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segunda-feira, 14 de agosto de 2006

A impressão da realidade em “As insolentes patas do cão”, de Nilto Maciel (Tanussi Cardoso)




As estórias de Nilto Maciel nos pegam pelo imprevisto, pela frase cortada, fragmentada, pelo jeito de quem está narrando um fato com descontração. É um modo singular de escrever. Nilto Maciel não ilude o leitor com firulas desnecessárias, não o engana com frases de efeito. Não tem vínculo com uma certa literatura que teima em parecer pedante. Mas por trás dessa aparente simplicidade há um escritor pleno de seus objetivos, que sabe contar uma estória com desenvoltura. Engana-se quem pensar ao contrário. Nilto Maciel lima as gorduras do texto e, vigorosamente, trabalha com a palavra certa, no lugar certo e na hora certa. Como cabe aos bons escritores.
Dono, portanto, de excelente técnica narrativa, Nilto Maciel, em As Insolentes Patas do Cão (João Scortecci Editora, 1991), incorpora efeitos oníricos a elementos míticos e místicos, muitas vezes de forma surreal, liquidificando tudo em beleza, fantasia, ironia, crítica e humor. Neste livro, o escritor agrupa um conjunto de estórias, onde o absurdo de várias situações beira a irrealidade, o sonho, a loucura imaginativa. E deixa o leitor atônito a se questionar sobre a impressão de verdade/ilusão que possa existir no que lhe é narrado.

Logo no belíssimo conto que abre o livro, “Ícaro”, o autor nos brinda com uma linguagem plena de lirismo, de uma brasilidade meio esquecida, com gosto, com cheiro, com ternura. Aliás, um fato inconteste marca todo o livrou: o carinho com que o escritor trata seus personagens, mesmo os menos afortunados (ou, principalmente), mesmo os mais terríveis. Há sempre um bem-querer subentendido em suas linhas, uma defesa subliminar, como se a raiz de seus destinos lhes conferisse o direito inequívoco de serem como são, e serem amados por essa inevitabilidade. Nilto Maciel limita-se a contar; não os julga, não cria valores de juízo em relação a seus atos e atitudes.

“Ícaro” é uma história prenhe de perguntas, de questionamentos, que não se permite respostas. É a chave para se entender toda a unidade temática do livro: a perpassar a grande maioria dos contos (como uma flecha que os cortasse num mesmo plano), um medo latente de que a realidade seja mais cruel do que os sonhos; um medo, talvez, de que a fantasia seja perdida.

Em “A Menina dos Olhos”, por exemplo, a realidade parece sair da imaginação. Raquel existe? Ou seria apenas a menina sonhada pelos olhos do menino?

Como a querer confundir (ou fundir) tudo, num só sonho ou numa só estória, Nilto Maciel “batiza” a maioria de seus personagens com nomes bíblicos, mitológicos ou, simplesmente, muito estranhos. E tome de Raquel, João, Maria, Acteão, João Canoro, Hulda, Quésia, Arion, Frederico Ozanam, Miro Spiegel, Liana Bennato, Amapá, João Batista, Fausto, Leonardo Ratisbona, Dr. Aderaldo Ascegas, Vulpino, João Cordeiro, Homero, João Alves Mendes... E como em Nilto Maciel não há gratuidade, é claro que nessas escolhas há muita coerência, sabedoria e uma grande dose de ironia crítica.

Em “Rosa dos Ventos”, o lúdico e o sensual dos desejos humanos remetem a sonhos de outras dimensões ou realidades; à viagem imaginária da cidade grande, num jogo de contrastes onde o sexo é a arma letal. Ou vital? Onde a solidão dá o tom monocórdio da angústia.

Já em “Incubação”, a realidade é traída pelo son(h)o. Maria sonhara aquela noite? Mas a prova real está ali, palpável: o filho, o menino feio. Uma espécie de parábola do nascimento de outro menino, nascido num estaleiro, saído de uma outra Maria.

O conto “A Fala dos Cães” é um bom exemplo da temática narrativa que percorre todo o livro. Mitos, ninfas, serpentes; fantasia ou realidade? Cheio de símbolos (fálicos, por que não?), o conto segue seu destino de escamotear, dando voz aos cães e vida aos cervos. Um conto cruel, melhor lido nas entrelinhas e nos intervalos do que no seguimento linear da própria estória.

Segue o livro, com o autor a nos perguntar pela boca de seus personagens: “Isso existiu de verdade ou foi só impressão?” (grifo nosso) (“Adeus, Alzira”); “Ou não era verdade, sonhava, delirava? Talvez fosse pura impressão” (grifo nosso) (“Um Simples Boneco”); Ou ainda: “Todos corremos perigo, até quando dormimos”. (“Os Belos Olhos de Sônia”). Moto-contínuo, o sonho sempre em confronto com a realidade, num estilo seco, direto, instantâneo, moderno, como no conto intitulado — de modo explícito – “Sonhos”, um dos grandes momentos da coletânea.

Todas essas evidências estilísticas encontramos, igualmente, no ótimo “Ilusões de Gato e Rato”, ou no sensacional “Casa Mal-assombrada”, onde a dualidade realidade-sonho ressurge num conto digno dos grandes mestres. Numa narrativa tocando a técnica do realismo-fantástico, o autor expurga (nossos) fantasmas, tendo ao fundo um lirismo doce e azedo. Agudo.

Em “O Vencedor” (ótimo e muito bem narrado) e “Eucaristia” (quase um poema em prosa!) novamente a ironia, o humor. a irreverência crítica, um quê de surreal. Ferino e felino.

“Olho Mágico” causa estranheza. A solidão (angústia permanente de quase todos os personagens) (sub)levando nossos medos e latentes fantasmas. Realismo ou fantasia?

O antagonismo reaparece no excelente “A Última Festa de um Homem Só”. De novo o questionamento: o que é a realidade? aquela que de fato vivemos ou a que gostaríamos de viver? O que, afinal, são vida e morte? Tudo não estaria entrelaçado? A mesma face de uma só moeda ou de uma só consciência? Ou tudo não passará de mera “impressão?”

Mistério e suspense, num conto emblemático da temática do escritor: “Um Simples Boneco”. Nele, outro elemento simbólico (que perpassa todos os contos) surge: o espelho. Como se o corpo de seus personagens estivesse sempre presente no outro. Sombra. Espectro. Sonho. Pesadelo. Impressão ou não? Há sempre alguém olhando um outro ou alguma coisa. (O olhar é um elemento fortíssimo em Nilto Maciel.) O olho como voyeur, espião do outro e de si mesmo. Assim, acontece, igualmente, em “Os Belos Olhos de Sônia”.

É certo que alguns – poucos – contos beiram, às vezes, o piadismo, sem maiores implicações. Mas mesmo nesses há sempre algo de interesse e uma bem dosada atmosfera narrativa.

Porém, é no conto que dá título ao volume, “As Insolentes Patas do Cão”, que encontramos sintetizadas todas as preocupações, não só estilísticas, mas de conteúdo temático, que o autor nos passa. Está tudo lá: ironia, humor, sarcasmo, cinismo, absurdo, linguagem onírica, simbologias. É o próprio autor quem nos diz, através de seu personagem: “Chego a pensar que foram muitas as noites, condensadas numa só ao longo do tempo e da angústia crescente... Foi um sonho, foram muitos sonhos, misturados a lendas, histórias de trancoso, simples imaginação”.

O cão, com suas insolentes patas, simboliza a realidade querendo penetrar no muro fechado (sonhos) perpetuada nos olhos do menino. E, como quer o autor, o leitor, ao final, se perguntará “se o tempo passou, se fui eu que sonhei”. Só que aqui a realidade parece vencer o sonho.

As Insolentes Patas do Cão é um instigante e belo livro de contos que coloca o seu autor, Nilto Maciel, no rol dos grandes escritores deste país.

(Revista Literatura n.º 7, Brasília, dezembro de 1994.)
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