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sexta-feira, 7 de outubro de 2005

As irreversíveis lavas do Vesúvio (Nilto Maciel)


Nunca consegui esquecer essa mulher que se grudou em meus olhos feito uma cegueira e tomou o lugar de todas as outras. De minha mãe, das santas de papel e gesso, das mocinhas fugidias, das heroínas dos compêndios de História, das personagens de romances, das vedetes do cinema, das cantoras mortas, daquela com quem vivi quase uma vida. Dentro de mim, essa mulher ora me acalanta, ora me espreita, ora me sufoca. Doutras feitas ora se mostra engrandecida, ora se faz sofrida, ora se enche de vida. Mais além é mero fulgor de sons, quando não me reclama ou não me espanta.

Depois de tanto tempo, agora, é como se eu e ela fôssemos o mito eterno e incriado de uma dor indefinível frente ao desespero ilimitado. No sonho, na vigília, na dimensão incompreendida da recriação. 

Examinei-lhe o cadáver e persiste ainda em mim a vaga noção de tê-la viva – a mesma criatura daquele único, passageiro e casual encontro. Como se nos víssemos para além da vida e da morte – mitificados.

Seu corpo desfigurado pelo fogo me apavorou sempre, naquele dia, depois, agora. A mim, acostumado a conviver com mortos vindos das mais variadas formas de morrer. Não por reencontrá-la defunta, semicarbonizada, mas por tê-la conhecido.

Desvendei-lhe a vida do embrião à sepultura, numa investigação de celerado. Como se chamava, onde e com quem vivia, o que fazia e deixava de fazer, seus brinquedos, suas manias, seu jeito. Anos e anos dedicado a uma criatura sem biografia. E nada daquilo importava, a não ser para rebuscá-la inutilmente. Qual a importância de seu relacionamento com aqueles cabeludos que vagavam por ruas e estradas? Que significado tem a sua pouca fala sobre paz e amor, os hindus, Sidarta?

De tudo, talvez só o seu diário valha a pena ser preservado. E para mim, hoje, quem sabe apenas a última anotação:
“Não sei onde anda o meu amigo, nem onde dormiu. Pode estar morto a estas horas, ou preso mais uma vez.”

Sua derradeira referência ao rapaz com quem andava, seu irmão de solidão, de quem eu nunca soube o paradeiro.
“De manhã vendi meu isqueiro a um desconhecido. Toquei-lhe o braço e fiz a oferta. Disse-me que não fumava e tra-tou de desvencilhar-se de mim. Tive ódio e comigo mesma chamei-o de porco, cachorro, miserável. Procurava com os olhos alguém que me ajudasse, quando ele voltou e perguntou por que eu queria vender o isqueiro. Olhava para mim com curiosidade, como se eu fosse um bicho estranho. Durou alguns minutos nossa conversa e pude observar como se vestia bem, todo de branco, parecendo ser médico ou enfermeiro. Roupa lim-pa, corpo limpo, cheiroso. Senti desejo de abraçá-lo, beijá-lo. E ri de mim mesma, de minha tolice.
Falei de minha fome, da necessidade de dinheiro para comprar comida. Não pensasse besteiras, podia confiar em mim, o isqueiro me pertencia de verdade, não costumava roubar. Meu lema era só paz e amor. Disse ainda uma porção de coisas, enquanto ele apenas ouvia, metia as mãos nos bolsos, perguntava quanto eu queria pelo isqueiro. Notei sua pressa e tratei de fechar o negócio. Pedi muito, esperando uma reação dele. Para minha surpresa, no entanto, ele me passou o dinheiro pedido, recebeu o isqueiro, disse adeus e retirou-se.

Ainda agora estou pensando no desconhecido. E também no dinheiro que ele trocou por um isqueiro. Nada mais me restou, porque o dinheiro eu o dei aos mendigos. E a fome passou. Quero só pensar em mim mesma.”

Termina aí o diário. E não há qualquer explicação para o suicídio, ocorrido ao escurecer.

Cabe a mim completar a história – essa pequena história vivida por ela e por mim.

Ao deixá-la, guardei o isqueiro no bolso e, enquanto caminhava para o carro, por uns dois minutos ainda me lembrei dela.

Ao chegar ao instituto, desfiz-me do maldito isqueiro. Ofereci-o a uma colega. Um mal-estar qualquer me indicava ser preciso apagar do espírito as imagens daquela menina.

Depois de jantar, informaram-me que me aguardava “um caso estúpido”. Lembro-me de ter perguntado se havia algum caso delicado naquela porcaria. “Uma garota se matou, tocou fogo às roupas”, completaram. Nem me passou pela cabeça a moça do isqueiro. Porém ao ver o cadáver, tomei um susto. Seu rosto, sua cara apavorada, parecia me dizer: “Cidadão, quer comprar este isqueiro?”

Enquanto examinava a defunta, recordei o encontro da manhã. Eu me havia compadecido daquela pobre criatura e em nenhum momento olhei para ela com olhos de cupidez. Pareceu-me muito infeliz, não por andar suja, despenteada, faminta, mas por vender um isqueiro, como se vendesse o próprio corpo, para matar a fome.

Não tive palavras de conforto, de ajuda, de socorro, embora haja pensado em falar das injustiças sociais, do desamparo à infância, à juventude, às pessoas em geral, fazer um discurso ético e político. Depois achei por bem apenas ouvi-la e aceitar a sua oferta.

Em determinados momentos senti que ela desejava uma aproximação maior, vender-me seu corpo, em vez do isqueiro, tal como está no diário. Ou simplesmente oferecê-lo de graça, tanta me pareceu sua solidão. Seu olhar transmitia isso. Eu, no entanto, nenhum desejo senti, não por repugnância ao estado de seu corpo ou qualquer outro escrúpulo, mas por estar cheio de outros sentimentos.

Ao constatar o vazio de seu estômago, tive ímpetos de chorar, gritar, acordá-la, dar-lhe vida. E me senti impotente, inútil, frágil, como se eu mesmo estivesse morto.

A partir daquele dia, ela não mais me deixou e, onde quer que eu esteja, ela me acompanha, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia. Aquele último dia dela cai sobre mim feito o Vesúvio – lavas irreversíveis.

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sábado, 1 de outubro de 2005

W. J. Solha: A lucidez possível (Nilto Maciel)



Como diz ou quis dizer W. J. Solha, A Canga é uma “estória” desesperada, delirante e aflita. E tudo isso em pouco mais de setenta páginas, nas quais um verdadeiro remoinho de ações leva o leitor a um universo conflituoso difícil de ser imaginado como real. Isso levou certo crítico a ver no livro nada mais do que um amontoado de personagens engalfinhados do começo ao fim. No entanto, a estória é uma síntese daquele universo de desespero que é o Nordeste brasileiro, onde os conflitos sociais emergem de um mínimo gesto.

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A história de W. J. Solha é um todo de violências desde as primeiras linhas, quando espoucam foguetões lançados pelas tropas que vão tomar a suposta mina de cobre das mãos do governo “comunista”. Daí por diante até a última página, quando a derradeira vítima é fulminada, não é fácil contar as cenas de brutalidade. Entenda-se, contudo, tudo isso como uma metáfora da violência naquela região outrora varrida ora por cangaceiros, ora por jagunços a serviço dos clãs mais poderosos. Ou como a síntese dessa mesma História, a partir do surgimento dos bandos que se entregavam à violência como forma desesperada de luta contra o sistema. Talvez por isso, o crítico superficial não tenha visto em A Canga mais do que uma história tumultuada, com a presença de personagens e heróis os mais variados no tempo e no espaço, desde Gauthier-Sans-Avoir até Frei Damião.

A bem da verdade ficcional do romancista, é necessário posicionar os vários personagens ou grupos que movimentam a história. Vemos primeiro Ascenço Teixeira e sua gente: Zé, seu filho parricida; Cipriano; Sinhá Nana e Zefa. É o grupo familiar, de onde emergirá o herói do romance. A seguir, temos o bando do Padre Capistrano Simão, o condestável-jagunço Miguel Maria e a donzela morena Cila, representando a parte eclesiástica dos revoltosos. O deputado Doutor Floro do Campo-Maior é a encarnação política do movimento que se propunha “livrar São José da Micaela das garras do monstruoso comunismo que o Presidente da República” queria impor ao povo. Levantava-se este grupo em guerra santa contra os mouros do sertão. Para tanto, trazia consigo um gringo louro, para filmar tudo, cientes os chefes do bando da certeza da vitória, tal como os cristãos europeus noutros tempos: levavam cronistas e escrivães para documentarem a História. Ainda assim, no meio da luta a diáspora seria inevitável. Cada facção sonhava trazer os louros da vitória. Que não aconteceu.

O terceiro grupo, o dos “comunistas” ou “mouros", é representado ou composto (porque tudo não passava de mentira) pelos irmãos Frei Martinho ou Fradinho e Engenheiro. Na verdade, nem frade nem engenheiro. Apenas filhos do coronel Fenelon Marques, assassinado, noutro tempo, pelo mesmo grupo do Padre e do Deputado, quando então contavam com as armas do cangaceiro Justino. Este, mudando de casaca, virou “capitão com patente de mentira” às ordens do Engenheiro.

É perfeitamente clara a alusão a personagens da História das lutas sociais ocorridas no Nordeste. Também Padre Cícero e o Deputado Floro Bartolomeu comandavam jagunços, e Lampião foi condecorado capitão pelo governo, para combater a Coluna Prestes. No romance, os papéis se invertem e o tempo é outro. A tragédia é encenada na Paraíba, num tempo mais recente.

A Canga é assentada sobre um arcabouço de mentiras. Assim, a mina de cobre não existe e todos caem no logro, de que resulta uma guerra fratricida. No final, a própria guerra não passa também de uma metáfora – a do poder.

Zé, nome do povo ou nome coletivo, é outra metáfora – a do povo. Troca a canga que lhe impunha o pai (símbolo da família, do clã, do primeiro agrupamento), a quem mata, iniciando-se na violência, pelo cangaço. Primeiro a serviço dos revoltosos cristãos, dos poderosos, que dele se utilizam, como outros quiseram se utilizar de Lampião. No decorrer da luta, Zé (o povo) adquire a lucidez – uma “lucidez dos infernos”, de que jamais iria se livrar, e, desesperado, perdido no torvelinho das mentiras manipuladas, volta-se contra todos. É a “cacetada na cabeça de todo mudo”, como confessa Solha, ao se referir à sua “estória”.

O livro está para o romancista assim como a luta, a loucura, o desespero estão para Zé, o povo. Desejoso de escrever uma obra forte, para tudo levar de arrasto (ou de roldão, como dizem o povo e seus menestréis do cancioneiro popular nordestino), Solha manifestou literariamente o desespero, a loucura e a luta de Zé, povo. Ou sua lucidez possível, difícil de ser conceituada. Ou entendida pelos poderosos e seus apaniguados, eternamente deitados em berço esplêndido e de olhos vendados para a mentira que levou os Zés ao cangaço – no passado – e leva ao crime comum – hoje.
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