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domingo, 22 de abril de 2007

Desmistificações de Camilo (Adelto Gonçalves* )


Camilo Pessanha (1867-1926) teve uma vida inteira de abandono, desistência e amargura que estão reflectidos nos seus versos mais marcantes. Mas, nas três décadas que viveu no Extremo Oriente, a vida irregular e o gosto pela bebida e o ópio, se o prejudicaram alguma vez, não o impediram de ascender socialmente na fechada sociedade portuguesa de Macau. E não foram poucos esses êxitos, como se pode acompanhar pela leitura de “A Imagem e o Verbo: Fotobiografia de Camilo Pessanha”, livro organizado com especial esmero por Daniel Pires, que não só vasculhou arquivos de Portugal como viajou a Macau para consultar a Biblioteca do Leal Senado, onde se encontra o acervo de Camilo Pessanha, e resgatar um pouco da cidade onde o poeta viveu os seus melhores anos.
O resultado é uma série de factos desconhecidos dos seus biógrafos, que até aqui haviam insistido muito na figura de um poeta desarvorado, que morreu tuberculoso e das sequelas do vício. Na sua investigação, Pires foi em busca do outro lado da vida de Camilo Pessanha, mostrando que o poeta, na qualidade de jurista, teve posições determinantes no relacionamento entre portugueses, macaenses e chineses, como assinala no prefácio que escreveu para esta fotobiografia. E que essas acções são absolutamente incompatíveis com a imagem que ficou de um poeta desleixado e de vida pessoal tumultuada. Os documentos levantados por Pires mostram um Camilo Pessanha empenhado não só em elaborar leis para regular o convívio diário daquelas comunidades tão díspares como coleccionar objectos de arte chinesa que doaria por duas vezes, em 1915 e 1926, ao Estado Português e que, hoje, encontram-se no Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra. Só isto basta para dar uma ideia do extremado espírito cívico de quem vivia a milhares de quilómetros de sua terra natal.DesmistificaçõesMas Daniel Pires foi mais adiante na sua investida para desmistificar algumas assertivas veiculadas pelos inimigos do poeta “ou por pessoas intolerantes, ou pouco receptivas à aceitação de outras formas de assumir o quotidiano”. E mostra ainda um Camilo Pessanha empenhado em legislar em função da equidade, de maneira íntegra, “à revelia de interesses corporativos, aplicando ao condenado, quando desempenhava o cargo de juiz substituto, a pena menos onerosa que os códigos previam”. Outra vez, como advogado, aparece Pessanha na defesa de uma prostituta condenada por uma justiça iníqua e cega à miséria social, sempre disposta a fazer valer o peso da lei sobre os deserdados e benevolente com os mais favorecidos. Ao contrário de muitos expatriados, como assinala Daniel Pires, Pessanha, desde os seus primeiros momentos em solo macaense, logo tratou de aprender o idioma sínico, o que o fez conhecer a fundo a cultural local e abandonar a postura eurocêntrica da maioria de seus contemporâneos. Foi o que o levou a traduzir na forma livre as Oito Elegias Chinesas, poemas do tempo dos Ming, de autores que viveram nesse período (1368 a 1628), que o autor teria descoberto numa “casa de pregos” de Macau e comprado ao “preço vil” de duas patacas. “A Imagem e o Verbo: Fotobiografia de Camilo Pessanha” não é só uma série de fotos e reproduções de capas de livros, como é comum neste tipo de publicação. De início, o investigador preparou uma cronologia que vai do nascimento do poeta a 7/9/1867 em Coimbra, na freguesia da Sé Nova, filho de uma aventura fortuita de um estudante de Direito com sua governanta, a 2004, com a publicação de Clepsidra – Poemas de Camilo Pessanha, com posfácio e fixação de texto de António Barahona, e “A Poesia de Camilo Pessanha”, com coordenação, lição e apresentação de Carlos Morais José e Rui Cascais. Depois, em “Juventude”, o leitor encontra uma série de fotografias que apontam para as origens familiares do poeta, as suas andanças pelo território português, a sua formação escolar, vida universitária, as suas primeiras produções publicadas na imprensa portuguesa, especialmente em Coimbra. Em “Os Afectos”, o pesquisador assinala as relações do poeta com os pais, os seus familiares em Macau — José Manuel de Almeida Pessanha, seu filho, Lei Ngoi Long, “Águia de Prata”, sua companheira chinesa, e seus netos —, os seus amigos , especialmente o poeta Wenceslau de Morais, sua alma-gémea, e os amigos que ficaram em Portugal — Ana de Castro Osório, Alberto Osório de Castro e Carlos Amaro.

Afinidades afectivas

Em “O Escritor”, Daniel Pires reuniu fotografias de várias composições de Camilo Pessanha em que se destacam o seu “Caderno Poético”, encontrado 40 anos depois do seu falecimento, e as correcções para os poemas que viriam a constituir Clepsidra. Em “O Professor” está o percurso do poeta como docente em Macau, a partir de sua nomeação em 1893. Em “O Sinólogo” e “O Coleccionador de Arte Chinesa” estão outras faces conhecidas de sua actuação. Já em “O Conservador do Registo Predial” está o longo exercício de Pessanha neste cargo e em “O Jurista” a sua actuação como magistrado. No capítulo “O Cidadão”, Pires reconstitui com fotos e documentos a acção de Camilo Pessanha na maçonaria, a sua actividade jornalística, as suas viagens a Portugal para tratamento de saúde ou em férias, as suas relações com os governadores de Macau e as homenagens que recebeu da sociedade macaense, entre outros assuntos. De assinalar são as fotografias do prédio da Avenida da Praia Grande que abrigou a última residência do poeta, do riquexó que o serviu nas ruas macaenses, da certidão de óbito e do túmulo do escritor em Macau. Na parte final, “Posteridade” regista as homenagens que lhe foram tributadas, as muitas edições que seus livros receberam e a celebração do 70º aniversário de publicação de Clepsidra. Em “Camilo Pessanha Visto por Artistas Plásticos”, há uma série de ilustrações e quadros pintados em homenagem ao autor por vários artistas de renome, além da estátua que se encontra em Macau de autoria de Carlos Marreiros e do busto de autoria de Cabral Antunes em Coimbra , de 1967. Já em “A Biblioteca de Camilo Pessanha”, Pires procura reconstituir as afinidades de leitura do poeta e dá notícia da maioria das obras que pertenceram ao seu acervo. Em “Camilo Pessanha por Ele Próprio”, o organizador faz uma selecção de excertos de seus textos mais lapidares, começando por “Inscrição”, um dos trechos mais famosos da Literatura Portuguesa: Eu vi a luz em um país perdido. / A minha alma é lânguida e inerme./ Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! / No chão sumir-se, como faz um verme...Por fim, as bibliografias activas e passivas constituem um inventário do que foi escrito pelo e sobre o autor. Por aqui se vê que este é um trabalho monumental, indispensável na biblioteca de todo admirador de Camilo Pessanha, um poeta abstracto por excelência, cerebral, intelectual, apegado a imagens e não a ideias e obcecado pela musicalidade do verso. E, por isso, um dos maiores representantes do Simbolismo e um dos precursores do Modernismo português.

In “Pravda”
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* Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.
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