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quinta-feira, 13 de outubro de 2005

As fantásticas narrações das meninas do São Francisco (Nilto Maciel)


No princípio era o Verbo...
O Evangelho Segundo João

Quase sempre estávamos sentadas nas ribanceiras, ou nas pedras lisas das redondezas, ou caminhando ao longo do rio, pisando aquelas areias ribeirinhas, ou passeando de barco, rio acima, rio abaixo, contando intermináveis histórias para nosso pai que nos ouvia atentamente e, às vezes, rindo, como se disséssemos as palavras mais engraçadas do mundo. Retirávamos nossas histórias do mais fundo de nossa memória de crianças nascidas na beira do rio e nos sentíamos como pequenos animais indomesticáveis, livres e puros. Ele nos ouvia, calado, muito pensativo, como se disséssemos grandes irrefutáveis verdades, como se fôssemos sábios antigos, a quem estivessem confiado todos os segredos da Terra. Para que não falássemos nós apenas, permitíamos que ele fizesse perguntas, que interrompesse nossas narrações, que fizesse reparos, quando nos deixássemos levar pela pura imaginação. Mesmo assim, ele permanecia calado ou sorridente, os olhos brilhando de muita alegria. Então, alguma de nós fazia perguntas, muito tolas, às vezes, para forçá-lo a falar, a perguntar, ao menos. Mas ele apenas sorria ou levava a sério o que estávamos fazendo, como se fôssemos criaturas superdotadas, incapazes de dizer tolices, como se não fôssemos apenas suas filhas mas criaturas de outro mundo, que tivessem vindo com a exclusiva missão de contar-lhe histórias.

À noite, na nossa cabana, iluminada pela lua e pelas estrelas, ele escrevia como um louco, sem parar, apressadamente, escrevia cadernos e mais cadernos, enquanto dormíamos, cansadas da tagarelice e dos passeios diurnos, incrivelmente felizes, como se tivéssemos praticado os melhores atos do viver, como se tivéssemos erigido pirâmides, repletas de alívio, como se tivéssemos jogado fora os grandes fardos que pesavam dentro de nossas cabeças. Muitas vezes, quando acordávamos, ele ainda estava a escrever, com sua mão esquerda, os olhos quase pregados no papel, sonolento.

Muitas das histórias que contávamos eram essencialmente horrorosas, cruéis, desumanas, e nos faziam sofrer muito e chorar demais. Sofríamos e chorávamos juntos, nós e ele. E nos compadecíamos uns dos outros, nós dele e ele de nós. E era pior, mil vezes pior do que a solidão. Ele então nos prometia brinquedos, para que não nos atormentássemos tanto. Jurava que desceria o São Francisco em busca de pérolas, de caracóis, de querubins, de totens e mil outras coisas que desconhecíamos. E saíamos juntos na nossa barca, descíamos o grande rio, dias e noites sobre as águas, na direção do mar que nunca víramos, esperançosas de encontrar na foz não o que ele nos havia prometido mas nossa mãe perdida ou levada por pescadores aventureiros, causa maior de todo o nosso tormento. Contávamos então histórias de sereias, de serpentes marinhas, de grutas no fundo do mar e, quando sentíamos saudades de nossa cabana, abandonávamos a barca e regressávamos, esquecidas do mar desconhecido, dos brinquedos prometidos e de nossa mãe perdida, caminhando às margens do rio. E corríamos, brincávamos e contávamos histórias de peregrinos e perdidos. Quando cansávamos, deitávamo-nos nas ribanceiras solitárias, sonhávamos com morcegos violadores de virgens, acordávamos, assustadas, gritando estranhas palavras, e passávamos a contar histórias tão alarmantes quanto nossos sonhos. Nosso pai se retorcia, abria e fechava os olhos, resmungava e voltava a roncar. E, quando regressávamos, fazíamos uma festa em cada lugar: na cabana, dentro do rio, debaixo das árvores, nas ribanceiras, no alto dos coqueiros. Fantasiávamo-nos de mil maneiras, imitando os pássaros, os peixes, as serpentes e os quadrúpedes.

Muitas vezes, sentados ou deitados debaixo das árvores, dormíamos e sonhávamos transformadas em figuras que jamais imaginávamos possíveis. Quando acordávamos, nosso pai estava escrevendo, como se dormisse, os olhos cerrados. Corríamos para perto dele, olhávamos para o papel e nada entendíamos. Ele se sobressaltava e começava a rir, a rir muito, como se não fosse mais possível deixar de fazê-lo. Nós o acompanhávamos no riso, até que pedíamos a ele que lesse, em voz alta, o que estava escrito. Assustávamo-nos, então, porque havia grande diferença entre o que contáramos e o que ele lia. Pensávamos que tínhamos perdido a memória e chorávamos, desesperadas. Ele ficava triste, chorava também e dizia que, na verdade, não disséramos aquilo mas que ouvira nossas vozes interiores, enquanto dormíamos. Íamos então tomar banho no rio, para nos tornarmos leves e delgadas, capazes de falar do mais fundo de nós mesmas. Brincávamos com as piranhas, sem medo nenhum, nadando e mergulhando, ele nos protegendo com seu olhar, sentado à beira do rio ou navegando em sua galera, como chamávamos, por brincadeira, cada nova canoa que ele fabricava.

Nessa época vivíamos uma grande crise de medo, que era horrível e nos deixava muito tristes, chorosas, magras, feias, pálidas e lerdas, medo que esquecíamos quando começávamos a contar histórias para nosso pai. Nos nossos céus voavam gigantescos morcegos, em grande algazarra, aos bandos, gritando assustadoramente e batendo as asas com estardalhaço. Sabíamos de sua sede insaciável de seiva, pois as árvores murchavam, secavam, como se um sol de fogo as queimasse, e os frutos apodreciam ou desapareciam, como se invisíveis pássaros sorvessem-lhes o suco, deixando-nos sem alimentos para as ceias da manhã, e as pessoas eram cruelmente raptadas e conduzidas para as alturas mais distantes, em vôos espetaculares, onde eram violentadas, exauridas e lançadas, abobalhadas ou sem vida, às beiras dos rios, que desapareciam, os menores, ou se reduziam a riachos, os maiores, como o nosso São Francisco, e os peixes, nossa alimentação predileta, eram devorados aos milhares.

Dizia nosso pai, em momentos de lucidez ou de maior crise, que os tais monstros vinham do norte, afugentados pela matança dos índios. Dizíamos nós, no entanto, que eles vinham de mais longe, das estrelas, pois só apareciam em noites de grande escuridão. Mas pensávamos que nada disso existia, que tudo não passava de fantasia de nosso pai, pois não nos recordávamos de que os tivéssemos visto alguma vez. Críamos até que tudo não passava de mais uma longa história por nós contada, pois costumávamos passar dias, semanas e meses contando uma só história, que absorvia todo o nosso tempo, que tomava conta de nossa vida, que se tornava nossa própria vida.

Um dia, ancorou diante de nossa cabana uma enorme galera e dela descarregaram umas malas antigas. Nosso pai conversou com os desconhecidos, que não pisaram a terra, durante algum tempo, e depois carregou as malas para dentro da cabana. Quando voltamos, a galera já estava perto do mar. Nosso pai nos chamou, abriu as malas e nos mostrou muitos livros, que disse serem as nossas histórias em inglês, francês, alemão, espanhol, russo e outras línguas desconhecidas. Folheamos, um a um, os grossos volumes, rimos das figuras, sem nada entendermos. Ele então começou a olhar para as páginas e a falar umas falas estranhas mas que logo entendemos. E tal era a pujança de sua voz, que os pássaros pousaram sobre nossas cabeças, silenciosos, e as águas do São Francisco pararam de correr. Foi então que vimos pela primeira vez um monstruoso morcego parado no ar. Não nos assustamos mais. Apenas olhamos para o céu e o vimos subir em direção ao sol, para nunca mais voltar.
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quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Mais seis romancistas (Nilto Maciel)


Em Mariela Morta, de Adelto Gonçalves, os personagens vivem num ambiente triste, sombrio e frio como o dos calabouços, repletos de velhice, solidão e loucura. É a vida de todos nós vista pelo ângulo mais horroroso. Atolados no passado, sem perspectiva nenhuma de futuro. Mesmo num conto aparentemente “político”, como “Atentados em Buenos Aires”, o que vem à tona é toda uma carga de solidão, abandono e loucura do personagem – espremido entre a insignificância de nunca ter sido preso (atestado de vida ativa de todo revolucionário) e a necessidade vital de afirmação. Todos os personagens do livro vivem num mundo de trevas – as incríveis e indescritíveis loucuras dos seres reais. Sim, porque somente os “destinados” à criação podem descrever as loucuras. Recriá-las. Porque a loucura de um Agamemnon Gentil é justamente a de seus criadores. A loucura de criar. De criar marielas mortas. Que é como criar adões de barro, dar-lhes vida e, depois, num supremo ato indecifrável e só descritível em livros perenes como a Bíblia, de uma costela sua realizar uma Eva.

Em suma: ao não aceitarem os ditames da sociedade de consumo ou ao não poderem desfrutar o prazer que esta sociedade oferece, as pessoas se marginalizam, se desesperam, se degradam e vão cair no lodo e depois numa vala comum, onde os vermes as vão destruir. Estão todos de corações despedaçados, horrivelmente infelizes, apesar da atordoante apregoação de que tudo vai bem. E vai, exceto para a grande maioria que, por isso ou por aquilo, não encontrou o delicioso caminho da felicidade. Uma felicidade frágil quase desmorona a cada minuto nas ruas e estradas, ensangüentadas pelos acidentes de trânsito. A utopia pregada pelos donos de tudo.

Uma história é uma história? Não importa a resposta ao se falar do insólito livro de Jarbas Valadares Rodrigues, intitulado O Estranho, porque ele mesmo não o qualifica de romance ou simplesmente história. Lembra-nos a Bíblia, repleta de contos, crônicas, escrituras. O Estranho não é um conjunto de contos ou crônicas. Talvez um conjunto de escrituras. E por que não de provérbios, tal como os ensinamentos de Salomão, mesmo porque o autor fez de um desses provérbios a dedicatória do livro? No entanto, os provérbios de Jarbas se vestem de roupagem avessa à dos provérbios do filho de Davi, para quem “os loucos desprezam a sabedoria e o ensino”, entendendo-se por sabedoria a razão institucionalizada. Ora, os loucos são sábios e ensinam mil vezes mais do que os são e os ludimagisteres, como o Homem das Latas desta estranha história, quando confessa: “me dizem que sou louco/ só porque vejo nos matizes do arrebol/ pequeninos fetos que dos vidros de formol/ me recitam versos dos quais sei bem pouco”. O Estranho é, pois, um livro de sabedoria e ensino.

O Rio da Noite Verde, de Eulício Farias, é o monólogo interior de um jovem também perdido, mas agora em si mesmo, porque vagando dentro de recordações, de medos, perseguido por fantasmas que o ameaçam de castração, fantasmas incestuosos, malignos. Perdido não no meio da selva, mas num ponto, num porto-seguro do deserto, do sertão – a casa de seus tios.

O Menino que veio do Mar, de Luiz Paiva de Castro, não pode deixar de ser tomado como um paliativo para as nossas dores adultas e também como um ensinamento. Este pequeno romance (são apenas 50 páginas) nada deixa a dever aos grandes romances, se se levar em consideração a simplicidade que o informa e o torna belo. Simplicidade formal, parágrafos curtos, linguagem acessível a todos os alfabetizados, presença dos tradicionais diálogos e a própria narrativa linear fazem da história de Luiz Paiva de Castro uma obra interessante e original. Tem animais como personagens, embora secundários. A serpente, cujo mito (bíblico) é redescoberto e recontado, aparece distanciada da simbologia do mal. No entanto, o personagem principal é o menino que nasceu numa concha, dentro de um barco, no mar, e que, já no país dos pássaros, no país do azul, veio a se chamar de Suikirana.

O menino – símbolo da beleza, da bondade, da infância, da humanidade em conluio com a natureza – desejou conhecer o mundo fora das águas. Em companhia da serpente, guiados pela lâmpada – a sabedoria – conheceram o mundo dos pássaros, dos bichos, os campos e as cidades, o andarilho e, numa viagem ao presente, às crises agudas da humanidade, conheceram o rei do petróleo.

Cordão de Prata, de Manoel Lobato, tem pouco mais de 40 páginas, em tipo grande. Entretanto, parece-me ter lido algo assim como Os Irmãos Karamazov, tão impressionado me deixou a leitura dessa pequena jóia literária.

O livro é a história de Pagulogo, misto de mendigo e louco, que não conseguia exprimir nada além de um “é”, quer para negar, quer para afirmar. Não roubava, não pedia, não comia quase. Alimentava-se de álcool. Aguardente, enquanto assim acharam por bem os donos dos bares. Depois apenas álcool misturado a água, presente diário de seu protetor, o farmacêutico.

Para contar a história de Pagulogo, o narrador necessita também contar um pouco da vida de Helena, a menina vadia que um dia vira afilhada de D. Cátia, a dona do restaurante junto à farmácia. Em conseqüência, D. Cátia tem também sua vez na narrativa, embora em menor grau. E, por último, aparece o sargento Ventura, o algoz de Pagulogo, aquele que lhe cegou um olho num dia de maior violência.

Cordão de Prata é dividido em 18 pequenos capítulos. O narrador é homem de conhecimentos livrescos mais ou menos variados, como latim e grego, além de farmacologia. Apesar disso, a linguagem é acessível até para o leitor estreante, quer pela sintaxe, quer pelo vocabulário. Isto não quer dizer que o leitor mais calejado não vá degustar o livro também. São cinco personagens, no máximo: o narrador inominado, Pagulogo, Helena, D. Cátia e o sargento Ventura. O narrador é um farmacêutico solteirão, em perpétua guerra interior: bate nas crianças abandonadas e depois resolve proteger uma delas, Helena, pensa em matar Pagulogo, e termina dando-lhe um banho.

Em 85 páginas de muita emoção, suspense, ação, Enchente Negra, de Jair Vitória, tem enredo simples: dois peixinhos apaixonados vêem seu amor correr perigo por obra de um dom-juan, enquanto suas próprias vidas e de todos os habitantes do rio onde nasceram e vivem são ameaçados por misterioso inimigo.

A grande virtude de Jair Vitória está, porém, em saber conduzir a narrativa num mesmo diapasão de suspense até o seu final, sem privilegiar nenhum dos temas. História de amor e tragédia. Amor de duas criaturas, tragédia para milhares de seres vivos.

Fosse apenas mais uma história de amor, mesmo entre peixes, e a narrativa não teria, talvez, a menor importância. Sobretudo porque o clássico triângulo amoroso, se não tratado sob novas formas, se apresentado com técnicas tradicionais de narrar, pode se assemelhar a novela de televisão.

Enchente Negra é uma denúncia oportuna à ação daqueles que envenenam a natureza, causando morte e destruição. Não há, todavia, qualquer frase incendiária em todo o livro. A linguagem, de tão serena, pode até parecer metafórica, porque até mesmo o narrador se restringe a falar de misteriosas nódoas negras, de um veneno que flutua nas águas, vinda da parte de cima de uma cachoeira.

Jair Vitória demonstra conhecer a fundo a vida no campo, os rios e seus habitantes. E é verdade, pois nasceu e viveu durante algum tempo numa fazenda do Triângulo Mineiro. Demonstra também estar consciente de problemas graves de nosso tempo, como a poluição. Por isso, Enchente Negra é livro para ser lido e discutido, sobretudo nas escolas, embora não devamos cair na asneirice de deixar de lado as obras clássicas e adotar apenas as obras de uma literatura nova, engajada, de denúncia. O divisor de águas não deve ser este, mas o da qualidade literária.
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