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quinta-feira, 29 de setembro de 2005

O filão de Luciano Barreira (Nilto Maciel)

Os escritores de Brasília são provenientes das mais diversas regiões do país. Apesar disso, alguns deles têm buscado elaborar obras que retratem a cidade. Uns porque candangos, outros porque chegados maduros no oficio literário. Um deles, porém, conseguiu a proeza de ir mais longe, ao pintar com tintas fortes a Brasília que não aparece nos cartões postais, a Brasília da periferia. Trata-se de Luciano Barreira. E a pintura chama-se Feliciano, o brasileirinho (equivocado) que sonhou com a felicidade. Não é apenas um retrato das cidades-satélites. Porque o Distrito Federal cresceu como as demais grandes cidades brasileiras. Felicianos existem aqui, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Recife, em Belo Horizonte.´

O romance conta a história de um cearense como tantos outros nordestinos, goianos, mineiros. A história de seu sonho: deixar o campo, onde tudo parece ainda na Idade Média, e buscar a cidade, o progresso, a civilização. Conta a história do fim desse sonho.

A narrativa está repleta de descuidos de estilo, chavões do regionalismo e do realismo, sem nenhuma inovação técnica, na trama. Sua estrutura tem cem anos de atraso. O livro é dividido em 29 capítulos (contando-se o tradicional epílogo). Nos dois primeiros capítulos o autor narra o tempo que vai do nascimento de Feliciano à sua decisão de ir para Brasília, equivalente a uns 15 anos. Nos demais capítulos é narrado o resto da vida do protagonista: dois anos.

Fosse Luciano Barreira menos apegado às velhas e ultrapassadas técnicas de narrar, poderia ter escrito um prólogo, que contivesse os dois primeiros capítulos. Ou poderia ter utilizado o flashback. O personagem principal vai aos poucos desaparecendo de cena e dando lugar a outros, para, pela metade do livro, reaparecer ao lado de uma figura sempre crescente – Fátima, a heroína tardia.

O romance relata, com fidelidade jornalística, com amargura, amor e ódio, a vidinha de um rapaz, seu rápido passar pela vida. De tanto ouvir falar em “gigante pela própria natureza”, Feliciano ousou sonhar com uma vida melhor. O menino de Quixadá, sertão do Ceará, tornou-se adolescente, aprendeu a ler e a consertar carro, e um dia subiu à boléia de um caminhão e partiu para conhecer de perto a “capital da esperança”. Hospedado, como filho, na casa de outros migrantes nordestinos, na Ceilândia, experimentou ser mecânico e depois camelô.

As cenas do confronto entre mecânicos e policiais, bem como as cenas em que camelôs são perseguidos pelo “rapa” se gravam na mente do leitor, apesar de vulgares.

Impedido de trabalhar, roubado pelos fiscais do governo, o rapazinho acaba seduzido pela conversa de outro jovem. Dá-se o primeiro roubo, e está selada a sua sorte. Nasce mais um assaltante, um monstro, uma fera, no dizer de certa imprensa e dos policiais.

Contudo, Feliciano pára no meio do caminho, desiste da marginalidade. A imprensa, no entanto, precisa de sensacionalismo, enquanto a polícia necessita atender os reclamos dessa imprensa medíocre e bandida. Fabricada a fera, mister se faz eliminá-la. E um batalhão de homens bem armados e medonhos assassina um brasileiro expulso do campo.

A história de Luciano Barreira é um libelo contra o latifúndio e todo o sistema agrário brasileiro, o abandono do Nordeste, a marginalização do migrante na cidade grande, a tortura e o assassínio de entes humanos levados ao crime e ao desespero.

Feliciano termina otimista, nas palavras e nos gestos da personagem feminina: “Fátima depositou sobre o caixão já pronto para baixar ao jazigo uma coroa de flores brancas e vermelhas”.“– Meu amor – disse ela com os lábios a tremer – que tua coragem passe toda para mim. Quero ter forças para lutar por um mundo de amor e justiça! – Ela então num gesto maquinal tocou o ventre e disse por entre uma torrente de lágrimas que já não podiam ser contidas – eles pensam que te mataram de todo... mas você, Feliciano, vai voltar a viver na vida do nosso amor!”

O romance chega a ser terno. Entretanto, fica a indagação: o filho de Feliciano e Fátima será um brasileiro feliz ou não passará de mais um brasileirinho equivocado que sonhará com a felicidade e acabará marginal e assassinado como um porco?

Foi servindo-se, basicamente, do drama da seca no Nordeste que a literatura brasileira alcançou seus grandes momentos. São inumeráveis os romances do ciclo da seca. Com a escola naturalista-realista, o drama das populações nordestinas entrou para as letras, quando nossos ficcionistas e poetas se voltaram para sua gente e sua terra, deixando de lado as torres de marfim onde cantavam musas antigas de terras distantes e desconhecidas e mesmo nosso passado já morto – o indígena de Alencar, Gonçalves Dias e outros. Na verdade, o drama da seca é anterior ao homem José de Alencar. Registra-se nos anos de 1710-1711 a primeira grande seca no Nordeste. Isto, contudo, não traz nenhum demérito para o criador do romance brasileiro. Porque, sabe-se, o deserto criado em terras nordestinas tem sua origem no genocídio praticado pelos fazendeiros contra nossos naturais, na busca criminosa de terras para a criação de gado. Este processo começou no Nordeste ainda no século XVII. E assim foi possível fazer daquela região, outrora tão rica em sua flora, fauna e rios caudalosos, num autêntico deserto, propício às grandes secas periódicas.

Luciano Barreira, ao publicar Os Cassacos, romance sobre a seca, estaria batendo em teclas desgastadas? Não, porque o drama da seca ainda existe. Além disso, os temas não se esgotam, mesmo que não exista mais a sua causa material, como no caso do cangaceirismo, que também gerou rica literatura. Os Cassacos, apesar de seus defeitos notórios, é bem estruturado. Os personagens são gente viva e real. Sertanejos lutando desesperadamente para não morrer de fome. O enredo é rico, trilhando o romancista os caminhos da narrativa tradicional, até com o clássico happy end. O uso de técnicas antigas, por si só, não significa ser antigo, como no exemplo do soneto. Uma obra literária pode ser renovadora ou revolucionária, na forma, e não passar de uma mediocridade. A literatura está cheia de mediocridades por isso mesmo.

Em Os Cassacos se vêem ainda outros defeitos: os discursos descritivo e analítico. Veja-se o exemplo do trecho seguinte: “Dele (de Castro Alves) elas jamais souberam que lutou ardorosamente pelas idéias mais avançadas de seu tempo” (pág. 174), quando o autor claramente participa da história, como se escrevesse não ficção, mas um ensaio. Outras vezes pinta o caráter dos personagens, embora seja isso prática comum, como na oração: “Zuca não era ambicioso" (pág. 139). Além disso, o narrador comete o pecado da onisciência, sabendo e relevando até os pensamentos de seus personagens.

Luciano Barreira, neste romance, retrata não apenas o drama de uma seca, a de 1958, mas a vida do homem sertanejo, especificamente do homem do interior do Ceará, apresentando, tal como um técnico, as soluções para tal problemática, pelas palavras e ações de alguns personagens. Não são soluções revolucionárias, mas reformistas, dentro do próprio sistema capitalista, qual seja, a de industrializar a agro-pecuária.

No epílogo, o romancista casa o operário Zé Mundola e a camponesa Ducarmo, personagens que aos poucos vão assumindo as características de protagonistas. Antes criara uma série de acontecimentos aparentemente desnecessários ao corpo do romance, como a viuvez de Mundola, a cobiça de Pedro Nonato e a morte de Manuel, para, assim, conduzir a trama dentro das limitações de sua criação. Os personagens tornam-se, destarte, meras marionetes em suas mãos. Com isso, consegue desenvolver uma simbologia marxista: Zé Mundola representa a classe operária e Ducarmo, o campesinato. O próprio narrador não deixa escapar mais uma pitada de discurso analítico, tal se fosse o crítico de sua própria obra, ao dizer que talvez aquele casamento representasse a famosa consigna revolucionária. Apesar de todas as limitações da obra, o livro tem muito mais profundidade do que a apresentada no título. Como afirma Jáder de Carvalho, o título do livro parece restringir o romance ao aspecto da existência dos cassacos quando reflete muito mais do que isso – o amplo panorama da seca. Seguindo o rastro dos naturalistas e do romance de 30.
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Perdas e ganhos (Nilto Maciel)



Perde-se o lenço,
ganha-se a lágrima.
Perde-se o dente,
ganha-se a sisudez.
Perde-se a vergonha,
ganha-se dinheiro.
Perde-se o amor,
ganha-se outro.
Perde-se o dedo,
ganha-se o anel.

Perde-se o emprego,
ganha-se a dívida.
Perde-se o jogo,
ganha-se a desilusão.
Perde-se a paciência,
ganha-se o infarto.
Perde-se a esperança,
ganha-se o desengano.
Perde-se a cabeça,
ganha-se a calvície.
Perde-se a virgindade,
ganha-se a experiência.
Perde-se o trem,
ganha-se a espera.
Perde-se o poema,
ganha-se a insônia.
Perde-se a bolsa,
ganha-se o medo.
Perde-se a guerra,
ganha-se a ruína.
Perde-se a crença,
ganha-se a dúvida.
Perde-se a liberdade,
ganha-se a solidão.
Perde-se o tempo,
ganha-se a eternidade.
Perde-se a vida,
ganha-se a saudade.

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