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quarta-feira, 12 de março de 2008
domingo, 9 de março de 2008
Os corvos de alumínio de Francisco Carvalho (Henrique Marques Samyn)
(Poeta Francisco Carvalho)
A precariedade da distribuição de livros no Brasil é um problema que, embora muito conhecido e denunciado, aparentemente permanecerá como tal por longo tempo. A internet, é verdade, representou uma solução para uma parte mínima desse problema: ao menos as grandes livrarias tornaram-se acessíveis para moradores de regiões nas quais elas não se encontram fisicamente presentes, o que assegura que, pelo menos, os lançamentos das maiores editoras estejam disponíveis para boa parte dos leitores brasileiros. Entretanto, a lógica que rege as grandes editoras é mais econômica do que propriamente literária, algo que atinge fatalmente a poesia, gênero literário cujo parco potencial lucrativo é conhecido – de modo que, se inúmeros bons autores estão fora das principais cadeias de distribuição literária, é possível afirmar categoricamente que, em sua maioria, são poetas. Quem perde com isso, é claro, é a literatura brasileira, que sofre com o esquecimento de obras de qualidade incontestável.Toda essa discussão não pode deixar de ser evocada quando se fala sobre um poeta como Francisco Carvalho. Aos oitenta anos, publicou mais de vinte obras, todas inencontráveis nos catálogos das grandes livrarias, a despeito dos dois prêmios de expressão nacional que constam de seu currículo – prêmios Nestlé (1982) e Biblioteca Nacional (1997). Fiel à sua certeza de que prêmios literários são apenas estímulos eventuais, Francisco Carvalho continua escrevendo e publicando uma obra em que transparece um apurado domínio técnico, capaz de transitar pelas mais diversas formas poéticas com resultados, não raro, assombrosos. Leia-se, por exemplo, este:
SONETO DA CONTEMPLAÇÃO
Na vida andei por solitária estrada,
meus caminhos não foram de veludo.
Os deuses nunca me ensinaram tudo
nem que do amor nunca se sabe nada.
Em tua ausência pus os meus cuidados,
todas as horas, todos os minutos.
O mais alto dos galhos onde os frutos
dificilmente podem ser tocados.
Onde pus esperança e pus empenho,
meu sonho ardeu como se ardesse um lenho
entre as chamas do cedro perfumado.
Nada espero do augúrio do adivinho.
Não beberei da espuma do teu vinho
nem serei por teus olhos contemplado.
Esse poema faz parte de Corvos de alumínio (Fortaleza: LCR, 2007), volume que reúne a poesia inédita de Francisco Carvalho, em que se pode atestar a riqueza de seu estro. Trata-se, afinal, de um poeta capaz de tematizar as mais díspares dimensões da experiência humana por meio de versos que vão do temário mais concreto, político e telúrico, ao mais abstrato e existencial. Seu sentimento lírico caracteriza-se pela cristalina lucidez com que retrata a condição humana, precária e efêmera, mas, ainda assim, plena de dignidade; é uma poesia que, em outras palavras, trata do Homem em seu mais universal sentido, de suas obras e de sua perene luta pela sobrevivência material e espiritual. Há momentos em que seu lirismo é francamente político:
MENINOS
Os meninos ficaram sem arroz
(os meninos esmagados pelos mísseis).
Os meninos chamaram pelas mães
e lhes pedem brinquedos e carícias.
Os meninos fugiram das granadas
dos campos semeados de explosivos.
Desenterraram bombas do tamanho
dos ovos dos maiores crocodilos.
Os meninos chegaram muito tarde
os meninos tiveram muita sede
os meninos sentiram muito frio.
Os meninos são filhos de leopardo
abrem fendas e escrevem na parede
odes de insônia para um deus sombrio.
Outras vezes, o poeta faz de seus versos diálogos com autores basilares da literatura universal: Camões, Cervantes, Borges. Não obstante, sob essa miríade temática, Francisco Carvalho resguarda seu compromisso essencial com o poético, que parece, na verdade, constituir sua própria forma de ler a história e estar no mundo. Se maior é a poesia que emerge da vida, cabe reiterar que, a despeito das contingências geográficas e mercadológicas, Francisco Carvalho está entre os nossos poetas maiores.
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sexta-feira, 7 de março de 2008
A ventura de um morto (Raymundo Netto)
Vinha batendo às paredes, puxando o nó da gravata com agonia. A boca seca deixava transparecer, num canto, uma espécie de baba branca. Suava demais a procurar algo nos bolsos. Havia largado a pasta a poucos metros. Tombou, ao fim, no chão.
As pessoas em torno estranhavam e apressaram os passos. Uns moleques aproximaram metendo as mãos nos bolsos de seu paletó, na camisa, na calça. Outro deles, já ia longe correndo com a pasta enfiada debaixo da camisa.
O movimento naquela calçada era grande, mas ninguém podia parar a não ser quem tinha seus interesses...
Dois rapazes beiraram o homem caído. Enquanto um chutava-lhe a costela com a ponta do sapato, outro lhe batia na face com um jornal. Ele não sinalizava coisa alguma, nem gemido nem ofensa. Nada. Eles deram com os ombros, tiraram-lhe os sapatos, os óculos escuros, a calça e o paletó. Foram.
As pessoas passavam por cima, tão atrasadas, não o percebiam.
O gari que varria a calçada reclamou do que rebolavam por ali. Com a vassoura, empurrou o homem até deixá-lo na coxia. Outro gari, que limpava a coxia, protestou de imediato “Aqui não, violão!” e empurrou o corpanzil, de bruços, para o meio da rua.
Os carros, que também não podiam parar; passavam-lhe por cima, macerando-o contra a pista. Trânsito caótico. Compromissos demais.
Alguém parou, desceu do carro, olhou indignado para o prostrado:
— E a prefeitura não faz nada? A gente paga impostos para quê? Poderia estragar o meu carro, ora! — voltou e ligou, do celular, para a Ouvidoria.
Uma senhora passando na calçada o viu estirado, empastado, sujo e, aproveitando o sinal, o arrastou até uma viela próxima. Chegando lá, examinou à sua volta, não viu ninguém e arrancou um olho, correndo com um sorriso maroto nos lábios: uma córnea! Com pouco mais, alguém viria buscar a outra.
Finalmente, a polícia chegou. Avistou o corpo seminu na rua e o recolheu: atentado ao pudor!
Na cadeia, os outros presos o viam com desconfiança, ofereciam-lhe bagulhos, contavam piadas, mas ele permanecia indiferente. Perceberam que ele não era um deles, se amotinaram e usaram-no como refém. A cena foi ao ar para todo o país: um jovem apontava-lhe o cano do revólver à testa, órbitas negras arregaladas, as veias do pescoço intumescidas e estranguladas pelo braço potente, a ameaça de jogá-lo pela janela. A equipe de socorro pedia-lhe calma, calmacalmacalma. O suor frio escorria na face exangue. Do ouvido, escorria outra coisa...
Logo a polícia contornou a situação. Rebelião desfeita. Os bandidos, porém, decidiram vingar-se do traidor. Espancaram-no, quebraram-lhe os dentes e o enforcaram com a própria cueca. No outro dia, a manchete: Refém de rebelião suicida-se!
A comoção foi geral. Algumas entidades se juntaram em vigília àquele homem — velas e faixas às portas da cadeia pública —, mais uma vítima da opressão e da violência. Choraram, rezaram por ele, abraçaram o prédio em nome da PAZ.
Um fato causou, então, maravilhamento: um aleijado, presente na multidão, soltou as muletas e se pôs a caminhar. As pessoas se horrorizaram: um milagre! O homem era santo, minha gente, era santo!
Os populares invadiram a cadeia e, quando trouxeram o corpo à rua, feito um cristo crucificado, a multidão o disputou. Todos queriam uma lembrança do corpo santo. O olhar vazio, a mandíbula deslocada para esquerda, a venta para a direita e, mesmo assim, alguém lhe decepou o braço, outro rasgou-lhe a perna, torceu-lhe os pés... Humildes, os malogrados se satisfaziam em banhar-se do sangue alaranjado vertido dos cotos dilacerados.
Diante do clamor público, os órgãos do governo decidiram enterrá-lo com honras de herói.
Cerimônia concorrida sob olhares marejados. Sobre o caixão, em momento solene, a bandeira, a chave da cidade, a comenda maior e o título de cidadão.
O esquife solitário parecia repousar à cova. As coroas de flores amofinavam a despedida. A terra, porém, apropriou-se dele, se arraigou e passou a extrair-lhe os tecidos frágeis, cada célula, cada fleuma arterial, não lhe poupando, desta vez, nem os cabelos, numa guerra silenciosa que se passa despercebida debaixo da grama verde que viceja. Diante da quietude, um estertor ralo, quase como um pensamento, emergiu:— Meus remédios, onde estarão os meus remédios?
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segunda-feira, 3 de março de 2008
o rosto zero: a literatura fora do sujeito (Nilson Oliveira)
(Stéphane Mallarmé)
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
...
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer.
Álvaro de Campos [[i]]
Quem é o autor? Quais os caminhos da Obra? Qual a linha de fuga que apartam o autor da sua obra? Questões realmente antigas, mas por cento ainda pertinentes, ao ponto de vez ou outra, ativadas por uma força que é própria da literatura, romperem o lacre do esquecimento e surgirem como lâminas afiadas decepando ou afirmando questões de toda ordem, o que dá ao problema uma importância solar. Com efeito, o diálogo incide o seu ciclo fazendo dessas questões uma saúde que atravessa a literatura e a hidrata em cada volta. É realmente um caso de muito vigor. Portanto, da ordem do dia. Então vamos ao ponto: em alguns casos, para um escritor, o movimento definitivo para alcançar a literatura consiste no apagamento (o rosto zero), num árduo trabalho por fora da identidade e das funções que legitimam o sujeito e sua rotina social.
É precisamente a partir da experiência de Mallarmé, sobretudo em Igitur, que a distinção entre sujeito e obra se fortalece nos trazendo a bela diferença que aparta o Eu da linguagem e o Eu do sujeito. Com efeito, Mallarmé nos mostra como a linguagem vai se desenvolver precisamente onde o homem é apartado, fazendo da literatura o espaço em que o sujeito não cessa de desaparecer em proveito da linguagem. Onde isso fala, o homem não existe mais. É a partir do desaparecimento do homem em benefício da linguagem que obras tão intensas, como as de Malcolm Lowry, Maurice Blanchot, Fernando Pessoa, se proliferam. Toda a literatura está em uma íntima relação com a linguagem que é por sua vez uma relação com a vida: a vida que jorra por fora do sujeito.
Mas há também Céline e todo o seu repertório vociferante falando inicialmente como Bardamu [Viagem ao fim da noite], depois sem dissimulações na primeira pessoa de Ferdinand [Norte e Morte a crédito] e mais adiante abertamente como Céline [Castelo em castelo]. Mas o que Céline nos dá através da sua escrita passa alhures de um testemunho ou confessionário. Mesmo quando volta aos abismos da sua infância, ou de qualquer outro espaço do seu intenso repertório, o que fica são os buracos cavados no coração da gramática, a agressividade da sua escrita; uma marca que conduz a literatura para uma cena fora do pensado nas academias, o que somando compõe um obra amarrada por um estilo sem igual, hiperbólica, transfiguradora que, como nos diz Leda Tenório Mota, “derruba as abordagens mais toscamente temáticas ou mais politicamente corretas. Já que não se pode ignorar, por mais embaraçoso que seja o assunto de um grande escritor, ou por menos beleza moral que ostente, que o estilo não apenas conta, mas... significa. Ou, dito em outras palavras, que ele muda tudo” [[ii]].
“A partir do momento, efetivamente, em que o discurso pára de seguir a tendência de um pensamento que se interioriza e, dirigindo-se ao próprio ser da linguagem, devolve o pensamento para o exterior, ele é também e de uma só vez: narrativa meticulosa de experiências, de encontros, de signos improváveis – linguagem sobre o exterior de qualquer linguagem, falas na vertente invisível das palavras” [[iii]]; em vontade, força, desdomínio, no curso de um exercício em que o objetivo foi subtraído pela aventura, pelo desejo de, na linguagem, experimentar mais e mais, no âmbito de uma viagem onde o que conta é a viagem em si. Assim veio a constelação de Mallarmé, a esfera cintilante de Joubert, a escrita selvagem de Lautréamont.
Mesmo antes de Mallarmé há, no espaço literário, vestígios de uma vontade de superação do homem em detrimento da obra em experiências peculiares, como a de Joubert que viveu para a literatura, mas se recusou a publicar um livro se quer, deixando no entanto um rastro de coisas notáveis: anotações, diários, escritos de uma delicadeza tão intensa que arregimentou para o seu centro figuras como Maurice Blanchot e E.M Cioran. Joubert é o rosto rezo da cena literária, o escritor sem obra que viveu intensamente essa ausência, entrando para a literatura pelos lados. “Joubert teve esse dom. Nunca escreveu um livro. Apenas se preparou pra escrever um, procurando com determinação as condições justas que lhe permitiriam escrevê-lo. Depois, até esse desígnio ele esqueceu. Mais precisamente, o que Joubert procurava, essa nascente da escrita, esse espaço onde escrever, essa luz a circunscrever no espaço, exigiu dele, afirmou nele disposições que o tornaram impróprio para todo o trabalho literário comum ou o levaram a desviar-se dele. Foi, por isso, um dos primeiros escritores inteiramente modernos, preferindo o centro à esfera, sacrificando os resultados à descoberta das suas condições e escrevendo, não para acrescentar um livro a outro, mas para se tornar senhor do ponto de onde lhe parecia que saíam todos os livros” [[iv]].
É necessário que haja, na nossa linguagem escrita, voz, alma, espaço, ar livre, palavras que subsistam sozinhas e que transportem consigo o seu lugar [[v]]. Esse é o movimento de Joubert, uma escrita viva, intensa, autônoma, nutrida de uma potência que se desloca. Esse movimento nos arrasta a outro, Lautréamont, um caso de singularidade, sem dúvida um movimento de força na direção da escrita literária e a um só tempo para fora do autor, pois com Lautréamont o objetivo daquele que escreve é, sobremaneira, enterrar sua biografia na sombra e mergulhar no coração da escrita. Nessa jornada, o escritor só pertence à sua obra e a ela está vinculado, sem deus e sem razão, escrevendo até o extremo do que pode a escrita, em um tempo que se redescobre irreconciliável, o tempo da obra, pois “só a obra importa, a afirmação do que existe na obra, o poema na sua singularidade cerrada, o quadro no seu espaço próprio. Só a obra importa, mas afinal a obra só está ali para levar à busca da obra; a obra é o movimento que nos encaminha para o ponto puro da inspiração de onde vem e que aparentemente só pode atingir o desaparecimento” [[vi]]. Lautréamont mergulhou nas ondas da escrita, desapareceu sem deixar vestígios, todo o seu combate consistiu na edificação da sua obra, num trabalho sem recusa, fortalecido por uma vontade criadora que se afirma no momento em que atravessa a fronteira do estabelecido, do sujeito, da identidade: “minha poesia só consistirá em atacar, por todos os meios, o homem, essa fera, e o criador” [[vii]]. Mas a escrita em Lautréamont não é a expressão de uma reação e sim de uma Ação, de um ato criativo que faz da literatura uma máquina de guerra pelo possível da arte e da vida.
Lautréamont renuncia ao nome próprio e aos fantasmas da memória para incorporar uma escrita veloz, aliviada dos dramas da culpa do pai-mamãe da representação. Sua força é órfã, vem de lugar nenhum, nasce das dobras da literatura, no instante em que ergue a pena para escrever. E nesse momento fluído que se dá à poderosa força que separa sujeito e obra, pois aquele que escreve não pertence mais aos domínios do registro de nascimento. Por isso Isodore Ducasse deu passagem ao Conde Lautréamont, e com ele vieram Os Cantos de Maldoror e Poesias. Lautréamont é para literatura um caso do presente, sua atualidade persiste pela intensidade de uma obra que não se rende e por um imagem que ainda cintila.
[i] Álvaro de Campos. Tabacaria
[ii] Leda Tenório Mota. Celine volta a incomodar, publicado no caderno mais, folha de São Paulo.
[iii] Michel Foucault. O Pensamento exterior.
[iv] Maurice Blanchot. Joubert e o espaço.
[v] Pierre Joubert. Carnets.
5 Maurice Blanchot. O Livro por vir.
6 Lautréamont. Os Cantos de maldoror. Poesias. Cartas
________________
Nilson Oliveira é editor da revista Polichinello, autor de A Outra Morte de Haroldo Maranhão [edições IAP 2006]
E-mail: nilson_olliveira@yahoo.com.br
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