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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Os escombros (João Soares Neto)



 
Não, não acreditava. Acordara da sedação imposta e passara a mão no lado vazio da cama. Ainda tinha o cheiro dele. Aquele cheiro forte, acre, que o seu olfato identificava tão bem e mexia com seu corpo. Bastava sentir o cheiro e estava pronta. Ele não se fazia de rogado. Tirava a farda de bombeiro e a puxava para a cama. Faziam amor até quase desmaiar. Era amor bruto, em que tudo acontecia. A língua dele penetrava em suas narinas, acendia um fogo que a deixava molhada e em êxtase. Não entendia. Um dia, perguntaria a uma amiga se isso já lhe acontecera alguma vez. Dormiam nus, atravessados na cama. A grossa perna dele por cima de seu corpo esguio. Era bom sentir o peso do seu homem.

Sempre acordava mais cedo para fazer o desjejum e ficava olhando aquele homem musculoso, tatuado no antebraço esquerdo, ressonando baixinho. Chegava perto, sentia novamente o cheiro forte e a sua língua, como se retribuindo o que recebera da dele, mergulhava entre os encaracolados pelos e não haveria apelos quaisquer que fossem que a tirasse dali, sem que sentisse o pronto intumescimento, até que a explosão a fizesse deglutir os sucos daquele amor sem limites.

Tinha que se levantar, enfrentar a realidade. Olhou a foto no porta-retratos sorrindo com uma mangueira na mão. Começou a chorar baixinho e voltou a deitar na cama. Não, não acreditava. Não poderia ser verdade. Mas era. O cheiro forte invadia suas narinas e odiou-se por sentir desejo naquela hora tão despropositada. O desejo foi aumentando e não sabia mais o que era maior: se a torrente de lágrimas que caía das suas faces e molhava seu corpo ou o frenesi que sentia a espera do corpo que não mais voltaria. Sentimentos de volúpia, dor e desilusão misturavam-se e faziam seu corpo tremer em orgasmo doído e doido. Sem forças, adormeceu.

Acordou. Era noite alta. Levantou-se e saiu às ruas. Estavam quase desertas. Pegou o ônibus e sentiu um vazio que não conhecera antes. Parecia que haviam retirado parte das suas entranhas. O ônibus foi parado por policiais e teve que fazer o resto do caminho a pé. Não tinha pressa. Seus sapatos estavam sujos da poeira da calçada. Um calafrio percorreu o seu corpo. Abotoou o casaco dele, que usava como se fosse escudo. Estancou. Ficou tonta e atônita. Amparou-se na placa verde que indicava o nome da Liberty Street, viu os escombros que guardavam seu homem, sentiu a dor lancinante rasgando o seu peito e desfaleceu.

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