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terça-feira, 11 de outubro de 2005

As sete onças de Neo (Nilto Maciel)

Para Juarez Barroso,
que não deixou de sonhar.






"De repente, nós ouvimo o esturro duma onça trigue, que há muito vinha fazendo estrago no gado. Pedi um rifle ao dono da fazenda, saltei a cerca do curral e, entrando no cercado do Doutor João Urso, avistei em vez da onça um veado e fiz fogo nele, nas errei o tiro e matei foi o diabo duma vaca que se achava adiante, pastando..."
Leonardo Mota, Sertão Alegre (Sonhou com o “Bicho”)




Escalafobética, sim, demais, Seu Doutor. Sistema duma coisa não passada, dum marco. Porém eu trago a história todinha na ponta da língua e posso contar inteirinha, se o Senhor não se aborrecer. Não? Então escute. Era uma casa grandona, cheia de compartimentos, enorme. Por dentro e por fora parecia muito antiga, mais velha do que a serra. Eu até me lembrei do sobradão do Dr. João Ramos, com suas cem janelas. Mas não devia ser um sobrado, não, porque se fosse, em vez de telhado tinha era tabuado. Se eu estivesse no andar de riba. O telhado era de telha mesmo, como de fato era. Porém, em vez de chão de barro ou de tijolo ou de cimento – que esses ricos têm mania de cimentar o chão – tinha era tabuado. Mas isso não vem ao caso. O diabo é eu não me lembrar o nome daquela rua. Podia ser a Tristão Gonçalves. Não, é só impressão. E nem podia ser, porque por lá tudo já está muito civilizado, tem calçamento, casa de tijolo, rádio, moça-donzela estudando piano e essas coisas todas da cidade.

De qualquer forma, a rua ficava pros lados da Parangaba. Pro lado do mar não há de ser, não. Para encurtar a conversa, vamos deixar de lado a questão da rua e começar a história. Pois bem: primeiro apareceu uma baita duma onça-preta, tão preta que não dava pra enxergar se era o couro dela ou a noite que vinha se remexendo feito feme de reboque. O Senhor sabe: esta tal tem a volta muito mais perigosa que o jaguar. Isso se deu no alpendre. Pois a bicha vinha toda faceira, roncando, naquele andar preguiçoso de quem não quer nada e querendo. Boi brabo, chegando na terra alheia, se faz de manso. Pois a danisca devera de saber que ali não era terra de onça. Não me assustei, não Senhor, que um homem é um homem e um bicho é um bicho. Pra falar a verdade, não sei nem o que senti. Devo ter sentido só um medinho de nada. Ora, com fera não se brinca, por mais valentão que se seja. Não sou um Lampião, mas também não sou desses cabras frouxos que se mijam todo por qualquer besteira. Então fiquei de molho. Isso depois de imaginar o que havera de fazer. Mal avistei aquela ruma de pretura passeando no meu rumo, fiquei todo soberbo, de priquita queimada. Controlei o suspiro e fui me encostando na parede. Talvez ela passasse sem me ver e fosse embora. O Senhor sabe: é bom evitar. Não, eu não estava com medo de morrer nas unhas dela. Eu nunca nem imaginei isso. Ora, se eu nunca morri nem quando briguei com três cabras, num quebra-rabicho lá em Guaramiranga. Eles armados cada um com uma pajeuzeira maior do que a do Titico meu irmão. Depois eu vou falar dela e dele. Além disso, carregavam três jucás. E eu só com uma quicezinha de nada! Juro por Deus, eu nem pensei na morte! Apenas tomei cautela, que por causa duma esporada se perde uma vaquejada. Se eu fosse com lorota, ela se espantava e adeus caçada. Ora, aquilo pra mim não passou de uma caçada, a caça chamando o caçador. Então esperei que ela me avistasse, porque estava escuro de meter dedo no olho e aposto como a coitada também não me enxergava. Ia ser uma covardia sujigar a bicha sem avisar. Eu não sou dessa nação de gente. Negócio de tocaia não é comigo. Isso fica pra cabra medroso que não tem coragem de olhar de frente o inimigo. Quando ela me enxergou – e digo isso porque avistei aquelas duas tochas rumando na minha direção – quando ela me enxergou, dei uns dois passos também na direção dela, pra não ficar pra trás. E pensei cá comigo – essa é das grandes e vai querer passar por cima de mim, me pisar, me lamber, me arrastar pro mato. E lá vinham as duas tochas crescendo no meu rumo, alumiando tudo, numa macieza de deixar qualquer cristão sem fala. E quando já estavam pra me queimar, apalpei os cós das calças e... cadê faca? Fiz o Pelo-Sinal, me agarrei com a minha Santa Luzia pra me alumiar os olhos e enxerguei o pau-furado no canto da parede. Mais que depressa, apanhei o desgraçado e... Ainda hoje não sei como se deu aquilo. Eu nunca deixo de trazer comigo essa faquinha aqui, porque sou dado a varar noite por esse Mucuripe, por essa Parangaba e até pela Caucaia. Como o Senhor há de saber, lá só dá jararaca do rabo fino, que mata por brincadeira. Não que eu seja uma cobra de chifre, ande fazendo arruaça, acabando samba e atirando à toa. Deus me livre disso! Eu sou até assim meio besta, não digo frouxo, que é outra coisa muito diferente. Eu carrego uma opinião comigo: se eu vejo a coisa preta, vou saindo de mansinho e escapulo. Ora, quem não muda de caminho é trem. O meu sistema é outro – é só brincar. Se é um samba, chego, tiro a moça, danço. Fora disso, tomo minha cachaça, sem muita lambança e não esquento pé de balcão. Então a faquinha aqui eu só uso em caso de muita necessidade. E nem ando mostrando a ninguém. Cachorro que muito ladra não morde. Graças a Deus nunca feri nem matei ninguém. Pois como eu ia dizendo, a bicha vinha vindo, vinha vindo e eu fui indo, fui indo. Eu já disse e repito: medo eu não tenho nem nunca tive. E fui indo, já de arma apontada pro focinho dela. A espertinha compreendeu a brincadeira e parou pra dar o pulo. Porém antes que ela terminasse de pensar e desse o salto, puxei a alavanca. Pêi, pêi, pêi. Não sei nem contar como tudo se passou, em seguida e na horinha. Não sei se ela caiu logo, não sei se ainda esperneou, não sei se esturrou. Não sei também se gritei, se disse alguma besteira. Nessas horas a gente costuma ficar fora de si e dizer até heresia. Só sei mesmo que apareceu o Titico meu irmão com sua pajeuzeira na mão, chega alumiava tudo. Conforme eu disse antes, estou aqui falando dele e dela. Não sou homem de mentira, não, Seu Doutor! Pois cheguei até a ver a bichona estendida no chão, vomitando sangue, um sangue da cor de pimentão maduro. O Titico, sem afobação nenhuma, como se a gente estivesse sangrando porco, apenas perguntava se eu precisava de ajuda. Isso se deu na horinha mesma do aperreio maior, quando eu ainda estava atirando. Eu me admiro é de ter dado pra eu atinar que dois sentidos não assam milho. Ele devia ter esperado pelo fim do serviço. Se eu me descuido, erro o tiro, estou frito. Ainda bem que minha pontaria nunca falhou. As três balas foram diretas na boca lá da carniceira. Sim, só dei três. Eu não ia esperdiçar bala com defunto! Isso eu ainda dizia pra mim mesmo, o Titico com a pajeuzeira na mão, olhando pra mim e pra bicha, um ali perto do outro, quando a danada estremeceu toda. Como se fosse se levantar e dar o pulo. Isso é só imaginação minha, pois, naquele escuro todo só acontecia o que eu imaginava. Na ocasião, compreendi muita coisa deste mundo velho – boi com boi é que faz junta. Eu já tinha jogado meu pau-furado no chão. Só me restava tomar a arma da mão do Titico e cair em cima da fera. E tome pinicada nos lombos. Pipinei, Doutor. Fiquei com pena foi do couro, tão pretinho, tão peludinho, todo esburacado e sujo de sangue. Não, eu nunca tinha visto, não. Mas já tinham me falado muito de onça. Ouvi uma infinidade de histórias. Meu finado avô, que Deus o tenha no céu!, meu pai, meu tio Vicenço, muita gente me contou histórias de onças. Assim, eu sempre tive, desde menino, a imagem de como devera de ser uma bicha dessas. No Baturité? Não, não deve existir mais nenhuma. Nem lá nem em canto nenhum, porque faz um tempão andam matando as coitadas. Eu não sou pessoa de leituras, mas no meu entendimento onça só deve ter mesmo agora é no Amazonas. Lá onde o diabo perdeu as esporas. Um matagal dos seiscentos mil diabos. Não tem homem no mundo que consiga atravessar aquilo. Como digamos, meu pai falava de um tio dele, o qual arribou pra lá e nunca mais voltou. Aquilo é um despotismo de mata, Seu Doutor, onde só há índio e fera. Aqui também já foi assim. Lá no Baturité mesmo o Senhor ainda pode ver como é a mata. Avalie noutras eras, antes de aparecerem roçados, queimadas, essa gente toda derrubando mata. Pois bem, isso tudo, que é o progresso, acabou com as oncinhas. Digo acabou, porque eu tenho palestrado muito com quem anda por este sertão afora e todos me falam de tudo, menos de onça. Então eu estou pra acreditar no seguinte: as derradeiras que existiram foram essas mortas por mim. Não, não foi só uma, não. Até agora eu só contei o comecinho da história. É uma historia grande de não acabar mais. Dava até um romance. Mas eu vou contar o resto. E bem depressinha, pra não aborrecer Vosmecê. Eu contava que caí em cima da bichona, a pajeuzeira do Titico meu irmão na mão, e acabei de matar a sem-vergonha, que se fingia de morta com os três tiros. Mais com pouco, acordou todo mundo, assustado com os tiros e aquela zoada. Com os tiros, sim, pois foi tudo na mesma hora – tiros, meu irmão aparecendo e me oferecendo ajuda, as pinicadas... Eu ainda furava a bicha quando apareceu o povo com as lamparinas em riba da cabeça, vindo do corredor, uma parte, e a outra só espiando pelas janelas, sem coragem de se chegar. Pareciam duas nações de gente – uma de gente despositada, outra de gente almoçada. Estes até nem não vinham com lamparina. Eram do meu proceder. Eu nunca precisei de alumiadura nem pra ir ao mato. Se tivesse lua, bem. Se não tivesse, também. Não sei quem eram, não. Talvez fossem meu pai, meu irmão Kiko, meu outro irmão Bira, ainda um frangote, meu primo Mandapolão, cabra que não vale uma masca de fumo, o Domingo irmão dele, e outros. Só não havia mulher, pois saia eu não vi, não. Minto, havia mulheres, as alumiadeiras. Então veio aquele povo espiar a imbuança besta, mas já chegou tarde. Não digo nem briga, que em briga os dois lados brigam e nesta só quem brigou foi eu. E tem mais – em briga eu sou de ficar raivoso feito peru e nesta eu nem cheguei a esquentar o gogó. Pois, como eu dizia, aquele povo chegou pra espiar a briga, porém só viu sossego e a pretona estendida no chão. E começou a falação. Como se tivesse gente em riba do telhado, debaixo do chão, dentro das paredes, na barrica da onça. O que foi isso?, quem fez isso?, Ave Maria!, vamos fechar as portas, a casa está cheia de bicho, porque vira, porque mexe. E eu na minha calma, só rindo, fumando e achando tudo bonito. Aquilo pra mim não passou de brincadeira de menina feme. Nem aqui nem no mato eu nunca fui de me espantar com besteira. Tanto faz pra mim um general como um soldado raso. Tanto faz uma bicicleta como um avião. Tudo pra mim não me faz medo. No mato tanto fazia uma surucucu como uma minhoca. Tanto fazia uma onça – onça não, essa tal fera eu nunca vi lá. Tanto fazia caipora pedindo fumo como volante pedindo notícia de Lampião. Não, eu até enjeito parada. Mas sou moço, tenho o couro grosso e, graças a Deus, nunca fui de ensebar as canelas com medo de grito. Voltando à história: o povo foi criando medo, era bom todo mundo entrar, trancar as portas, tomar cuidado, podia haver mais bicho por ali. Eu já disse: o quintal não era um quintal. Ao redor da casa havia mato, tudo sem muro e sem cerca, um descampado sem fim, um despotismo de mato, emendando com o sertão, a se perder de vista. Minha mãe, então, olhando no rumo da mata, disse: quem sabe tem mais onça metida aí nesse matagal, esperando a hora de invadir a casa. Pois, mal ela fechou a boca, lá se escutou um reboliço, assim como de onça pisando em graveto. Aí deu-se uma correria dos diabos. Era gente gritando e chorando, pedindo clemência a Deus Nosso Senhor, se valendo de tudo quanto é santo. Eu fiquei esperando a fera, caçoando deles, eu mais o Titico meu irmão. E mamãe gritando: entrem, meus filhos, deixem de valentia, valente morre mais cedo, vocês mataram uma mas as outras vão querer se vingar, deixem essas feras pra lá, venham dormir, deixem pra cuidar disso amanhã. E eu cá comigo – amanhã o carneiro perdeu a lã. Não se tratava de desobediência, não, mas a gente queria ver o fim da história. Pois enquanto ela falava as piedades dela, eu apurava o ouvido e arregalava os olhos pra ver se escutava algum esturro ou pisada macia de onça. E então apareceu mesmo outra: uma pintada e muito mais baita do que a defunta. Vinha vindo do mato, as duas tochas alumiando o caminho, a bocona aberta mostrando aquela dentadura branca e bonita. Eu até fui ficando encantado e querendo que ela chegasse mais e se abraçasse comigo. Fiquei rindo, de feliz. Doidice, seu Doutor! Se não fosse o Titico meu irmão me alertar, você não vai atirar logo, não?, eu hoje morava na terra dos pés juntos. Tomei um susto e, mesmo com pena, passei a atirar. Quando o primeiro tiro saiu, a tadinha foi se vergando, se vergando, até se prostrar feito uma vaca velha. Mas quem confia em fera? Meu irmão pulou em cima dela, a pajeuzeira na frente, e tome pinicada. Eu só via aquele fio de luz subindo e descendo. A onça já devia estar pra lá de morta. Eu disse: chega, mano, senão essa faca vai virar arame. Bendita ordem. Eu estava adivinhando. Pois se a pajeuzeira virasse arame, quem ia terminar de matar as onças que eu matasse? Dito e certo. Mal eu fechei a boca, lá apareceu outra. Vinha que nem um cão –cruz, credo! – no meu rumo. Vinha chega vinha bufando. Mas Vosmecê vai dar o não dito pelo ouvido. Eu não vou contar como se deu esta luta, não. Só me acredite o seguinte: ela se deu igualzinho às outras. Não vou contar não é por outra coisa, não, é porque assim não vai dar tempo. Eu sei, o Senhor está interessado na história, porém depois da segunda onça tudo aconteceu como numa correria. E eu não vou poder acompanhar essa correria. Escute só e me entenda: mal aparecia uma onça, a gente matava; aparecia outra, a gente matava. Se uma pulava do telhado, outra saltava o parapeito, outra se coçava na parede, outra esturrava, outra escancarava a boca. Finalmente, não restou mais nenhuma. Graças a Deus (aqui pra nós e pro padre que nos confessa), eu já estava pra desistir. Depois ficou tudo um silêncio danado. Dava até medo escutar. Eu no meu canto segurando o pau-furado pegando fogo, meu irmão no canto dele limpando a pajeuzeira nas pernas da calça e aquela ruma de onças no chão perdida no meio da sangueira. A gente, dê por visto, cansado e suado, doido pra tomar um calisto de delas frias e se espichar numa rede. Eu me sentei no chão e senti aquele rio quentinho escorrendo debaixo de mim. Era o sangue das coitadinhas. Fui me sentar no parapeito e me deu uma vontade espiritada de fumar. Qualquer quebra-queixo servia. Mas cadê cigarro! Aí o Titico disse: Não, pião gabado é que vira carrapeta, né? Me deu uma vontade de rir, Seu Doutor. E mais ainda quando meu irmão começou a gritar no rumo do mato: cadê as onças dessa terra! E eu me animei, esqueci a vontade de fumar, beber cachaça e dormir, e dei uns tiros pra cima. Imagine minha besteira, Doutor. Pra ver se acertava nalguma onça restante que andasse lá pelos ares. Quem já viu onça voar! Comecei também a gritar: apareça, cambada de carrapetas; aqui mora é macho, não é caçador mentiroso, não. E a gente ficou nessa besteira de atirar e gritar. Mais com pouca, lá longe no céu apareceu um clarãozinho de nada. Os galos começaram a acordar tudo com aquela zoada doida de bater asas e cantar um atrás do outro. Sabe, a gente ficou assim meio zuruó, olhando pro céu e pros galos, como se nem eu nem o Titico tivesse nascido na serra. Como se nenhum dos dois fosse acostumado a ver aquilo quase todo dia. O Senhor sabe como é o mundo quando os galos começam a cantar. Pois é, um sossego danado de bom, aquela cor parda... A gente olha, olha, parece que vê mas nada vê. A gente olhava pro mato e parecia ver onça. Tudo ilusão. Depois, a gente ficou só olhando e avistando umas coisas se mexendo, se mexendo, lá longe. O clarãozinho foi se clareando, uns bichos se mexiam e olhavam na direção da gente. Tem mais onça, Titico, prepare a pajeuzeira – eu disse bem baixinho. A gente agarrou as armas. E sabe o que a gente avistou? Não vá Vosmecê ficar impressionado ou duvidar de minha palavra. Eu não sou homem de andar com mentira. Sabe o que foi, seu Doutor? Não, onça não. Apenas um magote de cachorros. Sim, senhor. Olhei pro Titico, ele olhou pra mim e a gente caiu na risada. Eu joguei as armas de novo no chão, ele também jogou, e a gente virou as costas pro mato. E sabe mais? Sabe o que havia estendido no alpendre, chumbado, pinicado, coberto de sangue? Adivinhe, Doutor. Não sabe. Pois havia um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete cachorros.

Mas agora vem a dúvida maior – é se tudo isso aconteceu mesmo ou se foi apenas um pesadelo.
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segunda-feira, 10 de outubro de 2005

O jangadeiro (Nilto Maciel)



Para Edinardo, às vésperas do primeiro
ano de sua partida.

Arrodeio a superesfera
na minha jangada amiga,
rindo de quem me espera,
chorando à moda antiga.


De quantos paus ela é feita
só dizem os jangadeiros
velhos e companheiros,
fugidos da rota estreita.

Não rio por palhaçada

nem choro angustiado;
já me bastava a maçada
de ansiar o desejado.


Levo comigo a coroa
dos filhos da Eternidade,
relendo Fernando Pessoa
frente a toda realidade.


Passeio as nebulosas,
os astros, o espaço sem fim,
saudadoso das carinhosas
meninas do Otávio Bonfim.


De dois velhos meus criadores,
meu primeiro e doce abrigo,
de duas pequenas flores,
em quem pensando prossigo.


De uma soidade que amei
e que na Bahia deixei,
de sete meus germanos
deixados a fazer planos.


Dos pareceiros risonhos
do pobre Amadeu Furtado,
esses bebedores bisonhos
de fel, cachaça e melado.


Mergulho a atmosfera
montado em cavalo-de-pau,
zombando da besta-fera,
lembrando o primeiro mau.


Conduzo comigo um poema
jamais publicado em papel
para reler na suprema
corte do mais alto céu.


Vasculho os tempos perdidos
no carro dos deuses gregos,
tristonho de ver iludidos
os que ficaram aos pregos.


De recordar os pileques
que com meu mano bebi,
choroso de ver os moleques
famintos do que comi.


Cavalgo o cavalo das eras
na mais incrível carreira,
carregando uma flor de parreira
para o homem e para as feras.


Na minha ida desejei
deixar o que sempre sonhei:
projetos de muito amar
para a terra e para o mar.


O mundo que nos aguarda
não tem regulamentos nem leis,
é o país do povo sem guarda,
não tem um, nem dois, nem três,


tem milhões de seres iguais,
é a utopia dos pensadores,
o sonho dos ancestrais,
a terra só dos amores.


Comigo navegam poetas,
revolucionários e santos,
partimos no rumo das metas,
dos fins, começos e cantos.

(19.2.80)

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