Adelto Gonçalves (*)
I
O mundo quando observado pelas mulheres é visto por outra janela. Acostumado a ler livros de Ficção e História escritos predominantemente por homens, o leitor (de ambos os sexos) nem sempre percebe essa alteridade e suas diferenças. Por isso, pensar criticamente em termos de gênero os textos de ficção brasileira publicados nas últimas décadas tem sido o trabalho a que se propõe o Centro de Estudos em Literatura Brasileira da Universidade de Brasília (UnB), coordenado pela professora Regina Dalcastagnè. O resultado das pesquisas e reflexões que o Centro tem proporcionado acaba de sair no livro Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea (Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 2010), organizado pela professora Regina Dalcastagnè, em colaboração com a professora Virgínia Maria Vasconcelos Leal, reunindo textos de pesquisadoras de diferentes universidades brasileiras.
Como lembra a professora Regina Dalcastagnè, quando se fala em mulher, é preciso, antes de tudo, lembrar que a condição feminina é sempre plural. Há, por exemplo, uma distância ciclópica quando se lê textos sobre o feminismo marcadamente branco, europeu e de classe média, influenciado pela filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), e as narrativas de Paulina Chiziane, considerada a primeira romancista negra de Moçambique. Até porque, se é correto entender que as mulheres formam um grupo social específico, as experiências e trajetórias sociais de cada uma constituem universos distintos.
Por razões que são explicadas pelas contingências sociais de cada nação, as brasileiras nunca se fizeram representar tanto quanto deveriam na Literatura do século XX, embora o Brasil tenha tido a sua primeira romancista negra ainda no século XIX com a maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), uma honrosa exceção num mundo predominantemente machista e preconceituoso, ainda que as elites brasileiras nunca tenham sido tão brancas quanto faziam (e fazem) questão de aparentar. E tenha hoje outra notável romancista afro-descendente, Conceição Evaristo, autora de Ponciá Vicêncio. De qualquer modo, a maioria das mulheres que se destacaram na área sempre foi constituída por brancas e de classe média.
II
Pesquisa realizada pelo Centro de Estudos em Literatura Brasileira da UnB, que leva o título de “Mapeamento de personagens do romance brasileiro: anos 1970, anos 1990”, executada entre 2004 e 2006, procurou fazer um “recenseamento” de autores(as) e personagens com o objetivo de mostrar como a mulher tem sido representada na literatura brasileira contemporânea. Os números constam do ensaio “Representações restritas: a mulher no romance brasileiro contemporâneo”, de Regina Dalcastagnè, abarcando 389 romances produzidos ao longo de dois períodos de 15 anos cada. E mostram que as mulheres, se conseguiram um espaço próprio na literatura brasileira, esse espaço ainda é flagrantemente minoritário.
A partir do acervo das principais editoras de cada época – Civilização Brasileira e José Olympio para o período de 1965-1979 e Companhia das Letras, Record e Rocco para 1990-2004 –, o levantamento constatou que o romance brasileiro é escrito majoritariamente por homens (72,7% dos autores) e sobre homens (62,1% das personagens são do sexo masculino, proporção que sobe para 71,1% quando são isolados os protagonistas). Como observa Regina Dascaltagnè, além de serem minoritárias nos romances, as mulheres têm menos acesso à “voz” – isto é, à posição de narradoras – e ocupam menos as posições de maior importância.
Quando são isoladas as obras escritas por mulheres, mostra o estudo, 52% das personagens são do sexo feminino, bem como 64,1% dos protagonistas e 76,6% dos narradores. Para os autores homens, os números não passam de 32,1% de personagens femininas, com 13,8% dos protagonistas e 16,2% dos narradores. “Fica claro que a menor presença das mulheres entre os produtores se reflete na menor visibilidade do sexo feminino nas obras produzidas”, diz a autora. Além disso, a personagem do romance brasileiro contemporâneo também é branca (79,8%), heterossexual (81%) e rica ou de classe média (82,9%).
Para a autora, apesar de toda a evolução da condição feminina, a literatura – ou, ao menos, o romance – continua a ser uma atividade predominantemente masculina, embora não seja possível dizer se as mulheres escrevem menos ou têm menos acesso às editoras mais importantes (ou ambas as possibilidades). Ainda de acordo com o levantamento, os(as) escritores(as) brasileiros(as) são, principalmente, jornalistas, professores universitários, roteiristas e tradutores. Ou seja, há quase um monopólio de profissionais vinculados ao universo do controle do discurso. Por último, desses autores(as), mais da metade está concentrada no Rio de Janeiro e São Paulo. Na imensa maioria, são homens brancos de classe média.
Como observa Regina Dascastagnè, por mais solidário que seja às mulheres, um escritor homem não vai nunca vivenciar para transmitir o que significa o temor da agressão física tão presente nos lares brasileiros, da mesma maneira que um branco, por mais solidário que se mostre, nunca será capaz de avaliar o que sente um negro ao ser discriminado em seu ambiente de trabalho como também nunca vai entender a revolta de um deficiente físico que chega a um local de votação e tem de se sujeitar a ser carregado no colo escada acima até a urna para depositar seu voto.
III
Com base nesses resultados, é de suma importância o trabalho que vem sendo realizado por autoras ainda jovens e que começam a ganhar seu espaço nas livrarias brasileiras e, obviamente, na biblioteca e no imaginário do leitor brasileiro. É o que mostra a professora Virgínia Maria Vasconcelos Leal no ensaio “O gênero em construção nos romances de cinco escritoras brasileiras contemporâneas”, ao discutir o trabalho de autoras que já conquistaram seu espaço nas principais editoras do País: Stella Florence e Adriana Lisboa, na Rocco, Lívia Garcia-Roza e Cíntia Moscovich, na Record, e Elvira Vigna, na Companhia das Letras
Stella Florence pratica uma literatura de entretenimento, o que não significa que seja superficial. Seus livros de contos (Por que os homens não cortam as unhas dos pés?, Hoje acordei gorda e Ele me trocou por uma porca chauvinista) e romances (Ciúme, chulé e um apelido ridículo e O diabo que te carregue!) , cujos títulos carregam um apelo bem-humorado, são escritos na linguagem da autoajuda, sugerindo mais uma conversa com o(a) leitor(a), que lembra o estilo de revistas femininas, como salienta Virgínia Leal. Adriana Lisboa em seu romance Sinfonia em branco também traz para a literatura questões pouco exploradas como a história de duas irmãs marcadas pelo abuso sexual de uma delas na infância pelo pai.
Lívia Garcia-Roza mostra um modelo de sociedade opressivo, mas sem uma alternativa viável, em que os casais e a família vivem sob o mesmo teto, mas quase não se comunicam entre si. Seus livros tratam de temas pouco comuns em romances, como aborto e menstruação. Cíntia Moscovich, já publicada em Portugal, a exemplo de Moacyr Scliar, recupera histórias de seu grupo étnico, a comunidade judaica de Porto Alegre. Em seus romances Duas iguais e Por que sou gorda, mamãe?, há temas pouco explorados ainda na literatura brasileira, como relações lésbicas.
Já Elvira Vigna procura resgatar um gênero literário policial, o do romance negro, mas o faz em forma de paródia. Seus textos são sempre em primeira pessoa, mas suas protagonistas seriam as criminosas e não o detetive que desvenda os crimes. Por isso, são fontes poucos “confiáveis” porque o leitor nunca fica sabendo se diz a “verdade” ou dissimula os fatos narrados. Mas é exatamente aqui que reside a sua originalidade.
Como observa a pesquisadora, as cinco autoras, cada uma a sua maneira, dialogam em suas obras com questões relevantes da agenda feminista como o corpo e a sexualidade, a violência, os direitos sexuais e reprodutivos e outros. Ainda que recusem o rótulo de “feministas” e não avancem na maré pós-feminista – que, pelo menos no Brasil, um país ainda arcaico sob muitos aspectos, é uma realidade distante –, com suas obras contribuem de maneira significativa para a criação de uma “consciência feminista” entre o público-leitor, “a partir da uma identificação com suas protagonistas em confronto com o poder patriarcal”.
IV
Regina Dalcastgnè é professora titular de Literatura da UnB, editora da revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além de autora de A garganta das coisas: movimentos(s) de Avalovara de Osman Lins e Entre fronteiras e cercado de armadilhas: problemas de representação na narrativa brasileira contemporânea, entre outros livros. Para a Editora Horizonte, preparou o livro Ver e imaginar o outro: alteridade, desigualdade, violência na literatura brasileira contemporânea (2008).
Virgínia Maria Vasconcelos Leal também é doutora pela UnB e pesquisadora do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea. Participou dos livros Formas e dilemas na representação da mulher na literatura brasileira contemporânea, Alguma poesia: ensaios sobre literatura brasileira contemporânea e Imagens & diversidade sexual: estudos da homocultura.
Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea traz ainda textos das pesquisadoras Adelaide Calhman de Miranda, doutoranda na UnB, Bruna Paiva de Lucena, mestranda na UnB, Cíntia Schwantes, professora da UnB, Cláudia de Lima Costa, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Edma Cristina de Góis, jornalista e doutoranda na UnB, Ermelinda Maria Araújo Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco, Norma Telles, professora aposentada da Pontifícia Universidade Católica, de São Paulo, Rita Terezinha Schmidt, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Sandra Regina Goulart Almeida, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, Simone Pereira Schmidt, professora da UFSC, Susana Moreira de Lima Bigio, da UnB, e Tânia Regina Oliveira Ramos, da UFSC.
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DESLOCAMENTOS DE GÊNERO NA NARRATIVA BRASILEIRA CONTEMPORÃNEA, de Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal (org.). Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 239 págs., 2010, R$ 36,00. E-mail: contato@editorahorizonte.com.br Site: www.editorahorizonte.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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