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segunda-feira, 31 de outubro de 2005

Paulo Véras, contista do interior nordestino (Nilto Maciel)


Em O Cabeça-de-Cuia, Paulo Véras enveredou também pela análise psicológica das personagens. Seus contos são quase todos tecidos a partir do fio da memória, razão por que os personagens situam-se entre a infância e a adolescência.

Como está nos manuais, o conto é uma peça literária curta, de poucos personagens, de um só núcleo fático. É o caso dos contos de O Cabeça-de-Cuia, de Paulo Véras. Todos curtos, quase sintéticos, quase à maneira de Dalton Trevisan. Períodos incisivos, sem rodeios, sem malabarismos de linguagem. Espécie de roteiro para elaboração de narrativas mais extensas. Ao lado disso, um linguajar bem nordestino, tal como em Graciliano Ramos ou Juarez Barroso, sem o folclorismo da literatura regionalista, apesar dos “num” em vez de “não”, dos “tá” em vez de “está”. O povo rude fala assim. Mas também não diz, por exemplo: “duas bilas de vidro”. Diz: “duas bila de vrido”. Isto, que Graciliano não fazia, não pode desmerecer a literatura de Paulo Véras. Não chega a ser um grande pecado.

Os vinte e seis contos de O Cabeça-de-Cuia carregam esta mesma maneira de escrever, apesar de não haver homogeneidade temática. Uns são mais voltados para o interior das personagens, outros para o binômio homem-ambiente. E são estes últimos, quase todos circunscritos ao espaço rural, os que apresentam melhor feição. Gravitam em torno de personagens situados entre a infância e a adolescência. Neles o contista melhor se revela. Certamente Paulo é dono de prodigiosa memória, pois, movimentando personagens antigos e complexos, como as crianças no mundo rural, pinta quadros tão coloridos que é de se imaginar ter ele escrito os contos quando ainda criança. Não menos coloridas e vivas são as personagens.

Porém um senão deve ser registrado – o conto “O Equívoco”, de tão comum, tão falto de criatividade, deveria ter sido excluído do livro. Apesar disso, Paulo Véras se situa ao lado dos bons narradores das pequeninas criaturas do interior nordestino.

Não fosse o conto “O Equívoco” (título excelente para um trocadilho), O Cabeça-de-Cuia poderia ser incluído no rol dos bons livros de contos surgidos no período histórico aqui estudado. E é justamente o único em que o contista tenta mostrar-se engajado. É o caso de se dizer: quem nasceu para Cornélio Penna nunca chega a Lima Barreto.
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A odisseia de Carlos Mago (Nilto Maciel)



Havia um homem. Depois se fez capitão, cavalariano. Chamavam-no, quase sempre, Carlos Mago. O que o irritava profundamente. Talvez por entender magro, magricela, esquelético.

Ora, havia outros Carlos na cidade. Dezenas e dezenas. De importância, no entanto, somente dois. Ele, Carlos Mago, e Carlos Gordo. Ambos galistas, pais-de-família respeitáveis, cidadãos de bem, etc. Diferençava-os, apenas, o espaço que ocupavam no Universo. Um, magro como um pau de vassoura; outro, gordo como um porco. A razão de serem assim parecia de fácil entendimento. O primeiro, eterno perdedor de apostas fraudulentas presididas por outro Carlos, deixava de se alimentar para cuidar de seus doze galos. Tratamento à base de aveia, girassol, lingofex intramuscular, pantetonato de cálcio, nicotinamida, vitamina K, ferro, fósforo e iodo.

(Corrija-se informação anterior: eram três e não dois os Carlos importantes da cidade. E o terceiro, com certeza, encabeçava a lista. Primeiro por ser chefe político, cacique, raposa velha. E também por ser dono do único rinhadeiro da região.)

Carlos Gordo, o sempre ganhador das apostas, amigo, parente e correligionário do terceiro Carlos, seria gordo por isso mesmo.

A explicação do Mago de Carlos parece plausível. Além do mais, mago, no linguajar nordestino, é corruptela de magro. De outra forma, mago seria o Gordo.

Havia também um animal. O quadrúpede, o condutor do capitão, o cavalo, “um alazão famoso, bralhador e galopante, tão enorme quanto um cavalo de imperador, rei ou guerreiro”. Chamavam-no Carlos Galo.

(Corrija-se informação anterior: eram quatro e não três os Carlos importantes da cidade. E o quarto, com certeza, encabeçava a lista, como encabeça esta história.)

Montado em Carlos Galo, o cavaleiro desaparecia no meio das crinas esvoaçantes. Mais parecia um simples e mínimo adorno humano. Na estrada, somente se via o cavalo. Os mendigos cegos, no entanto, enxergavam um cavalo e seu cavaleiro. Os demais habitadores daquelas bandas só viam um cavalo fantasma, a atravessar nu os caminhos e as veredas, relinchando e bralhando. Às vezes cantando como um galo na madrugada. Não se sabe, daí, quem o apelidou de Galo, se o dono, se o povo.

Não, um cavalo não podia cantar – negavam os mais incrédulos. O canto fluía da garganta de Carlos Mago. Toadas de entristecer as pedras, a caminho ou descaminho das rinhas. Perdedor sempre, nunca chorava – cantava. Cantigas chorosas.

A lenda falava ainda de um fenômeno horroroso: a simbiose dos dois seres, enquanto cavaleiro e cavalo. Não seriam dois, mas um só bicho nos ermos: metade homem, metade cavalo. Sempre a cantar. Galo quadrúpede.

Estudiosos do romance de cavalaria vêem em Carlos Magno a origem do nome do cavalo de Carlos Mago. Brazilianists vislumbram Charles de Gaulle. Humoristas brasileiros, porém, vêem apenas uma estreita relação entre o homem Carlos Mago e o cavalo Carlos Galo. Um seria Ma(g)no; outro, galo, gaulês. Ambos Carlos. No fundo, seriam um só ente: cavalo-cavaleiro.

Havia ainda doze galos. Todos semelhantes entre si em idade, tamanho, peso, penas, armadura e nome. Todos Carlos.

(Corrija-se informação anterior: eram dezesseis e não apenas quatro os Carlos importantes da cidade.)

Iam, um dia, em marcha, quatorze Carlos. Na seguinte ordem: o cavalo, sadio, cascos de ferro, esporões, chifres artificiais de touro e dentes afiados à lima. Montado neste, o homem, tísico, tossindo permanentemente, cantando, peixeira à cintura, pau de vassoura à mão direita, esporas, pracatas de rabicho, banguela e dois chifres invisíveis sob o chapéu de couro à Lampião. Logo atrás, os galos, em fila indiana, esporões naturais e de metal, bicos também naturais e de prata, cristas eriçadas, pescoços de girafa, rijos como cabos de aço, asas espalhadas como de aviões, coxas musculosas como de atletas humanos. Os doze carregavam consigo a glória e a fama de terem fendido o ventre de outros doze galos. Assim mesmo, Carlos Mago perdeu todas as apostas. Havia apostado nos adversários.

A marcha cavaleirosa capitaneada pelo galista Carlos Mago se denominou Coluna Carlos. Partiu do Sítio Dom Chicote, Município de Baturité, quando ficou proibida a realização de rinhas em todo o país.

Alguns anos atrás, Carlos Mago vivia de fabricar vassouras de palha para a prefeitura da cidade. E durante certo tempo percorreu estradas, lugarejos, vilas e ruas, em luta contínua contra a sujeira. Vassoura à mão, comandava um exército de garis. Enxotava os bichos que, soltos, sujavam as ruas e atormentavam as vistas castas de damas e donzelas.

E se fez janista noite e dia. Finda a campanha eleitoral, Carlos largou para sempre a vassoura. E abandonou uma profissão de quase meio século, para se dedicar a galos de briga. Em compensação, livrou-se de um estoque de três mil vassouras e um jumento de estimação. Em troca, recebeu um cavalo velho e doze pintos órfãos.

A Coluna Carlos atravessou a principal rua da cidade numa tarde quente. A molecada vaiou. Os bêbados, no entanto, gritaram e saudaram a marcha. Logo, moleques e bêbados, unidos, davam vivas ao troço. Incentivada pelas manifestações públicas, a comitiva seguiu, airosa, sua marcha guerreira.

A caminho da capital, a Coluna foi interceptada e interpelada por um grupo de pessoas. Fizeram perguntas de toda ordem. Apontaram máquinas para os galos, o cavalo e Carlos Mago. Aborrecido, este gracejou: ia às Índias, à China, à Pérsia, à Indonésia e à Grécia, levar a formosura e a valentia dos galos do Ceará.

À noite, já em plena capital, Carlos Mago se viu nos vídeos da televisão. O locutor falava de retirantes nordestinos em demanda do Oriente, fugidos da seca.
Alta noite, os retirantes tomaram o rumo da estrada que levava ao Planalto Central. A Coluna Carlos ia derrubar o inimigo das rinhas.
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quarta-feira, 26 de outubro de 2005

Adrino Aragão: o suor da escrita (Nilto Maciel)

Em 1972 estreou, com Roteiro dos Vivos, o contista Adrino Aragão, no Amazonas. Quatro anos depois deu a lume Inquietações de um Feto, contos de linhagem tradicional. Em 1985 apresentou As Três Faces da Esfinge, mais próximo do primeiro, embora no segundo haja narrativas que não devem ser necessariamente configuradas como contos. Seriam parábolas.

Apesar de os textos de As Três Faces da Esfinge poderem ser chamados de contos, ainda assim Adrino se serviu de técnicas mais modernas para a sua elaboração, como em “Ceia”. Em contrapartida, aqui e ali o contista escorrega e se deixa burlar pelo cronista adormecido e pelo novelista ou romancista abortado. (A expressão "romance abortado” foi usada, em 1894, por Araripe Júnior, ao se referir a livros de contos publicados então no Brasil). É o caso da boa narrativa “Hoje não tem Espetáculo”, na qual despontam alguns trechos de crônica. Ora, como diz Assis Brasil, “a crônica continua a ser um relato, bastante pessoal, e como relato nomeia e descreve acontecimentos, e cria enredos, sem a preocupação de criar uma nova realidade”.

“A Noite na Sala de Jantar” tem outra configuração: não é conto e não é crônica. Talvez seja capítulo de novela. Assim também “Menção Honrosa”, muito mais para anedota trágica do que para conto.

Os temas explorados por Adrino em As Três Faces da Esfinge se circunscrevem quase sempre ao cotidiano, sobretudo de personagens miúdos, da vasta fauna dos desgraçados, como se vê em “Os Pormenores” e “O Sistema”. No primeiro, alguns deslizes, como quando intromete no discurso do narrador figuras eruditas, tornando-o, dessa maneira, falso.

O apego de Adrino a temas mais comuns na prosa de ficção é responsável por outros equívocos. Assim, “Hoje não tem Espetáculo” parecerá, ao leitor mais experiente, alguma história há muito contada e recontada. Também o tema de “A Noite na Sala de Jantar” tem sido muito explorado: o fascínio doentio exercido pela televisão. Da mesma forma o tema de “Iniciação de Olga”, apesar de configurar um bom conto. A literatura está repleta de histórias de prostitutas, desde clássicos como Bubu de Montparnasse até o caboclo Doutora Isa, de Juarez Barroso. A função precípua do ficcionista não é criar enredos novos, porém é preciso sempre estar atento a esse aspecto.

Adrino Aragão se dedica também a temas grandiosos, tratados por escritores do porte de Thomas Mann, como o da angústia do artista frente à vida e à arte. Como os temas da loucura e da velhice, este magistralmente tratado em “As Tias”.

Feitas essas restrições, de leitor exigente e casmurro, uma última palavra – Adrino Aragão é dos poucos que saíram íntegros do turbulento carnaval literário iniciado nos anos 1970. A grande maioria dos foliões daquele período dançou, escorregou e foi ao chão. Ou se despedaçou, apesar de ter publicado livros e mais livros, aparecido em jornais e revistas e até posado de galã na televisão. Tudo em vão. Adrino continuou suando, não como folião, mas como laborador de contos. Sem confete e sem serpentinas.
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Romos (Nilto Maciel)



Os teus príncipes são como os gafanhotos, e os teus chefes como os gafanhotos grandes, que se acampam nas sebes nos dias de frio; em subindo o sol voam embora e não se conhece o lugar onde estão. Os teus pastores dormem, ó rei da Assíria; os teus nobres dormitam; o teu povo se derrama pelos montes, e não há quem o ajunte.
Naum, 17.18.

Chamou-nos de lá, do alto ou do fundo da terra, um Messias novo, uma voz interior apocalíptica, a necessidade de salvação urgente ou seja lá o que for. Abrimos os olhos, avistamos a névoa misturando-se às nuvens, o verde empalidecendo, e corremos irmanados pela estrada que leva aos píncaros da serra, lá onde os jesuítas ergueram um castelo no meio de seu feudo.

Já pisamos meio caminho de subida. Ainda avistamos a via-sacra, que não mais tocamos com os pés, para não nos comprometermos com as obras dos que fabricaram nossa desgraça. As borboletas ainda poisam sobre nossas cabeças, enchendo-as de fantasia. Recordamos as mãos invisíveis que nas noites intermináveis suspendiam nossas redes até às telhas. Embora nos firamos nas urtigas traiçoeiras, estamos catando flores silvestres, para não nos esquecermos destas cores, quando penetrarmos as grutas sem luz. Já chupamos todas as mangas que o tempo derrubou no meio do caminho e debaixo das mangueiras dos sítios que ladeiam a estrada. Já nos lavamos dez vezes nas águas apressadas e frias das levadas. Descemos, os mais afoitos, ao Poço da Moça, para nos banharmos de coragem, e pulamos as altas e gigantescas pedras por onde as águas do rio deslizam e onde as lavadeiras passam seus dias. Penetramos as hortas e devoramos as verduras que os moradores cultivam para a ceia dos padres. Como se para assistir à destruição das cidades da campina, voltamo-nos de defronte ao castelo para uma última visão da nossa, sem medo de nos convertermos em estátuas de sal. Tudo pequeno e distante. Uma nódoa esbranquiçada no meio do verde do vale. Decididos e medrosos do passado e do embaixo, vasculhamos os três pavimentos do velho seminário e escutamos as vozes perdidas dos meninos que lá brincaram, rezaram e estudaram. Na saída, batemos a cachorra, para assustar os fantasmas que habitam a tristeza das noites. Corremos, suados e sedentos, para a bica da barragem e nos lavamos um a um. Subimos a parede e nos ensopamos de sujeira. Pelas enormes fendas as águas escorriam, ameaçando estourar a sólida parede. Por precaução, voltamos à estrada e tomamos o rumo de Caridade. Não mais uma estrada, apenas uma vereda. Cansamos mais e parávamos de instante a instante. Entretínhamo-nos a ver as grandes formigas pretas, chupávamos os coquinhos das babaçus descomunais que nascem no fundo dos abismos e vêm mostrar suas folhas no alto onde a vereda se fez, e escutávamos os cantos dos pássaros, para esquecermos os ferimentos que as pedras faziam em nossos pés. Mil vezes cansamos, mil vezes descansamos. Quando lá chegamos, mal tivemos curiosidade de escancarar as portas e janelas do casarão. Acampamos nos treze degraus e na calçada em sombra, voltados para o vale já muito distante e já muito embaixo. No quintal, porcos comiam jaca, galinhas beliscavam o chão, laranjas e tangerinas apodreciam nas árvores. Mais adiante, engenhos de cana tomados de mato. Um abandono completo. Estávamos novamente suados e sedentos. Sabíamos que havia uma bica mais no alto. Subimos por outra vereda. Encontramos uma casinha de taipa, a casa do antigo morador, desabitada e prestes a cair. No chão, uma baladeira. Voando e cantando, pássaros variados. Bebemos água límpida que escorria de um cano. A bica estava cercada. Nada mais havia a ver sobre o chão. Restava buscar as grutas. Regressamos para tomarmos a vereda perigosa que leva à Gruta dos Morcegos. Outro abismo nos esperava. Seguimos, prudentes. Tropeçamos em árvores caídas, em galhos ressequidos, em folhas de palmeiras. Chegamos à gruta e tratamos de escalá-la. A areia era negra e fina como pó de carvão. Sujos, arrastamo-nos sobre a grande pedra e partimos em busca da caverna. Espantamos os morcegos e as cordas que pendiam dos tetos de monólito e descemos pela profunda grota que leva ao interior da terra.

Nós já fomos pacatos, trabalhadores e puros. Construímos esta cidade em mais de cem anos. Alimentamos meio sertão de frutas e legumes. Exportamos café para os brancos do Sul e gênios a quem nunca erigiram uma estátua. Outrora aqui os primeiros homens da terra viviam no Éden. Depois vieram os portugueses e os jesuítas e começou nossa ruína. Odiamo-nos, matamo-nos, roubamo-nos, caluniamo-nos, atraiçoamo-nos, tornamo-nos Madalenas, traímos nossos esposos e nossas esposas. Nossos comerciantes faliram nos bares, cassinos e cabarés. As moças foram desvirginadas e os moços se entregaram à vadiagem. De adoradores da Natureza, passamos a adoradores de estátuas. E, não suportando mais nossa traição, assaltamos os altares e profanamos os templos, mesmo antes da fuga dos padres, que abandonaram os conventos, os seminários e as igrejas. Esquecemos o latim, a missa, as orações e a Bíblia. E, inexplicavelmente, pisoteamos os jardins, desfolhamos os benjamins, desmatamos a serra, sujamos de sabão e sangue as geladas e límpidas águas de nossos rios, agora divididos por cercas de pau e arame aqui e acolá, margeados por cruzes e monumentos aos que roubaram os pobres, queimamos os cafezais e nos alimentamos hoje unicamente de banana e manga, que mal alimentam os poucos pássaros que não fugiram para o sertão. Derrubamos os velhos casarões ou deles fizemos bares e albergues de mulheres longínquas para nossos homens corrompidos. Erigimos por todas as cercanias casebres de taipa, fazendo de nossa cidade uma Canudos pequena. E, num passado recente, adoramos os ditadores europeus e nos destroçamos em defesa de ideais diabólicos, esquecidos de nosso verde e de nossos cento e tanto anos. Hoje morremos raquíticos aos trinta anos, quando não nos assassinamos aos vinte ou somos levados pelas águas ardentes aos quinze, frágeis que já somos, degenerados que já estamos.

Por tudo isto, estamos fugindo, por tudo isto, temos que fugir, abandonar esta Sodoma serrana, esta Jerusalém de taipa, e nos refugiar nas grutas mais escuras e mais profundas desta serra farta.

Estamos descendo este rio, sem rumos, sem ramos, sem remos, mas rimos, rimos, rimos
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sábado, 22 de outubro de 2005

Cavalos de Troia (Nilto Maciel)


No telhado do Caffe Portuguez pombos arrulhavam. Um casal se beliscava sobre um dos jacarés. O alto-falante cantarolava uma valsa. “Eu quisera, por vingança, ver teus olhos de criança na tristeza de outros olhos”. Súbito o locutor soqueou o microfone e, galhardamente, anunciou: “Atenção, atenção! Nossa cidade está sendo invadida por móveis metálicos...” E se engasgou, enquanto os pombinhos, assustados, debandavam.

Mulheres e criancinhas, apavoradas, olhos arregalados, debruçaram-se nas janelas. Meninos que jogavam bola-de-meia na rua, de um pulo se esconderam atrás das portas. Burros se aterraram e, com suas carroças e seus carroceiros, subiram as calçadas. No atropelo, uma galinha perdeu a vida.

Apesar de tudo, o cortejo seguia seu caminho, invadia a cidade, garboso, solene, sorridente, como cavalos de Tróia vitoriosos. No primeiro automóvel apenas um homem. Nos outros dois, rapazes de variadas feições, nunca dantes vistos por aquelas redondezas.

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Aos poucos, o estupor geral desapareceu. As carroças voltaram a ranger nas ruas tortas, conduzidas pelos mesmos velhos burros. A meninada tornou a correr atrás de suas bolas. O alto-falante irradiou novamente valsas de amor. Os pombos regressaram ao telhado do Caffe Portuguez, com seus arrulhos intermináveis. De novidade, só missas em latim e sermões gritados contra o progresso e a máquina.

Os cafés, porém, se encheram naqueles dias. Os homens beberam e jogaram mais, e não pararam de falar na riqueza e no luxo do filho de Daniel Montefusco. Nem os novos filmes de Buffalo Bill despertavam interesse. Os peles-vermelhas morressem sós. O operador fosse matar as pulgas do Cine Brazil.

Nas calçadas, à noite, enquanto a lua brincava de esconde-esconde com nuvens e estrelas, entoada a Ave-Maria, transmitida a Voz do Brasil, as mulheres contavam histórias sem fim de minas e minas de ouro, fortins holandeses recém-descobertos, fotografias escandalosas, onde aparecia, entre o mar e a terra, um rapaz muito galante, cercado de mulheres extraordinariamente exóticas e impuras. Há muito a filha do boticário se perdera no Beco da Onça com o respeitável Josué Montezuma, armazenista de secos e molhados, devoto de Santa Luzia, que o livrara da cegueira quando menino, casado com a digníssima Nazaré da Conceição, cuja mocidade se fora nos braços do hoje invejável Daniel Montefusco...
A lua brincava de esconde-esconde com nuvens e estrelas...

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No decorrer dos dias e das noites, a cidade se encheu de outras novidades. Uma bodega cerrou suas portas, após seu dono se enforcar. Um homem espetou sua esposa. Algumas mocinhas tornaram-se definitivamente tristes. Um rapaz muito galante fugiu, deixando diante da casa de Daniel Montefusco dois cadilacs, onde meninos brincam de esconde-esconde.
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Nagib Jorge Neto: Cordeiros e lobos (Nilto Maciel)



Inicia Ivan Cavalcante Proença o ensaio “O Verão (e não a seca) Voltará” assim: “As Três Princesas Perderam o Encanto na Boca da Noite", estória-título, é cordel, variante em prosa, lembrando conto. Mas cordel. Em todas as suas constantes e na estrutura que o sustenta”. Referia-se ao segundo livro de Nagib Jorge Neto. O terceiro, de título mais fabuloso que cordelesco, é O Cordeiro Zomba do Lobo. Apenas o título, porque a maioria dos contos é mais cordel do que fábula, apesar de existirem semelhanças entre certo tipo de literatura popular nordestina e o fabulário em geral. Como a maioria dos escritores, certamente Nagib quis dar ao livro um título pomposo, desses de chamar a atenção do leitor, não se preocupando tanto com a identidade do título com a narrativa.

Já Ariano Suassuna havia encontrado no maravilhoso conto “O Sinal Misterioso”, do primeiro livro, “uma espécie de ‘folheto às avessas’’’. Quase todos os contos trazem a marca da poesia popular nordestina. Assim, “A Fumaça dos Combates” lembra folhetos de bravura, enquanto "Um Anjo Desnuda Margarida” e “Adeus, Rosa, Até Um Dia” têm raízes nos folhetos de safadeza. “Os Elefantes Cor-de-Rosa” e “A Queima dos Lenços Vermelhos” têm muito dos folhetos de política ou de época.

Outros contos, porém, fogem tanto da fábula como do cordel, aproximando-se do realismo-mágico hispano-americano. Vejam-se “A Segunda Morte do Padrasto”, “Uma Certa Mancha de Sangue” e “Rita Vai, Rita Vem”.

Nessa mistura de estilos, Nagib Jorge Neto acaba alcançando o espaço da lenda, da história de trancoso e do conto popular, em que aparecem, como personagens, reis, princesas, súditos, arqueiros, escudeiros. E vai beirar o armorial de Suassuna e o folclórico, o mágico e o maravilhoso de Hermilo Borba Filho, como no conto “O Exílio do Rei”, sem, no entanto, deixar de ser cordelesco.

Embora o erótico seja um elemento de larga presença na obra de Nagib, alcançando a plenitude em “A Violação Inútil”, incluído no segundo livro e indispensável numa antologia do conto erótico, a bravura, uma constante na literatura de cordel, é quase que o elemento preponderante. Nada, ainda assim, de cangaceiros e valentões do sertão. São lobos e cordeiros em luta, guerreiros, revolucionários, patriarcas, cavaleiros e outros tipos do romanceiro popular do Nordeste.

Com O Cordeiro Zomba do Lobo, Nagib Jorge Neto assegura seu lugar entre os poucos contistas brasileiros voltados para a feitura de uma literatura perene, longe das repetições e dos modismos.

O Presidente de Esporas é anterior à “prosa ritmada” e ao “mundo maravilhoso” de As Três Princesas Perderam o Encanto na Boca da Noite. Os contos (Nagib denomina sempre de contos as suas histórias) “As três princesas perderam o encanto na boca da noite” e “O erro de Deus e as pragas do Diabo” têm idêntica construção à de “O sinal misterioso”, embora o segundo verse problemática mais epopéica.

A literatura de Nagib tem raízes em Homero, na Bíblia, no trovadorismo, no romance de cavalaria. “A espada do anjo Gabriel” faz lembrar aquele povo bíblico, ainda sem “Deus”, às vésperas de Cristo ou, antes, de Moisés, que imporia suas leis misteriosas e jamais imaginadas pelo homem saído das cavernas.
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segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Detalhes interessantes da vida de Umzim (Nilto Maciel)


PARTIDA/INTRÓITO
Um chorinho ecoou na tapera de Zeferino, erguida durante a entressafra passada num serrote do Candeia. A cabana toda estremeceu – do alicerce ao teto de palha de coqueiro. Era um serzinho raquítico, quase ninguém, deitado numa fianga. Sentia fome, calor, amargura, como nos duzentos e tantos dias anteriores não sentira. Vontade quase danada de regressar. E, não fossem o sangue materno e as mãos nodosas da velha cachimbeira, voltaria ao útero. Tudo um caos, só comparável ao existir doravante e ao morrer dali a tantas léguas.

QUASE REGRESSO

Doeu-lhe feroz nas entranhas uma diarréia dos diabos e abateu-se-lhe sobre os pouquinhos quilos uma febre ardorosa, quase mortal. Um sofrer semelhante ao nascer, se a tanto ousa alcançar a medida humana.

NOITE DE NATAL
Rezaram velhas rezas as desdentadas bocas dos pais. Na igrejola de pau-a-pique, uns cânticos medievais mostraram-lhe um arremedo da Beleza criada por homens de muito saber e profundo sentir nos mosteiros distantes. Um antigo presépio de gesso imitou os mil e novecentos e um anos do deus dos pobres ocidentais. E foi tão grande a alegria de todos, que dele esqueceram o primeiro mês.

TU ÉS CHIQUIM
O pai borrifou-lhe a carapinha nascedoura com respingos de cachaça, chamando-o Chiquim. Mas só depois, muito depois, quando Seu Gabriel prometeu mundos e fundos aos seus moradores, o menino se fez Francisco do Nascimento Silva.

PRIMEIRO 25 DE NOVEMBRO
Impossível esquecer-lhe o primeiro aninho. E sua mãe, então mãe novamente, sorriu e chorou, cantou e falou. Seu Chiquinho o primeiro embate gregoriano vencera. O pai sorriu e falou, bebeu e cuspiu, comeu e dormiu, arou e pensou, sofreu e gozou.

APELIDO
Umas datas passadas, Francisco resmungou qualquer “um” ou “un”, “hum” ou “hun”. Destarte, principiou a longa caminhada pela difícil estrada da língua materna e paterna. E assim seus pais gracejaram, que ainda era tempo de graça fazer, e o chamaram de Seu Umzim. A vizinhança e, especialmente, a garotada gostaram do apelido deveras fácil de pronunciamento, deveras lido na boca de todos.

CRESCIMENTO
Tanto “um” ou “un” Chiquim pronunciou, que não mais esquecer podia o estreito mundo do Candeia o nome fácil do primeiro filho de Zeferino. E Umzim trepava mangueiras, nadava riachos, devorava bananas. E ainda ajudava o pai no labor contínuo de lavrar as terras de Seu Gabriel. Nem esquecia de sempre resmungar: um-hum-un-hun.

BANHO FATAL
E como acontece fatalmente, quer haja sol, quer haja lua, um dia Umzim virou, sem quê nem praquê, os olhos pretinhos pro corpo banhado de Joaquina franzina. Seu mínimo dedinho se fez rijo demais, num instante. E a mão já calosa foi pra lá e pra cá, pra lá e pra cá.

FATAL DE NOVO
E como também sempre acontece, quer seja Zeferino, quer seja Estaline, um dia o pai de Umzim foi conduzido debaixo de vara pro fundo da terra que tanto lavrara. Deixava chorosa sua gasta mulher e sem porra nenhuma uma penca de filhos, de doze a um anos.

PANELADA E AMOR
Luto passado, Umzim resolveu dar uma de macho e foi à cidade comer panelada. Ou então se lembrou da conversa de dois seus bons companheiros e, pé ante pé, buscou o retiro das mulheres da vida. Queria provar o sabor do amor e testar seu calor de noivo de Rita, bonita morena das bandas de lá do Riacho da Pedra.

DIVERSÃO NO TERREIRO
Dez anos depois, esquecido do amor das mulheres da vida, nasceu-lhe o décimo de uma série de filhos. Finados já seis, os quatro restantes se divertiam com minúsculas bolinhas, semelhantes a grãos de café. No terreiro, magros cabritos soltavam brinquedos para os filhos de Umzim.

FUGA
Quando, por ordem estranha, foram queimados os cafezais, Umzim decidiu tomar o rumo da cidade, onde se comia pão e se estendia a mão. E foi pedir a proteção de Deus Nosso Senhor e do Doutor Comendador.

APENAS UM
De tanto pedir, não morreu Umzim, nem também Siá Rita. Mas de disenteria um dos moleques se enterrou no velho campo-santo.

NOVA VIDA (?)
Secos os rios, secaram as bocas. E, como fosse muita a sede e bem maior a fome, Umzim, mulher e filhos juntaram os trapos e pegaram o trem. Nova vida na capital.

BOLINHO DE ARROZ
O trem parou, o sol se escondeu e uma lata de lixo se aproximou. Dentro, bem dentro, Umzim encontrou um belo e apetitoso bolinho de arroz. Dividido em cinco iguais pedaços, o bolinho desapareceu magicamente.

PRIMEIRO DE ABRIL
Numa casa modesta de uma rua comum, Umzim bateu palmas e pediu esmola-pelo-amor-de-deus. Antes, porém, de dizerem “perdoe” ou “espere um pouquinho”, um carro parou às costas de Umzim. Dele saltaram fortes rapazes, entraram na casa da esmola esperada e dela um jovem arrastaram. “Comunista safado”. Umzim, mui medroso, fugiu, sorrateiro.

A CIDADE COMEU ROSINHA
Sob a marquise do Cine Diogo faltava Rosinha, levada pra longe ou pra perto ou pra onde a boca do mundo mais gulosa estivesse. Mas Umzim não chorou. Nem chorou Siá Rita.

LAR, DOCE LAR
Um dia, já tonto de tanto rodar, Umzim descobriu uma ponte sem rio. E debaixo erigiu, cantando um xote animado, seu lar mais perfeito, porque de concreto bem feito. Logo, porém, outros tantos e tontos por lá se abrigaram.

TRAGÉDIAS
Em noite sem lua, num monte de cinzas e brasas, queimou-se o filho mais novo de Umzim. E do hospital não voltou. Outra noite de lua, Siá Rita dormiu com outro pedinte.

DORMIDA FINAL
Ontem, só ontem, Umzim quis dormir num banco qualquer de uma praça. Antes tentou o coreto da mesma, repleto de fezes e outros fedores. E dormiu noite adentro. Hoje um jornal, sem manchete e sem cruz, num canto de página, estampou sua foto de mendigo morrido. De fome ou de frio? Ferido de amor ou de dor muito longa?
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Socorro Trindad: misturando o joio e o trigo (Nilto Maciel)

Até onde somos sempre outros? A pergunta vem a propósito do livro Cada Cabeça uma Sentença, de Socorro Trindad. Nas metáforas do conto “J.D.” se lobriga um característico “paranéico”. Se se fizer uma leitura do livro, partindo-se da narrativa mencionada, passando-se por “Dever de Casa”, “A Tocha” e “O Elevador”, e atingindo-se relatos substancial e formalmente políticos, como o que dá título ao volume, chegar-se-á, por associação de idéias, à seguinte conclusão: Socorro Trindad percebeu, ou ideou, que a realidade objetiva não é senão a concretização da grande tragédia de viver.

Mas quem poderá querer separar o joio do trigo? Bem diz Aguinaldo Silva, no prefácio: Socorro Trindad tem por objetivo “guiar o leitor, através do labirinto da palavra, até o reconhecimento do universo de violência e repressão em que ele vive”.Assim, metáforas como “A Tocha” e “O Elevador” não terão aquela mesma força sugestiva de O Processo, de Kafka, no qual muitos vêem o pecado original, enquanto outros vislumbram apenas um cru relato dos tempos de tirania.

Dois outros contos do livro, semelhantes na forma, dão melhor idéia dessa simbiose realidade-irrealidade. “O Massacre no Mangue” é uma crônica atualíssima de sabor página policial, até estilisticamente, e também à maneira do romance gótico. E aqui se manifesta o nó da questão. Como desconhecer o fantástico dentro da realidade? Veja-se o papangu das festas populares. O segundo conto, “A Casa dos Papangoos”, mais parece crônica de colonizador. A contista justifica a inovação introduzida no documento: “a falta de datas nos levou a uma montagem arbitrária, deixando-se de lado a ordem cronológica e levando-se em conta apenas o fato em si”. Os papangoos existem? São homens como os demais ou apenas animais (povo degenerado) disfarçados de homens? Usam traje e corte da cabeleira diferentes dos homens. Ou dos demais homens. A alegoria é exuberante, como nos desfiles carnavalescos, em que os carros alegóricos conduzem figuras de reis, papangus, arlequins e outros coleópteros. Frise-se: um dos sinônimos de papangu é bobo. E pode ser até bobo da corte.

Não sabemos se a metáfora tende a se aprimorar em tempos difíceis. No entanto, uma alegoria como esta dos papangoos tem o condão de sacudir o leitor do que uma narrativa nos moldes tradicionais.

“João, Metralha, Maria” pareceu-nos o relato mais parecido com conto, sem ser mais um conto sobre o marginal do morro. Ao seu lado está “A Tarefa”, embora também ao estilo crônica de colonizador.

Socorro Trindad tem duas virtudes essenciais: o poder de misturar o joio e o trigo e uma esplêndida cultura literária. Leia-se “Bodas de Ouro”, história de trancoso tão extraordinária como as do arco-da-velha.
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quinta-feira, 13 de outubro de 2005

As fantásticas narrações das meninas do São Francisco (Nilto Maciel)


No princípio era o Verbo...
O Evangelho Segundo João

Quase sempre estávamos sentadas nas ribanceiras, ou nas pedras lisas das redondezas, ou caminhando ao longo do rio, pisando aquelas areias ribeirinhas, ou passeando de barco, rio acima, rio abaixo, contando intermináveis histórias para nosso pai que nos ouvia atentamente e, às vezes, rindo, como se disséssemos as palavras mais engraçadas do mundo. Retirávamos nossas histórias do mais fundo de nossa memória de crianças nascidas na beira do rio e nos sentíamos como pequenos animais indomesticáveis, livres e puros. Ele nos ouvia, calado, muito pensativo, como se disséssemos grandes irrefutáveis verdades, como se fôssemos sábios antigos, a quem estivessem confiado todos os segredos da Terra. Para que não falássemos nós apenas, permitíamos que ele fizesse perguntas, que interrompesse nossas narrações, que fizesse reparos, quando nos deixássemos levar pela pura imaginação. Mesmo assim, ele permanecia calado ou sorridente, os olhos brilhando de muita alegria. Então, alguma de nós fazia perguntas, muito tolas, às vezes, para forçá-lo a falar, a perguntar, ao menos. Mas ele apenas sorria ou levava a sério o que estávamos fazendo, como se fôssemos criaturas superdotadas, incapazes de dizer tolices, como se não fôssemos apenas suas filhas mas criaturas de outro mundo, que tivessem vindo com a exclusiva missão de contar-lhe histórias.

À noite, na nossa cabana, iluminada pela lua e pelas estrelas, ele escrevia como um louco, sem parar, apressadamente, escrevia cadernos e mais cadernos, enquanto dormíamos, cansadas da tagarelice e dos passeios diurnos, incrivelmente felizes, como se tivéssemos praticado os melhores atos do viver, como se tivéssemos erigido pirâmides, repletas de alívio, como se tivéssemos jogado fora os grandes fardos que pesavam dentro de nossas cabeças. Muitas vezes, quando acordávamos, ele ainda estava a escrever, com sua mão esquerda, os olhos quase pregados no papel, sonolento.

Muitas das histórias que contávamos eram essencialmente horrorosas, cruéis, desumanas, e nos faziam sofrer muito e chorar demais. Sofríamos e chorávamos juntos, nós e ele. E nos compadecíamos uns dos outros, nós dele e ele de nós. E era pior, mil vezes pior do que a solidão. Ele então nos prometia brinquedos, para que não nos atormentássemos tanto. Jurava que desceria o São Francisco em busca de pérolas, de caracóis, de querubins, de totens e mil outras coisas que desconhecíamos. E saíamos juntos na nossa barca, descíamos o grande rio, dias e noites sobre as águas, na direção do mar que nunca víramos, esperançosas de encontrar na foz não o que ele nos havia prometido mas nossa mãe perdida ou levada por pescadores aventureiros, causa maior de todo o nosso tormento. Contávamos então histórias de sereias, de serpentes marinhas, de grutas no fundo do mar e, quando sentíamos saudades de nossa cabana, abandonávamos a barca e regressávamos, esquecidas do mar desconhecido, dos brinquedos prometidos e de nossa mãe perdida, caminhando às margens do rio. E corríamos, brincávamos e contávamos histórias de peregrinos e perdidos. Quando cansávamos, deitávamo-nos nas ribanceiras solitárias, sonhávamos com morcegos violadores de virgens, acordávamos, assustadas, gritando estranhas palavras, e passávamos a contar histórias tão alarmantes quanto nossos sonhos. Nosso pai se retorcia, abria e fechava os olhos, resmungava e voltava a roncar. E, quando regressávamos, fazíamos uma festa em cada lugar: na cabana, dentro do rio, debaixo das árvores, nas ribanceiras, no alto dos coqueiros. Fantasiávamo-nos de mil maneiras, imitando os pássaros, os peixes, as serpentes e os quadrúpedes.

Muitas vezes, sentados ou deitados debaixo das árvores, dormíamos e sonhávamos transformadas em figuras que jamais imaginávamos possíveis. Quando acordávamos, nosso pai estava escrevendo, como se dormisse, os olhos cerrados. Corríamos para perto dele, olhávamos para o papel e nada entendíamos. Ele se sobressaltava e começava a rir, a rir muito, como se não fosse mais possível deixar de fazê-lo. Nós o acompanhávamos no riso, até que pedíamos a ele que lesse, em voz alta, o que estava escrito. Assustávamo-nos, então, porque havia grande diferença entre o que contáramos e o que ele lia. Pensávamos que tínhamos perdido a memória e chorávamos, desesperadas. Ele ficava triste, chorava também e dizia que, na verdade, não disséramos aquilo mas que ouvira nossas vozes interiores, enquanto dormíamos. Íamos então tomar banho no rio, para nos tornarmos leves e delgadas, capazes de falar do mais fundo de nós mesmas. Brincávamos com as piranhas, sem medo nenhum, nadando e mergulhando, ele nos protegendo com seu olhar, sentado à beira do rio ou navegando em sua galera, como chamávamos, por brincadeira, cada nova canoa que ele fabricava.

Nessa época vivíamos uma grande crise de medo, que era horrível e nos deixava muito tristes, chorosas, magras, feias, pálidas e lerdas, medo que esquecíamos quando começávamos a contar histórias para nosso pai. Nos nossos céus voavam gigantescos morcegos, em grande algazarra, aos bandos, gritando assustadoramente e batendo as asas com estardalhaço. Sabíamos de sua sede insaciável de seiva, pois as árvores murchavam, secavam, como se um sol de fogo as queimasse, e os frutos apodreciam ou desapareciam, como se invisíveis pássaros sorvessem-lhes o suco, deixando-nos sem alimentos para as ceias da manhã, e as pessoas eram cruelmente raptadas e conduzidas para as alturas mais distantes, em vôos espetaculares, onde eram violentadas, exauridas e lançadas, abobalhadas ou sem vida, às beiras dos rios, que desapareciam, os menores, ou se reduziam a riachos, os maiores, como o nosso São Francisco, e os peixes, nossa alimentação predileta, eram devorados aos milhares.

Dizia nosso pai, em momentos de lucidez ou de maior crise, que os tais monstros vinham do norte, afugentados pela matança dos índios. Dizíamos nós, no entanto, que eles vinham de mais longe, das estrelas, pois só apareciam em noites de grande escuridão. Mas pensávamos que nada disso existia, que tudo não passava de fantasia de nosso pai, pois não nos recordávamos de que os tivéssemos visto alguma vez. Críamos até que tudo não passava de mais uma longa história por nós contada, pois costumávamos passar dias, semanas e meses contando uma só história, que absorvia todo o nosso tempo, que tomava conta de nossa vida, que se tornava nossa própria vida.

Um dia, ancorou diante de nossa cabana uma enorme galera e dela descarregaram umas malas antigas. Nosso pai conversou com os desconhecidos, que não pisaram a terra, durante algum tempo, e depois carregou as malas para dentro da cabana. Quando voltamos, a galera já estava perto do mar. Nosso pai nos chamou, abriu as malas e nos mostrou muitos livros, que disse serem as nossas histórias em inglês, francês, alemão, espanhol, russo e outras línguas desconhecidas. Folheamos, um a um, os grossos volumes, rimos das figuras, sem nada entendermos. Ele então começou a olhar para as páginas e a falar umas falas estranhas mas que logo entendemos. E tal era a pujança de sua voz, que os pássaros pousaram sobre nossas cabeças, silenciosos, e as águas do São Francisco pararam de correr. Foi então que vimos pela primeira vez um monstruoso morcego parado no ar. Não nos assustamos mais. Apenas olhamos para o céu e o vimos subir em direção ao sol, para nunca mais voltar.
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quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Mais seis romancistas (Nilto Maciel)


Em Mariela Morta, de Adelto Gonçalves, os personagens vivem num ambiente triste, sombrio e frio como o dos calabouços, repletos de velhice, solidão e loucura. É a vida de todos nós vista pelo ângulo mais horroroso. Atolados no passado, sem perspectiva nenhuma de futuro. Mesmo num conto aparentemente “político”, como “Atentados em Buenos Aires”, o que vem à tona é toda uma carga de solidão, abandono e loucura do personagem – espremido entre a insignificância de nunca ter sido preso (atestado de vida ativa de todo revolucionário) e a necessidade vital de afirmação. Todos os personagens do livro vivem num mundo de trevas – as incríveis e indescritíveis loucuras dos seres reais. Sim, porque somente os “destinados” à criação podem descrever as loucuras. Recriá-las. Porque a loucura de um Agamemnon Gentil é justamente a de seus criadores. A loucura de criar. De criar marielas mortas. Que é como criar adões de barro, dar-lhes vida e, depois, num supremo ato indecifrável e só descritível em livros perenes como a Bíblia, de uma costela sua realizar uma Eva.

Em suma: ao não aceitarem os ditames da sociedade de consumo ou ao não poderem desfrutar o prazer que esta sociedade oferece, as pessoas se marginalizam, se desesperam, se degradam e vão cair no lodo e depois numa vala comum, onde os vermes as vão destruir. Estão todos de corações despedaçados, horrivelmente infelizes, apesar da atordoante apregoação de que tudo vai bem. E vai, exceto para a grande maioria que, por isso ou por aquilo, não encontrou o delicioso caminho da felicidade. Uma felicidade frágil quase desmorona a cada minuto nas ruas e estradas, ensangüentadas pelos acidentes de trânsito. A utopia pregada pelos donos de tudo.

Uma história é uma história? Não importa a resposta ao se falar do insólito livro de Jarbas Valadares Rodrigues, intitulado O Estranho, porque ele mesmo não o qualifica de romance ou simplesmente história. Lembra-nos a Bíblia, repleta de contos, crônicas, escrituras. O Estranho não é um conjunto de contos ou crônicas. Talvez um conjunto de escrituras. E por que não de provérbios, tal como os ensinamentos de Salomão, mesmo porque o autor fez de um desses provérbios a dedicatória do livro? No entanto, os provérbios de Jarbas se vestem de roupagem avessa à dos provérbios do filho de Davi, para quem “os loucos desprezam a sabedoria e o ensino”, entendendo-se por sabedoria a razão institucionalizada. Ora, os loucos são sábios e ensinam mil vezes mais do que os são e os ludimagisteres, como o Homem das Latas desta estranha história, quando confessa: “me dizem que sou louco/ só porque vejo nos matizes do arrebol/ pequeninos fetos que dos vidros de formol/ me recitam versos dos quais sei bem pouco”. O Estranho é, pois, um livro de sabedoria e ensino.

O Rio da Noite Verde, de Eulício Farias, é o monólogo interior de um jovem também perdido, mas agora em si mesmo, porque vagando dentro de recordações, de medos, perseguido por fantasmas que o ameaçam de castração, fantasmas incestuosos, malignos. Perdido não no meio da selva, mas num ponto, num porto-seguro do deserto, do sertão – a casa de seus tios.

O Menino que veio do Mar, de Luiz Paiva de Castro, não pode deixar de ser tomado como um paliativo para as nossas dores adultas e também como um ensinamento. Este pequeno romance (são apenas 50 páginas) nada deixa a dever aos grandes romances, se se levar em consideração a simplicidade que o informa e o torna belo. Simplicidade formal, parágrafos curtos, linguagem acessível a todos os alfabetizados, presença dos tradicionais diálogos e a própria narrativa linear fazem da história de Luiz Paiva de Castro uma obra interessante e original. Tem animais como personagens, embora secundários. A serpente, cujo mito (bíblico) é redescoberto e recontado, aparece distanciada da simbologia do mal. No entanto, o personagem principal é o menino que nasceu numa concha, dentro de um barco, no mar, e que, já no país dos pássaros, no país do azul, veio a se chamar de Suikirana.

O menino – símbolo da beleza, da bondade, da infância, da humanidade em conluio com a natureza – desejou conhecer o mundo fora das águas. Em companhia da serpente, guiados pela lâmpada – a sabedoria – conheceram o mundo dos pássaros, dos bichos, os campos e as cidades, o andarilho e, numa viagem ao presente, às crises agudas da humanidade, conheceram o rei do petróleo.

Cordão de Prata, de Manoel Lobato, tem pouco mais de 40 páginas, em tipo grande. Entretanto, parece-me ter lido algo assim como Os Irmãos Karamazov, tão impressionado me deixou a leitura dessa pequena jóia literária.

O livro é a história de Pagulogo, misto de mendigo e louco, que não conseguia exprimir nada além de um “é”, quer para negar, quer para afirmar. Não roubava, não pedia, não comia quase. Alimentava-se de álcool. Aguardente, enquanto assim acharam por bem os donos dos bares. Depois apenas álcool misturado a água, presente diário de seu protetor, o farmacêutico.

Para contar a história de Pagulogo, o narrador necessita também contar um pouco da vida de Helena, a menina vadia que um dia vira afilhada de D. Cátia, a dona do restaurante junto à farmácia. Em conseqüência, D. Cátia tem também sua vez na narrativa, embora em menor grau. E, por último, aparece o sargento Ventura, o algoz de Pagulogo, aquele que lhe cegou um olho num dia de maior violência.

Cordão de Prata é dividido em 18 pequenos capítulos. O narrador é homem de conhecimentos livrescos mais ou menos variados, como latim e grego, além de farmacologia. Apesar disso, a linguagem é acessível até para o leitor estreante, quer pela sintaxe, quer pelo vocabulário. Isto não quer dizer que o leitor mais calejado não vá degustar o livro também. São cinco personagens, no máximo: o narrador inominado, Pagulogo, Helena, D. Cátia e o sargento Ventura. O narrador é um farmacêutico solteirão, em perpétua guerra interior: bate nas crianças abandonadas e depois resolve proteger uma delas, Helena, pensa em matar Pagulogo, e termina dando-lhe um banho.

Em 85 páginas de muita emoção, suspense, ação, Enchente Negra, de Jair Vitória, tem enredo simples: dois peixinhos apaixonados vêem seu amor correr perigo por obra de um dom-juan, enquanto suas próprias vidas e de todos os habitantes do rio onde nasceram e vivem são ameaçados por misterioso inimigo.

A grande virtude de Jair Vitória está, porém, em saber conduzir a narrativa num mesmo diapasão de suspense até o seu final, sem privilegiar nenhum dos temas. História de amor e tragédia. Amor de duas criaturas, tragédia para milhares de seres vivos.

Fosse apenas mais uma história de amor, mesmo entre peixes, e a narrativa não teria, talvez, a menor importância. Sobretudo porque o clássico triângulo amoroso, se não tratado sob novas formas, se apresentado com técnicas tradicionais de narrar, pode se assemelhar a novela de televisão.

Enchente Negra é uma denúncia oportuna à ação daqueles que envenenam a natureza, causando morte e destruição. Não há, todavia, qualquer frase incendiária em todo o livro. A linguagem, de tão serena, pode até parecer metafórica, porque até mesmo o narrador se restringe a falar de misteriosas nódoas negras, de um veneno que flutua nas águas, vinda da parte de cima de uma cachoeira.

Jair Vitória demonstra conhecer a fundo a vida no campo, os rios e seus habitantes. E é verdade, pois nasceu e viveu durante algum tempo numa fazenda do Triângulo Mineiro. Demonstra também estar consciente de problemas graves de nosso tempo, como a poluição. Por isso, Enchente Negra é livro para ser lido e discutido, sobretudo nas escolas, embora não devamos cair na asneirice de deixar de lado as obras clássicas e adotar apenas as obras de uma literatura nova, engajada, de denúncia. O divisor de águas não deve ser este, mas o da qualidade literária.
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terça-feira, 11 de outubro de 2005

As sete onças de Neo (Nilto Maciel)

Para Juarez Barroso,
que não deixou de sonhar.






"De repente, nós ouvimo o esturro duma onça trigue, que há muito vinha fazendo estrago no gado. Pedi um rifle ao dono da fazenda, saltei a cerca do curral e, entrando no cercado do Doutor João Urso, avistei em vez da onça um veado e fiz fogo nele, nas errei o tiro e matei foi o diabo duma vaca que se achava adiante, pastando..."
Leonardo Mota, Sertão Alegre (Sonhou com o “Bicho”)




Escalafobética, sim, demais, Seu Doutor. Sistema duma coisa não passada, dum marco. Porém eu trago a história todinha na ponta da língua e posso contar inteirinha, se o Senhor não se aborrecer. Não? Então escute. Era uma casa grandona, cheia de compartimentos, enorme. Por dentro e por fora parecia muito antiga, mais velha do que a serra. Eu até me lembrei do sobradão do Dr. João Ramos, com suas cem janelas. Mas não devia ser um sobrado, não, porque se fosse, em vez de telhado tinha era tabuado. Se eu estivesse no andar de riba. O telhado era de telha mesmo, como de fato era. Porém, em vez de chão de barro ou de tijolo ou de cimento – que esses ricos têm mania de cimentar o chão – tinha era tabuado. Mas isso não vem ao caso. O diabo é eu não me lembrar o nome daquela rua. Podia ser a Tristão Gonçalves. Não, é só impressão. E nem podia ser, porque por lá tudo já está muito civilizado, tem calçamento, casa de tijolo, rádio, moça-donzela estudando piano e essas coisas todas da cidade.

De qualquer forma, a rua ficava pros lados da Parangaba. Pro lado do mar não há de ser, não. Para encurtar a conversa, vamos deixar de lado a questão da rua e começar a história. Pois bem: primeiro apareceu uma baita duma onça-preta, tão preta que não dava pra enxergar se era o couro dela ou a noite que vinha se remexendo feito feme de reboque. O Senhor sabe: esta tal tem a volta muito mais perigosa que o jaguar. Isso se deu no alpendre. Pois a bicha vinha toda faceira, roncando, naquele andar preguiçoso de quem não quer nada e querendo. Boi brabo, chegando na terra alheia, se faz de manso. Pois a danisca devera de saber que ali não era terra de onça. Não me assustei, não Senhor, que um homem é um homem e um bicho é um bicho. Pra falar a verdade, não sei nem o que senti. Devo ter sentido só um medinho de nada. Ora, com fera não se brinca, por mais valentão que se seja. Não sou um Lampião, mas também não sou desses cabras frouxos que se mijam todo por qualquer besteira. Então fiquei de molho. Isso depois de imaginar o que havera de fazer. Mal avistei aquela ruma de pretura passeando no meu rumo, fiquei todo soberbo, de priquita queimada. Controlei o suspiro e fui me encostando na parede. Talvez ela passasse sem me ver e fosse embora. O Senhor sabe: é bom evitar. Não, eu não estava com medo de morrer nas unhas dela. Eu nunca nem imaginei isso. Ora, se eu nunca morri nem quando briguei com três cabras, num quebra-rabicho lá em Guaramiranga. Eles armados cada um com uma pajeuzeira maior do que a do Titico meu irmão. Depois eu vou falar dela e dele. Além disso, carregavam três jucás. E eu só com uma quicezinha de nada! Juro por Deus, eu nem pensei na morte! Apenas tomei cautela, que por causa duma esporada se perde uma vaquejada. Se eu fosse com lorota, ela se espantava e adeus caçada. Ora, aquilo pra mim não passou de uma caçada, a caça chamando o caçador. Então esperei que ela me avistasse, porque estava escuro de meter dedo no olho e aposto como a coitada também não me enxergava. Ia ser uma covardia sujigar a bicha sem avisar. Eu não sou dessa nação de gente. Negócio de tocaia não é comigo. Isso fica pra cabra medroso que não tem coragem de olhar de frente o inimigo. Quando ela me enxergou – e digo isso porque avistei aquelas duas tochas rumando na minha direção – quando ela me enxergou, dei uns dois passos também na direção dela, pra não ficar pra trás. E pensei cá comigo – essa é das grandes e vai querer passar por cima de mim, me pisar, me lamber, me arrastar pro mato. E lá vinham as duas tochas crescendo no meu rumo, alumiando tudo, numa macieza de deixar qualquer cristão sem fala. E quando já estavam pra me queimar, apalpei os cós das calças e... cadê faca? Fiz o Pelo-Sinal, me agarrei com a minha Santa Luzia pra me alumiar os olhos e enxerguei o pau-furado no canto da parede. Mais que depressa, apanhei o desgraçado e... Ainda hoje não sei como se deu aquilo. Eu nunca deixo de trazer comigo essa faquinha aqui, porque sou dado a varar noite por esse Mucuripe, por essa Parangaba e até pela Caucaia. Como o Senhor há de saber, lá só dá jararaca do rabo fino, que mata por brincadeira. Não que eu seja uma cobra de chifre, ande fazendo arruaça, acabando samba e atirando à toa. Deus me livre disso! Eu sou até assim meio besta, não digo frouxo, que é outra coisa muito diferente. Eu carrego uma opinião comigo: se eu vejo a coisa preta, vou saindo de mansinho e escapulo. Ora, quem não muda de caminho é trem. O meu sistema é outro – é só brincar. Se é um samba, chego, tiro a moça, danço. Fora disso, tomo minha cachaça, sem muita lambança e não esquento pé de balcão. Então a faquinha aqui eu só uso em caso de muita necessidade. E nem ando mostrando a ninguém. Cachorro que muito ladra não morde. Graças a Deus nunca feri nem matei ninguém. Pois como eu ia dizendo, a bicha vinha vindo, vinha vindo e eu fui indo, fui indo. Eu já disse e repito: medo eu não tenho nem nunca tive. E fui indo, já de arma apontada pro focinho dela. A espertinha compreendeu a brincadeira e parou pra dar o pulo. Porém antes que ela terminasse de pensar e desse o salto, puxei a alavanca. Pêi, pêi, pêi. Não sei nem contar como tudo se passou, em seguida e na horinha. Não sei se ela caiu logo, não sei se ainda esperneou, não sei se esturrou. Não sei também se gritei, se disse alguma besteira. Nessas horas a gente costuma ficar fora de si e dizer até heresia. Só sei mesmo que apareceu o Titico meu irmão com sua pajeuzeira na mão, chega alumiava tudo. Conforme eu disse antes, estou aqui falando dele e dela. Não sou homem de mentira, não, Seu Doutor! Pois cheguei até a ver a bichona estendida no chão, vomitando sangue, um sangue da cor de pimentão maduro. O Titico, sem afobação nenhuma, como se a gente estivesse sangrando porco, apenas perguntava se eu precisava de ajuda. Isso se deu na horinha mesma do aperreio maior, quando eu ainda estava atirando. Eu me admiro é de ter dado pra eu atinar que dois sentidos não assam milho. Ele devia ter esperado pelo fim do serviço. Se eu me descuido, erro o tiro, estou frito. Ainda bem que minha pontaria nunca falhou. As três balas foram diretas na boca lá da carniceira. Sim, só dei três. Eu não ia esperdiçar bala com defunto! Isso eu ainda dizia pra mim mesmo, o Titico com a pajeuzeira na mão, olhando pra mim e pra bicha, um ali perto do outro, quando a danada estremeceu toda. Como se fosse se levantar e dar o pulo. Isso é só imaginação minha, pois, naquele escuro todo só acontecia o que eu imaginava. Na ocasião, compreendi muita coisa deste mundo velho – boi com boi é que faz junta. Eu já tinha jogado meu pau-furado no chão. Só me restava tomar a arma da mão do Titico e cair em cima da fera. E tome pinicada nos lombos. Pipinei, Doutor. Fiquei com pena foi do couro, tão pretinho, tão peludinho, todo esburacado e sujo de sangue. Não, eu nunca tinha visto, não. Mas já tinham me falado muito de onça. Ouvi uma infinidade de histórias. Meu finado avô, que Deus o tenha no céu!, meu pai, meu tio Vicenço, muita gente me contou histórias de onças. Assim, eu sempre tive, desde menino, a imagem de como devera de ser uma bicha dessas. No Baturité? Não, não deve existir mais nenhuma. Nem lá nem em canto nenhum, porque faz um tempão andam matando as coitadas. Eu não sou pessoa de leituras, mas no meu entendimento onça só deve ter mesmo agora é no Amazonas. Lá onde o diabo perdeu as esporas. Um matagal dos seiscentos mil diabos. Não tem homem no mundo que consiga atravessar aquilo. Como digamos, meu pai falava de um tio dele, o qual arribou pra lá e nunca mais voltou. Aquilo é um despotismo de mata, Seu Doutor, onde só há índio e fera. Aqui também já foi assim. Lá no Baturité mesmo o Senhor ainda pode ver como é a mata. Avalie noutras eras, antes de aparecerem roçados, queimadas, essa gente toda derrubando mata. Pois bem, isso tudo, que é o progresso, acabou com as oncinhas. Digo acabou, porque eu tenho palestrado muito com quem anda por este sertão afora e todos me falam de tudo, menos de onça. Então eu estou pra acreditar no seguinte: as derradeiras que existiram foram essas mortas por mim. Não, não foi só uma, não. Até agora eu só contei o comecinho da história. É uma historia grande de não acabar mais. Dava até um romance. Mas eu vou contar o resto. E bem depressinha, pra não aborrecer Vosmecê. Eu contava que caí em cima da bichona, a pajeuzeira do Titico meu irmão na mão, e acabei de matar a sem-vergonha, que se fingia de morta com os três tiros. Mais com pouco, acordou todo mundo, assustado com os tiros e aquela zoada. Com os tiros, sim, pois foi tudo na mesma hora – tiros, meu irmão aparecendo e me oferecendo ajuda, as pinicadas... Eu ainda furava a bicha quando apareceu o povo com as lamparinas em riba da cabeça, vindo do corredor, uma parte, e a outra só espiando pelas janelas, sem coragem de se chegar. Pareciam duas nações de gente – uma de gente despositada, outra de gente almoçada. Estes até nem não vinham com lamparina. Eram do meu proceder. Eu nunca precisei de alumiadura nem pra ir ao mato. Se tivesse lua, bem. Se não tivesse, também. Não sei quem eram, não. Talvez fossem meu pai, meu irmão Kiko, meu outro irmão Bira, ainda um frangote, meu primo Mandapolão, cabra que não vale uma masca de fumo, o Domingo irmão dele, e outros. Só não havia mulher, pois saia eu não vi, não. Minto, havia mulheres, as alumiadeiras. Então veio aquele povo espiar a imbuança besta, mas já chegou tarde. Não digo nem briga, que em briga os dois lados brigam e nesta só quem brigou foi eu. E tem mais – em briga eu sou de ficar raivoso feito peru e nesta eu nem cheguei a esquentar o gogó. Pois, como eu dizia, aquele povo chegou pra espiar a briga, porém só viu sossego e a pretona estendida no chão. E começou a falação. Como se tivesse gente em riba do telhado, debaixo do chão, dentro das paredes, na barrica da onça. O que foi isso?, quem fez isso?, Ave Maria!, vamos fechar as portas, a casa está cheia de bicho, porque vira, porque mexe. E eu na minha calma, só rindo, fumando e achando tudo bonito. Aquilo pra mim não passou de brincadeira de menina feme. Nem aqui nem no mato eu nunca fui de me espantar com besteira. Tanto faz pra mim um general como um soldado raso. Tanto faz uma bicicleta como um avião. Tudo pra mim não me faz medo. No mato tanto fazia uma surucucu como uma minhoca. Tanto fazia uma onça – onça não, essa tal fera eu nunca vi lá. Tanto fazia caipora pedindo fumo como volante pedindo notícia de Lampião. Não, eu até enjeito parada. Mas sou moço, tenho o couro grosso e, graças a Deus, nunca fui de ensebar as canelas com medo de grito. Voltando à história: o povo foi criando medo, era bom todo mundo entrar, trancar as portas, tomar cuidado, podia haver mais bicho por ali. Eu já disse: o quintal não era um quintal. Ao redor da casa havia mato, tudo sem muro e sem cerca, um descampado sem fim, um despotismo de mato, emendando com o sertão, a se perder de vista. Minha mãe, então, olhando no rumo da mata, disse: quem sabe tem mais onça metida aí nesse matagal, esperando a hora de invadir a casa. Pois, mal ela fechou a boca, lá se escutou um reboliço, assim como de onça pisando em graveto. Aí deu-se uma correria dos diabos. Era gente gritando e chorando, pedindo clemência a Deus Nosso Senhor, se valendo de tudo quanto é santo. Eu fiquei esperando a fera, caçoando deles, eu mais o Titico meu irmão. E mamãe gritando: entrem, meus filhos, deixem de valentia, valente morre mais cedo, vocês mataram uma mas as outras vão querer se vingar, deixem essas feras pra lá, venham dormir, deixem pra cuidar disso amanhã. E eu cá comigo – amanhã o carneiro perdeu a lã. Não se tratava de desobediência, não, mas a gente queria ver o fim da história. Pois enquanto ela falava as piedades dela, eu apurava o ouvido e arregalava os olhos pra ver se escutava algum esturro ou pisada macia de onça. E então apareceu mesmo outra: uma pintada e muito mais baita do que a defunta. Vinha vindo do mato, as duas tochas alumiando o caminho, a bocona aberta mostrando aquela dentadura branca e bonita. Eu até fui ficando encantado e querendo que ela chegasse mais e se abraçasse comigo. Fiquei rindo, de feliz. Doidice, seu Doutor! Se não fosse o Titico meu irmão me alertar, você não vai atirar logo, não?, eu hoje morava na terra dos pés juntos. Tomei um susto e, mesmo com pena, passei a atirar. Quando o primeiro tiro saiu, a tadinha foi se vergando, se vergando, até se prostrar feito uma vaca velha. Mas quem confia em fera? Meu irmão pulou em cima dela, a pajeuzeira na frente, e tome pinicada. Eu só via aquele fio de luz subindo e descendo. A onça já devia estar pra lá de morta. Eu disse: chega, mano, senão essa faca vai virar arame. Bendita ordem. Eu estava adivinhando. Pois se a pajeuzeira virasse arame, quem ia terminar de matar as onças que eu matasse? Dito e certo. Mal eu fechei a boca, lá apareceu outra. Vinha que nem um cão –cruz, credo! – no meu rumo. Vinha chega vinha bufando. Mas Vosmecê vai dar o não dito pelo ouvido. Eu não vou contar como se deu esta luta, não. Só me acredite o seguinte: ela se deu igualzinho às outras. Não vou contar não é por outra coisa, não, é porque assim não vai dar tempo. Eu sei, o Senhor está interessado na história, porém depois da segunda onça tudo aconteceu como numa correria. E eu não vou poder acompanhar essa correria. Escute só e me entenda: mal aparecia uma onça, a gente matava; aparecia outra, a gente matava. Se uma pulava do telhado, outra saltava o parapeito, outra se coçava na parede, outra esturrava, outra escancarava a boca. Finalmente, não restou mais nenhuma. Graças a Deus (aqui pra nós e pro padre que nos confessa), eu já estava pra desistir. Depois ficou tudo um silêncio danado. Dava até medo escutar. Eu no meu canto segurando o pau-furado pegando fogo, meu irmão no canto dele limpando a pajeuzeira nas pernas da calça e aquela ruma de onças no chão perdida no meio da sangueira. A gente, dê por visto, cansado e suado, doido pra tomar um calisto de delas frias e se espichar numa rede. Eu me sentei no chão e senti aquele rio quentinho escorrendo debaixo de mim. Era o sangue das coitadinhas. Fui me sentar no parapeito e me deu uma vontade espiritada de fumar. Qualquer quebra-queixo servia. Mas cadê cigarro! Aí o Titico disse: Não, pião gabado é que vira carrapeta, né? Me deu uma vontade de rir, Seu Doutor. E mais ainda quando meu irmão começou a gritar no rumo do mato: cadê as onças dessa terra! E eu me animei, esqueci a vontade de fumar, beber cachaça e dormir, e dei uns tiros pra cima. Imagine minha besteira, Doutor. Pra ver se acertava nalguma onça restante que andasse lá pelos ares. Quem já viu onça voar! Comecei também a gritar: apareça, cambada de carrapetas; aqui mora é macho, não é caçador mentiroso, não. E a gente ficou nessa besteira de atirar e gritar. Mais com pouca, lá longe no céu apareceu um clarãozinho de nada. Os galos começaram a acordar tudo com aquela zoada doida de bater asas e cantar um atrás do outro. Sabe, a gente ficou assim meio zuruó, olhando pro céu e pros galos, como se nem eu nem o Titico tivesse nascido na serra. Como se nenhum dos dois fosse acostumado a ver aquilo quase todo dia. O Senhor sabe como é o mundo quando os galos começam a cantar. Pois é, um sossego danado de bom, aquela cor parda... A gente olha, olha, parece que vê mas nada vê. A gente olhava pro mato e parecia ver onça. Tudo ilusão. Depois, a gente ficou só olhando e avistando umas coisas se mexendo, se mexendo, lá longe. O clarãozinho foi se clareando, uns bichos se mexiam e olhavam na direção da gente. Tem mais onça, Titico, prepare a pajeuzeira – eu disse bem baixinho. A gente agarrou as armas. E sabe o que a gente avistou? Não vá Vosmecê ficar impressionado ou duvidar de minha palavra. Eu não sou homem de andar com mentira. Sabe o que foi, seu Doutor? Não, onça não. Apenas um magote de cachorros. Sim, senhor. Olhei pro Titico, ele olhou pra mim e a gente caiu na risada. Eu joguei as armas de novo no chão, ele também jogou, e a gente virou as costas pro mato. E sabe mais? Sabe o que havia estendido no alpendre, chumbado, pinicado, coberto de sangue? Adivinhe, Doutor. Não sabe. Pois havia um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete cachorros.

Mas agora vem a dúvida maior – é se tudo isso aconteceu mesmo ou se foi apenas um pesadelo.
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segunda-feira, 10 de outubro de 2005

O jangadeiro (Nilto Maciel)



Para Edinardo, às vésperas do primeiro
ano de sua partida.

Arrodeio a superesfera
na minha jangada amiga,
rindo de quem me espera,
chorando à moda antiga.


De quantos paus ela é feita
só dizem os jangadeiros
velhos e companheiros,
fugidos da rota estreita.

Não rio por palhaçada

nem choro angustiado;
já me bastava a maçada
de ansiar o desejado.


Levo comigo a coroa
dos filhos da Eternidade,
relendo Fernando Pessoa
frente a toda realidade.


Passeio as nebulosas,
os astros, o espaço sem fim,
saudadoso das carinhosas
meninas do Otávio Bonfim.


De dois velhos meus criadores,
meu primeiro e doce abrigo,
de duas pequenas flores,
em quem pensando prossigo.


De uma soidade que amei
e que na Bahia deixei,
de sete meus germanos
deixados a fazer planos.


Dos pareceiros risonhos
do pobre Amadeu Furtado,
esses bebedores bisonhos
de fel, cachaça e melado.


Mergulho a atmosfera
montado em cavalo-de-pau,
zombando da besta-fera,
lembrando o primeiro mau.


Conduzo comigo um poema
jamais publicado em papel
para reler na suprema
corte do mais alto céu.


Vasculho os tempos perdidos
no carro dos deuses gregos,
tristonho de ver iludidos
os que ficaram aos pregos.


De recordar os pileques
que com meu mano bebi,
choroso de ver os moleques
famintos do que comi.


Cavalgo o cavalo das eras
na mais incrível carreira,
carregando uma flor de parreira
para o homem e para as feras.


Na minha ida desejei
deixar o que sempre sonhei:
projetos de muito amar
para a terra e para o mar.


O mundo que nos aguarda
não tem regulamentos nem leis,
é o país do povo sem guarda,
não tem um, nem dois, nem três,


tem milhões de seres iguais,
é a utopia dos pensadores,
o sonho dos ancestrais,
a terra só dos amores.


Comigo navegam poetas,
revolucionários e santos,
partimos no rumo das metas,
dos fins, começos e cantos.

(19.2.80)

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