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quinta-feira, 10 de julho de 2014

TEXTOS EM HOMENAGEM AO ESCRITOR NILTO MACIEL

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O DIÁRIO DE NILTO MACIEL: CADERNOS DE ATREVIMENTO (João Carlos Taveira)




Acabo de ler o diário de Nilto Maciel. Trata-se de anotações críticas sobre literatura, sem prejuízo, no entanto, de confissões e questionamentos pessoais. Os cadernos compilados em Menos vivi do que fiei palavras (Editora Penalux, 2012), sem nomeação de dias e meses, estão datados de 1986 a 1992, período em que o autor de Vasto abismo ainda vivia em Brasília. Pelo que declara em algum trecho, abandonou de vez o exercício desses apontamentos. Não quer mais saber do assunto. Publicar os velhos compêndios em livro já lhe custou grande esforço, muita coragem. Basta!

Ao contrário de Nilto Maciel, sempre li diários. Tenho gosto pela vida alheia, quando esquadrinhada pelo próprio autor. Primeiro foi Kafka. Depois, Sérgio Milliet e alguns outros escritores. Aprecio esse exercício catártico, às vezes auto-imune, de exposição consciente. O diário de Anne Frank, por exemplo, deixou forte impressão na minha juventude, na minha vida, tanto quanto as anotações de viagem de Hermann Hesse e Graciliano Ramos. Isso sem falar nas biografias, naquelas páginas em que se revelam particularidades e pormenores da vida de uma pessoa tão distante de nós.

Também tive arroubos confessionais destilados em cadernos escolares. Ou em folhas avulsas. Coisa de 20, 30 anos atrás, que dificilmente irei publicar. Há outras prioridades. Mas, neste momento, não pretendo me imiscuir naquilo que abandonei faz tempo. Agora basta a utilização da primeira pessoa, com interferência direta. Prática que às vezes abomino e condeno. Exceto em romances e contos, que não escrevo. E em situações como esta, previamente pensada.

O escritor Nilto Maciel, já analisado por mim diversas vezes, é dos mais profícuos da moderna literatura brasileira. Percorre todos os gêneros, sempre com o mesmo perfeccionismo que o identifica desde Itinerário, publicado em 1974. Isso talvez decorra do seu apreço pelos livros e, sobretudo, da constância do hábito de leitura. Nilto escreve bem, lê bem e sabe analisar uma obra literária como poucos. Seu estro não tem limites. Fato esse, aliás, conhecido por todos aqueles que leem seus escritos. O elogio, a essa altura, já se tornou lugar-comum.

Pois bem. Menos vivi do que fiei palavras consegue atingir uma culminância estilística de fazer inveja. O tratamento vocabular e a estrutura frasal são notórios, considerando-se a perfeita simetria da construção verbal. A linguagem é rica e expressiva, sem ser piegas ou ultrapassada. (Há, entre nós, autores que escrevem como se estivessem no século XVIII ou XIX.) O vocabulário empregado confirma altos conhecimentos lexicográficos, sem nunca perder o foco do fato ou do objeto narrado (descobri uma palavra que não conhecia: copelação.). E a temática, variada, é das melhores para um leitor escritor: livros, autores, casas editorais, academias, associações, sindicatos, além da exposição crua de certos indivíduos e suas veleidades, mesquinharias, ilusões e desilusões de toda sorte.

Como já mencionado, o grosso das notas se acomoda em considerações críticas (nem sempre favoráveis) sobre romancistas, contistas, cronistas, jornalistas, poetas, artistas plásticos, et alii. Poucos escapam da mirada corrosiva de Nilto Maciel, que, noblesse oblige, não deixa de lado fatos miúdos de sua vida privada. Às vezes transpira e goteja partículas de medos, de dúvidas, de incertezas, para entregar-se inteiro ao ato de contar histórias, agora reais, presenciadas no cotidiano de uma vida cada vez mais medíocre e, às vezes, sem sentido. (O desconforto do supranormal neste mundo é gritante.)

Menos vivi do que fiei palavras faz-se porta-voz também de sustos e inquietações, de aventuras e desventuras do cidadão Nilto Maciel — homem comum, que trabalha, dirige automóvel e tem obrigações sociais a cumprir. Consigna, por outro lado, uma visão de mundo extraliterária (choro de criança, casa pequena, aparelho de tevê ligado, pessoas dormindo na sala, etc.). Espécie de sombra a encobrir o criador e, por contingência, dificultar o seu trabalho, toldar a sua solidão produtiva. Nesse vaivém de símbolos e signos, a realidade se impõe e ameaça o universo que lhe diz respeito, dentro de uma imagística estritamente pessoal. E tudo é motivo de dor, angústia, sofrimento. Produzir literatura já não basta. É preciso extrapolar a ficção e confiar a um interlocutor silencioso o seu desassossego, as suas contradições. Poder abrir-se, sem temor ou reserva, à confidência. Contar de suas andanças à caça de editor, dos novos livros adquiridos, de suas reuniões sindicais, de suas decepções com a vida lá fora, enfim.

E, assim, as leituras e apontamentos vão abrangendo textos produzidos em outras línguas e idiomas. Autores de vários países, embora “traduzidos” e “incompletos”. Todos eles companheiros de jornada. Por outro lado, volta-se para a província e não se faz de rogado, nem de bonzinho. Denuncia o poeta idiota e pedante, que não lê poesia e se julga um novo Cruz e Sousa. O romancista que não consegue se livrar da incompetência, da falta de talento, e insiste. A escritora de infantojuvenil que não consegue distinguir crônica de conto. E canta e decanta certa poetisa — mulher belíssima e sensual —, mais pelas formas do corpo do que pelos versos.

Mas o livro, para júbilo de quem realmente ama e conhece o mundo das letras, traz no seu corpo de celulóide e sonho uma face bem peculiar do autor de A rosa gótica: o compromisso com a arte e o resultado de leituras e releituras dos clássicos e dos não clássicos. Ali estão reunidos testemunhos sinceros de quem mais fiou palavras do que viveu. Nilto Maciel entregou-se à literatura de corpo e alma e fez dela um sacerdócio. E esse exercício permanente faz do nobre filho de Baturité “um feiticeiro” que jamais será “devorado pelo próprio feitiço”. Porque, se a vida é sonho, morrer é continuar sonhando.

Brasília, 12 de dezembro de 2012.

* João Carlos Taveira é poeta e crítico literário, e tem vários livros publicados.
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PARA NILTO MACIEL (O Poeta de Meia-Tigela)




Escrever por quê? Para me saber
menos só. Menos só para quê? Para
me dizer mais jardim, menos saara
(e no entanto o deserto em meu dizer)
Escrever por querer sair de mim:
para me saber comunicativo
(e no entanto me sei comum cativo
do deserto que sou: Não e não, sim)
Escrever para escrever escrever
(e no entanto esse não-dizer que paira
em mim, em minha fala como espanto,
em meu querer sair de mim: mais ser)
Escrever (e no entanto a fala avara
em mim, em meu dizer: esse no entanto
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- Sobre O Poeta de Meia-Tigela, acesse

Nilto Maciel revisitado* (Batista de Lima)




Sânzio de Azevedo me telefonou à tarde de 30 de abril último para anunciar a morte de Nilto Maciel. Já não bastava a aflição da Declaração do Imposto de Renda, no seu último dia. Havia prenúncio desde cedo, com Fortaleza engasgada de carros que não se moviam. Inacreditável tão fatídica notícia sobre alguém tão presente na nossa vida literária, sobre um líder entre gerações de escritores de 1970 até hoje. Talvez só parelha com Rogaciano Leite Filho, que, mesmo assim, teve uma morte mais ou menos convivida. Nilto sempre foi surpreendente, em Fortaleza ou em Brasília, em que residiu por três décadas, estava rodeado por escritores, falando pouco e dizendo muito.

Nilto Fernando Maciel nasceu em 30 de janeiro de 1945 em Baturité, cidade em que fez seus primeiros estudos. Ainda adolescente já estava em Fortaleza para estudos mais avançados que o levariam, com o tempo, a ingressar na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Como advogado candango chegou a Brasília, enquanto aquela cidade ainda adolescia, e por lá ficou trabalhando no Tribunal de Justiça até quando aposentou-se e retornou para Fortaleza. Tanto na Capital Federal quanto na Capital Cearense, engajou-se no mundo da Literatura como notável narrador e também como organizador de grupos literários e periódicos de vasta repercussão nacional.

Fui apresentado a Nilto Maciel em 1971, pelo seu irmão Ednardo, que como eu, fazia Letras, curtia literatura e frequentava o Restaurante Universitário. Ednardo faleceu em um acidente automobilístico e a amizade com Nilto ampliou-se quando ele, ao lado de Jackson Sampaio, Carlos Emílio Correia Lima e Manoel Raposo fundaram a revista O Saco de que éramos curtidores assíduos. Sua ida para Brasília parecia que ia quebrar esse vínculo afetivo. Acontece que em 1979, com o surgimento do Siriará, grupo literário com mais de duas dezenas de escritores, estávamos de novo batalhando juntos pela Literatura Cearense.

A distância entre Brasília e Fortaleza não impediu de Nilto atuar no novo grupo literário, principalmente lá fora, na divulgação do que fazíamos aqui. Qualquer feriado, período de férias e final de ano, estava o companheiro conosco em reuniões literárias e noitadas no Estoril. Era um boêmio de poucas palavras e muitos goles, no entanto, sempre comedido, parceiro e fraterno. Qualquer um de nós quando íamos a Brasília, era festa na certa. O Bar Macambira era local de reunião de confrarias literárias. Ali se reuniam poetas, políticos, leitores e boêmios em papos e doses que varavam a noite.

Ao se aposentar, Nilto Maciel retornou em definitivo para Fortaleza e dedicou-se exclusivamente à Literatura. Aqui, nessa nova fase, transformou-se em verdadeiro guru das novas gerações de escritores, sem esquecer as antigas. Circulava com desenvoltura entre remanescentes do Grupo Clã (década de 1940), Grupo dos Concretos (década de 1950), Grupo SIN (década de 1960), Grupo Siriará (década de 1970) e estava sempre cercado de jovens escritores que se tornariam revelações de nossa Literatura como Pedro Salgueiro, Dimas Carvalho, Cândido Rolim, Hermínia Lima, Aíla Sampaio, Tércia Montenegro, Raymundo Netto e muitos outros.

Aliás, foi Raymundo Neto quem primeiro tomou conhecimento de sua morte. Afinal, há dias ele não atendia telefonemas e estava descumprindo o compromisso literário com a UVA (Universidade Vale do Acaraú), em Sobral, em evento sobre a Literatura Fantástica no Ceará, em que seria um dos palestrantes. Não seria a primeira vez que Nilto Maciel falaria para estudantes de Letras em Sobral. Lá estivemos, tempos atrás, com o mesmo objetivo e foi visível o sucesso de sua fala. Também estivemos em missão similar em Aracati e em várias oportunidades em Fortaleza.

Nilto Maciel é autor de doze livros de contos, nove romances, três coletâneas de ensaios e mais três livros de crônicas memorialísticas. Descendente da estirpe da família Maciel, de Quixeramobim, um de seus ancestrais é Antônio Conselheiro, líder do episódio épico de Canudos. Talvez esse DNA o tenha tornado um escritor cultivador do fantástico, conhecido nacionalmente. Seus livros trazem o selo de editoras locais, de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Há deles traduzidos para outras línguas e pelo menos um transformado em filme. Sua mais recente publicação foi "Sôbolas manhãs" que me foi enviado 20 dias antes de sua morte.

De 1992 a 2008 Nilto Maciel editou e distribuiu "Literatura: Revista do Escritor Brasileiro", em mais de trinta números. Dada a nossa amizade, sempre publicava meus textos, a ponto de me orgulhar de estar presente em todas as edições. Sempre o correio me trazia dez exemplares de cada número. É por isso que sua partida inesperada traz um vazio imenso para nossas letras. Deixa órfã uma geração de jovens escritores que o tinham como referência e põe em alerta os da sua geração que o admiravam tanto. É que essa vida é traiçoeira e que esse seu mais recente livro em vez de "Sôbolas manhãs" se afigura aos nossos olhos como "Sôbolas tardes". Nossa geração Siriará já ultrapassou o meio dia.
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* Originalmente publicada no Caderno 3 do Diário do Nordeste. Clique "aqui".
- Sobre Batista de Lima, acesse: http://pt.wikipedia.org/wiki/Batista_de_Lima.

Quem terminará as tarefas do morto?* (Pedro Salgueiro)



Quem completará as inadiáveis tarefas do morto? Quem acabará de arrumar sua penúltima mala, na qual só faltava uma camisa engomada, já que a calça de brim jazia bem dobrada ao lado da pasta com o fecho aberto até quase a metade (por onde dali a pouco ele enfiaria o discurso de abertura de um congresso macabro).

Quem terminará de pôr sua derradeira postagem na página que era seu barco, sua âncora, sua tábua de salvação de náufrago sem remissão? Qual dos amigos postará um primeiro e o último comentário póstumo, com a bendita insulina do elogio fácil que tanto azeitava o parco sangue do morto?

Quem de nós, amigos de sempre e os ausentes, aparará pela última vez as unhas tortas do morto; qual deles se sentará desconfortável no sofá puído, sobre a velha toalha com emblema gasto do glorioso “Tricolor de Aço”, que tanta tristeza vinha trazendo ultimamente ao finado?

Quem completará o último romance do corpo magro e putrefato que jaz inocentemente estendido no pequeno corredor entre o banheiro, o quarto de dormir e a sala?

Quem ouvirá de sua boca minúscula que aquele seria seu Ulisses, seu canto de cisne, sua última e mais perigosa jogada: depois da qual não se sustaria pedra sobre pedra do que imprudentemente escreveu antes?

Quem da famigerada corja dos companheiros de copos, de colegas de geração, de novos e velhos parceiros de penas, escutará suas derradeiras idiossincrasias, seus restantes insultos velados, suas últimas indiscrições escritas?

Quais dos ouvidos singelos, limpos e sempre disponíveis, escutarão suas reles blasfêmias de ateu reimoso, seus vãos arrependimentos, suas dolorosas lembranças de infância, por onde desfilarão – irremediavelmente sumidos – seus pais, tios, irmãos, todos mortinhos covardes que o foram deixando sozinho pelos pedregosos caminhos da vida?

Quem dentre os muitos companheiros de vida ecoará pelos ventos suas iras, sonhos, amores, dissabores, langores, sussurros e preces?

Quem raspará a rala barba diária do morto, quem cofiará com seu modo único o velho bigode aparado tão baixo, discretamente escondendo o riso cínico, a impune maledicência, os dentes finos trincados de dor?

Quem dentre os já mortos o vai auxiliar no profundo estudo da geologia dos campos santos? Quais dos Josés, Aírtons, Edinardos, Aldas, Alcides, o ajudarão a aparar as raízes desse imenso “mato baixo” que somos no fundo todos nós que por aqui restamos?

Quem editará seus livros esquecidos, os quase concluídos e – principalmente – os que ainda seriam escritos? Quem os postará nos correios para os tantos admiradores desse Brasil tão grande? Quem receberá, por sua vez, a enorme quantidade de livros que lhe enviarão todos os novíssimos poetas desse país gigante?

Quem vai restaurar os derradeiros filmes, fotos e lembranças de vida para mostrar no moderno projetor, que ele havia acabado de comprar e posto no quarto para presentear as quatro filhas quando elas aqui por ventura aportassem?

***

Não! Não! Senhores! Um morto assim não deveria morrer tão cedo, pois ele ainda tinha diversas coisas a fazer, bastantes (e inadiáveis) tarefas para completar...

E muita, muita vida ainda por viver!

“Demorou dias a agonia de Ascânio Bustamante Coimbra. Vomitava versos, retorcia-se na cama, agitado, febril, voz sumida. E finalmente expirou, translúcido como a evidência, magro, quase ossos, e a pele manchada de letras.” (Nilto Maciel – do conto O translúcido Ascânio).
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* Crônica publicada no jornal O Povo, em 10/05/2014 - clique "aqui".

quarta-feira, 9 de julho de 2014

SÔBOLAS MANHÃS* - Homenagem a Nilto Maciel (Horácio Dídimo)




Sôbolos rios que vão
Camões


Sôbolas manhãs que vêm
Como os rios desta vida
Que agora trazem também
Repentina despedida

Sôbolas  manhãs de quem
Nos deixa bem definidas
Formas  que expressam tão bem
Nossas breves sobrevidas

Sôbolas manhãs do além
Voa Nilto Maciel
Para o céu dos escritores

A luz da sua escritura
É palavra que perdura
E  azula todas as cores

:::Exercícios de admiração
     Horácio Dídimo

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*MACIEL, Nilto. Sôbolas manhãs. Porto Alegre: Editora Bestiário, 2014
Cf. MACIEL, Nilto. Luz Vermelha que se Azula. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011
- Sobre Horácio Dídimo, ver o link: http://pt.wikipedia.org/wiki/HorácioDídimo