passei a me estender naquelas doidices de ‘frases ordinárias’ e ‘linguagem de geógrafo’.
           
        Impacientava-se a moça com minha lengalenga: “Afinal, trata-se ou não de romance? O senhor se referiu a estilo de geógrafo ou urbanista. Consiste, então, num ensaio histórico?” “Não, nada de estudo científico”. “Então é reportagem?” “Também não”. 

             Levantei-me da cadeira de balanço e arrastei os chinelos até a cozinha, a fim de beber água. De lá mesmo gritei: “O modelo seria o da crônica histórica”. “Será?” Voltei à sala: “A frase excessivamente presa à gramática, protocolar, burocrática não é a tônica da obra. Também não apresenta Pedro dicção debochada ou humorística (tão utilizada por jornalistas engraçados). Quando evoca a si mesmo, fá-lo como pesquisador e repórter (sem sê-lo)”. “E como testemunha?” “Não, ele não participou da evolução da localidade. Sendo assim, a intenção dele (bem realizada) foi ‘contar’ a origem do nome e do bairro, as transformações impostas pelos homens e as realizações de seus primeiros povoadores e proprietários. Além de alguns habitantes especiais, a exemplo de Rachel de Queiroz. Pois se deu lá, na casa por seu pai construída, a elaboração de seus dois primeiros romances”.

Sem cerimônia, a aprendiz de leitora me pediu água. Deixei de lado o opúsculo e me dirigi, de novo, à geladeira. Da cozinha bradei: “Aceita Coca-Cola, cerveja, uísque, cachaça ou cajuína?” Ela não me deu ouvidos e provocou: “Se a gente espremer bem esse objeto, talvez não encontre nem 30 páginas do punho de Pedro. Parte é de Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez) e Sânzio de Azevedo, além de Alfredo Weyne, José Liberal de Castro, Rachel de Queiroz, sua irmã Maria Luíza, e memorialistas e cronistas menos conhecidos”. “Isso é muito natural em texto elaborado de acordo com escritos de diversas raízes. Se fossem memórias, possivelmente seria lícito cuidarmos de excesso de citações. Além de tudo, Pedro Salgueiro nasceu em 1964, na pequena Tamboril, e conheceu Fortaleza no início da juventude. O Pici teria se originado do Sítio Pecy, existente desde o século XIX”.

Irritado, fui ao banheiro, sem pedir licença à jovem. Voltei daí a três minutos, completamente ensopado de água fria, da cabeça ao peito. “Meu Deus! O senhor tomou banho?” (Mal acabara de me conhecer, e já me dava tratamento de velho conhecido, em deslavada intimidade). Agarrei a brochura, sem pensar em resposta: “O charme dela se acha exatamente nesse amálgama: informações colhidas em narrativas e depoimentos de antigos habitantes do bairro e pesquisadores vivos, como Nirez”. “Não precisava transcrever seis páginas das memórias de Rachel e Maria Luíza, além de quase todo o conto ‘Tangerine-Girl’”. Fechei o volume, com raiva, e, por pouco, não berrei: “Discordo de sua opinião, menina. As informações contidas em Tantos anos, das irmãs Queiroz, são fundamentais. O conto de Rachel é, quiçá, a única peça literária, de alto valor, a dar ao Pici a condição de lugar onde se desenrola trama aparentemente simples – ilusão e desilusão de uma adolescente. Além de ser composição de fina tecelaria”.

Prestes a me arrepender de ter convidado a estudante a vir à minha residência (“Após a leitura, traga-mo. Conversaremos sobre ele”), bebi alguns goles de água, sosseguei e falei baixinho: “Você deve ser menos exigente, garota. Para você, escrever parece fácil”. “O senhor acha difícil?” “Tão penoso quanto viver no sertão, em tempo de seca”.

Ao se preparar para ir embora, Maria Eduarda me perguntou se eu poderia lhe emprestar O Quinze. “Promete ler e devolver em quantos dias?” Ela pensou e sorriu: “Em quinze. Está bom assim?”

Fortaleza, 18 de abril de 2014. 

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O anônimo (Tânia Du Bois)






“Passado o futuro: tantas máscaras /
o que dizer de um mascarado sem máscara? /
ou de uma máscara (Real)?”
(Pedro Du Bois)

Anônimo é aquele que não revela seu nome; dentro de suas características encontramos aquele que “faz o bem sem saber a quem”, e aquele que não enfrenta o sentimento, com medo de viver e usa a máscara para se esconder num mundo obscuro, sem perceber quando em determinado momento da sua vida se aproxima da verdade das pessoas.  Segundo Alberto da Cunha Melo, “Anônimos // Bem-aventurados os mitos, / em seu tranquilo anonimato, / que sequer se sabem anônimos, / como a moldura de um retrato...”.

O anônimo ressalta a diferença em algo que costuma afetar negativamente a sua vida: sua intenção é estar alerta em relação à sua pessoa e ao seu anonimato, porque conviver entre eles é desafio que pode se transformar em agradável, ou não, revelação. Como em Pedro Du Bois, “... somos máscaras sobre o rosto / sem despertar suspeitas / personagens ambulantes / desempenhando papéis menores”.

Quem saberá os limites da vida em face oculta? O anônimo que fere as palavras esconde o tempo e impede de ser reconhecido. Escuta “cantos onde há gritos e se diz maravilhado” – nos surpreendendo com seu falso lado, ao se apresentar de maneira detalhada, deixando de ser quem é, ao revelar sua falta de coragem para se identificar e assumir sua postura, sem deixar as palavras caírem no chão. Nas palavras de Alphonsus Guimaraens Filho, “... Toma coragem, vai buscando a face / mais oculta das coisas, de onde nasce / a luz que restará inapagada”.

No anonimato, nunca sabemos qual relato nos dá a verdade dos fatos; o sentido do desejo; as histórias – passado ou futuro; as ameaças pela solidão; mas a vida em longos passos mostra ser inevitável esquecer que o anônimo pode se tornar amigo ou inimigo, e que o momento revivido é marcado pela boa ação e ameaçado pela má. Ficando a reflexão de Pedro Du Bois, “o que dizer de um anonimato sem máscara?”

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quarta-feira, 9 de abril de 2014

Maquiavelices de Patrícia Galvão (Nilto Maciel)




Convidei Patrícia Galvão a ler comigo dois impressos recentemente chegados à minha mesa. Não direi aos leitores tratar-se da célebre Pagu. Seria mentir descaradamente. A de meu convívio nasceu em 1996 e mora em Fortaleza. Não sou dado a regressos no tempo nem pratico o espiritismo. Além disso, tenho verdadeiro pavor de me encontrar com personagens como Calígula, Lucrécia Bórgia ou Adolf Hitler. Os opúsculos aos quais me refiro são A menina da chuva (Fortaleza: Premius, 2013), do cearense Bruno Paulino, e Entre-textos (Porto Alegre: Vidráguas, 2013), do carioca Luiz Otávio Oliani.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

O golpe visto da janela de minha casa (Adelto Gonçalves*)




            Em 1964, eu tinha 12 anos de idade e assisti ao golpe militar da janela de minha casa. A morada de meus pais era no Largo Teresa Cristina, 27, defronte para o prédio do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, localizado à Rua General Câmara, cuja lateral direita dava para a praça. Foi por ali que chegaram os soldados da Polícia Marítima, do comandante Seco, ostensivamente armados. Da janela, vi como alguns daqueles homens de uniforme azul com metralhadoras em punho e longos bastões – que no cais eram mais conhecidos como “pés de mesa” – escalaram o muro dos fundos do sindicato, assumindo posições estratégicas.


quarta-feira, 2 de abril de 2014

Janela discreta (Tânia Du Bois)



 “Atrás das vidraças / sujas da poeira / da rua // protegidos / e isolados /  da poeira / da vida // escondidos / e transfigurados / na poeira / do tempo //   guardados / e revelados / na poeira” (Pedro Du Bois)
         
          Na janela discreta está a marca do tempo, na paisagem e no vento. O Sol brilha e a Lua se esconde entre nuvens. A poeira se desloca para todos os lados e com movimentos circulares se espalha. Mas o que importa é o que o vento traz ou o que revela do tempo onde se repete em palavras. A palavra é força da natureza que, uma vez articulada, vira ação. Segundo Mia Couto, “Varrer as avessas: em vez de limpar os caminhos, espalhávamos sobre eles poeiras...”

quinta-feira, 13 de março de 2014

Entre a flor e o muro (Tânia Du Bois)





“...Uma imagem vaga por entre os versos /
       constrói muros e os faz desabar...”      
 (Vera Casa Nova)

            
É preciso ter o carinho necessário para enfrentar a realidade; para se aproximar da vida com a vida; para conversar com a pretensão de descobrir o caminho entre a flor e o muro, e reencontrar o sonho, como em Helena Kolody, “Pintou as estrelas no muro / e teve o céu ao alcance das mãos”.

Nas palavras de Pedro Du Bois, “... Falo em saltar sobre a amurada / inundando / a vida em detalhes...”. A partir da contemplação da flor, surge o momento em que projeto a vida e sinto a tristeza invadir a mente, quando fico de frente para o muro Ambos mostram a verdade de que somos feitos, em que conheço e compreendo o momento ao indagar: a flor ou o muro? Encontro em Vânia Lopes, “Ando construindo muros / para comparar minhas escadas escorregadias / meu desatino / deixo como pinturas no muro / sem assinatura / para não correr o risco de me perder”.

O fato é que a verdade se limita à simples diferença entre a vida e a morte, o que se confirma ou é relativo à visão muro, ou à imaginação da flor; do quanto a flor ilumina e o muro finaliza. Seja para reaprender ou reencontrar a plenitude dos sentidos, fazendo render as palavras e gritar que o muro expressa a mensagem onde o pensamento é a flor, como em Vera Casa Nova, “Na rua os gritos desenham muros”.

Entre a flor e o muro está o impulso para construir a natureza e o homem; onde se fundem no sentimento da diferença sentida, concebida na perspectiva que confere especial importância ao desejo como manifestação. Tal sentido –  a flor   transcende a vida orgânica e acompanha o homem cerceado no muro como limite dos impulsos. Alcides Buss disse, “... Procuras à flor / no éter dos sentidos e palavras...” e,  Rodrigo de Souza Leão, no seu primeiro livro, Há Flores na Pele.

Nessa construção entre a flor e o muro, o efeito resulta em segmentação e ruptura, cuja manifestação se dá por imagens como a nostalgia e a saudade que se confundem com os sentidos. Porém, como reconhecimento em que o homem privilegia o saber e se concede a primazia do sonho. “Persegui a luz? / mal segui-a, tendo / onde o sonho pus, / uma flor morrendo...”,  segundo Alphonsus de Guimaraens Filho.

A flor e o muro são mistérios do que pode vir depois e a  expectativa dos destinos. Entre a flor e o muro há a conversão do eu em nós, como processo dinâmico formado pelo passado e presente, ao ceder lugar a temas pessoais ou a capacidade sensorial, contraponto de vida na certeza da morte, como em Alexei Bueno, “oh flor, oh muro, / vós ambos sois./ Ser, este é, pois, / O liame obscuro // que há em vós. O puro / Elo. Depois, / Se se erguem sóis, / Se se alça o escuro, // Que importa? Estais, / Seiva, argamassa, / Aqui. Jamais // Sereis mais que isto / Que é, que não passa./ Oculto e visto”.

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quarta-feira, 12 de março de 2014

O demônio dos copos (Ronaldo Monte)



 
Na cozinha de toda casa mora um demônio terrível. Invisível, como todo demônio que se preze, sua proeza é das mais assustadoras: ele faz aparecer copos sujos no balcão da pia.

Ele age sorrateiro, sem fazer barulho. Quando você suspira aliviado por ter, finalmente, acabado de lavar toda a louça, eis que aparece no canto do balcão dois copos que você jura que não estavam ali havia dois segundos. Conformado, você esquece a dor nas costas e volta à lide com água e sabão, adiando o prazer do corpo jogado no sofá com os olhos perdidos naquela novela de que você nem sabe o nome.
        

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Redemoinho na terra dos demônios (Nilto Maciel)




Ao dizer ‘beijos, Tusa’ e desligar o telefone, ouvi a campainha do portão. Acabara de conversar com Aretusa, a mais nova de minhas herdeiras. Na azáfama dessa vida de muitas filhas (reais) e milhares de fãs (imaginárias), recebi clarão súbito no cérebro: Só poderia ser Janete Clair. Corri (sem me preocupar com a vestimenta, pois me habituei a permanecer só de cueca em casa) e, sem prestar atenção ao mundo ao meu redor, bati a unha encravada num pé de cadeira, quis chorar e mandei o objeto para a puta que o pariu. A capengar e suar sangue, dei à pobre aluna a pior das recepções de sua vida. (Só então me percebi vestido da cintura até os pés). Depois de explicações mentirosas de minha condição física e emocional, dei início à aula.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Arte e inutilidade (Nilto Maciel)


(Quadro de Eustache Le Sueur)


Impaciente, corri três vezes até o portão. Na quarta, quando ia encostar a venta no alumínio e vasculhar a rua, avistei aquela carinha linda do lado de fora. Para não demonstrar ansiedade, deixei-a acionar a campainha duas vezes. E, então, como se acabasse de me aproximar do portão, gritei: Já vai. Quem é? Sou eu. Eu quem? Janete. Meti a chave na fechadura, puxei a folha com chave e tudo e abri os braços. Desculpasse o suor: acabara de chegar do shopping. Ela me deu abraço muito sutil e entramos na casa, a mentir pelos poros.

Depois de cinco minutos nessa lengalenga, iniciamos a aula. Peguei Ar de arestas (São Paulo: Escrituras, 2013), de Iacyr Anderson Freitas, e me pus a tagarelar: Tenho acompanhado a trajetória literária (ou editorial) de Iacyr, desde os vagidos iniciais. Não me lembro do primeiro contato. Terá sido em 1982, ano de publicação de Verso e palavra? Recentemente (dezembro de 2010) referi-me a ele no artigo “A obra poética de Iacyr Anderson Freitas”.

A mocinha examinava minha euforia: O senhor tem demonstrado admiração por ele. Concordo com suas palavras.

Pedi silêncio e me entreguei à parolagem: Em Ar de arestas verifiquei umas singularidades (não fosse o impresso agradável aos olhos e ao tato, pela capa dura, pelas fotografias de Ozias Filho, pelo tipo do papel e pelo formato menos comum): o poema (ou são vários?) é constituído apenas de quartetos, em rimas alternadas, quase todas dos tipos “ricas”, “agudas” e “graves”. O metro é sempre o de sete sílabas, a chamada redondilha maior. Janete Clair me fez calar: Será mesmo importante referir-se a isso? Possivelmente não. Entretanto, sempre é tempo de lembrar certas normas aos jovens. O senhor vê em Iacyr pura imitação de Drummond? Não, talvez nem se aproximem um do outro. Vejo mais semelhanças com João Cabral.

Reli alguns cantos em voz alta. Impus breve pausa e ela se aproveitou disso: Ele se refere às arestas da poesia? Pediu o objeto e se pôs a ler: ‘Surpreende-se a serpente / em cada naco de frase. / Ora, vagando, urgente, / ora fixa em sua base’. Li estas linhas e fiquei com a pulga atrás da orelha. A serpente seria o quê? Até me lembrei de Jorge de Lima.

Pego de surpresa pela astúcia (pode-se falar em inteligência?) da menina, tentei parecer mestre: Tudo é possível captar nos livros. Solicitei o volume e lecionei: Como na pintura abstrata. Na verdade, pressenti antes de tudo a dor humana cantada e chorada: ‘um vazio de nascença’, ‘ter por dentro essa falta’, ‘em si mesmo soterrado’.

Senti necessidade de passear ao redor de mim mesmo. Ao voltar ao sofá, ela disparou: É de alto nível? Não titubeei: Sim, de alto nível, embora o leitor menos experiente também possa alcançar o seu significado. Janete queria me irritar mesmo: Então o analfabeto não pode ler boa poesia? Ou a frase informal não tem qualidade? Deixe de preconceito, professor. Quase tive ataque apoplético: Acalme-se, jovem. Nunca me senti próximo do entendimento segundo o qual poesia de alto nível seja aquela entendida apenas pelos homens letrados ou intelectuais. Na verdade, nem pintura nem música carecem de entendimento. Basta senti-las. Porém, não restam dúvidas: há uma arte cerebral e outra dos sentidos. Às vezes, se confundem, são a mesma coisa. Música clássica é assim.

Minha secretária apareceu. Entendi ter chegado a hora de dar trabalho à garganta. Vamos tomar suco, Janete? À mesa, dedicamo-nos apenas a trivialidades: doce de mamão, chuva por vir, calor de trinta graus. E comemos e bebemos feito dois irmãos.

De novo acomodado no sofá, agarrei Bazar do Braz: Poemas & Anzóis (Goiânia: Kelps, 2012). Dediquei-me a manifestar admiração pela figura humana e pelo escritor Valdivino Braz. Conheço este poeta há quase meio século. Antes mesmo de me ir pra Brasília, já me correspondia com ele. Entretanto, só estivemos frente a frente em 1978, não sei se na capital do país, se na de Goiás. Foram abraços, cervejas, risadas, publicações. Janete me interrompeu algumas vezes: E continua essa amizade? Sim. Vez por outra, trocamos cartas, como antigamente. Os livros ainda circulam pelos ares.

Iniciei breve apresentação do Bazar. A moça quis saber minha opinião: Parece brincadeira? Sim, é galhofa pura. Valdivino é sujeito alegre, expansivo, como se dizia. Fala alto e grosso, irradia luz, embora seja pequenino e magro. Ultrapassei cinco minutos em elogio ardente ao poeta goiano, até ouvir reclamação: Não vai comentar o conteúdo? Sorri: O subtítulo dá início aos gracejos: ‘poemas & anzóis’. Pensei em pesca de pessoas. A sapeca opinou de novo: Quiçá não dê um passo além do humor. Não, ele nos leva a pensar e conversar. Não tem aquela seriedade ou sisudez de Iacyr. Também não se torna carnavalesco. Como em “Casa do Mané”, homenagem a Manoel Coutinho Carneiro, natural de Piripiri, Piauí, dono de casa de pasto (misto de bar e restaurante), no qual se oferecem, aos clientes, “típicos petiscos e pratos / de estilo caseiro, / tempero com esmero”. A menina é sabida: Lembra os repentistas. Corrigi-a: Não na medida do verso e na rima soante. A danada não se deixou abalar: Há nele textos em prosa muito debochados, na esteira do modernismo de 22, especialmente Oswald. Aproveitei a deixa: Tudo misturado, como convém ao modernista exemplar. A garota completou: Valdivino zomba dos tipos urbanos, em descrições minuciosas, caricaturas dignas de Gregório de Matos.

Deixei-a a resmungar e iniciei passeio pelos corredores. Sempre ajo assim, quando me sinto incomodado por visitas. De regresso à sala, vinha com a ideia de ler duas ou mais composições de meu amigo. Agora permaneça caladinha e ouça: “Um poliglota, o Hipólito. O hipopótamo. Cheio de línguas. Latim. Grego. Um esnobe. Uma íngua. Um chato de galocha. Etílicos, inchados, os olhos-bulbos. Um sábio com a boca cheia de vocábulos. Por mares nunca dantes navegados. Hipólito Sanchez, a pança. Ordenança de Quixote, citando Oscar Wilde: ‘Toda arte é absolutamente inútil’. Dose pra elefante”.

A estudante não me deixou ir adiante: Isso é poesia? E se for apenas inutilidade? Assustei-me. Tivesse cuidado com a língua. O senhor agora tem cara e modos de pastor evangélico.

Fortaleza, 17/18 de fevereiro de 2014.
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