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sábado, 22 de outubro de 2005

Cavalos de Troia (Nilto Maciel)


No telhado do Caffe Portuguez pombos arrulhavam. Um casal se beliscava sobre um dos jacarés. O alto-falante cantarolava uma valsa. “Eu quisera, por vingança, ver teus olhos de criança na tristeza de outros olhos”. Súbito o locutor soqueou o microfone e, galhardamente, anunciou: “Atenção, atenção! Nossa cidade está sendo invadida por móveis metálicos...” E se engasgou, enquanto os pombinhos, assustados, debandavam.

Mulheres e criancinhas, apavoradas, olhos arregalados, debruçaram-se nas janelas. Meninos que jogavam bola-de-meia na rua, de um pulo se esconderam atrás das portas. Burros se aterraram e, com suas carroças e seus carroceiros, subiram as calçadas. No atropelo, uma galinha perdeu a vida.

Apesar de tudo, o cortejo seguia seu caminho, invadia a cidade, garboso, solene, sorridente, como cavalos de Tróia vitoriosos. No primeiro automóvel apenas um homem. Nos outros dois, rapazes de variadas feições, nunca dantes vistos por aquelas redondezas.

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Aos poucos, o estupor geral desapareceu. As carroças voltaram a ranger nas ruas tortas, conduzidas pelos mesmos velhos burros. A meninada tornou a correr atrás de suas bolas. O alto-falante irradiou novamente valsas de amor. Os pombos regressaram ao telhado do Caffe Portuguez, com seus arrulhos intermináveis. De novidade, só missas em latim e sermões gritados contra o progresso e a máquina.

Os cafés, porém, se encheram naqueles dias. Os homens beberam e jogaram mais, e não pararam de falar na riqueza e no luxo do filho de Daniel Montefusco. Nem os novos filmes de Buffalo Bill despertavam interesse. Os peles-vermelhas morressem sós. O operador fosse matar as pulgas do Cine Brazil.

Nas calçadas, à noite, enquanto a lua brincava de esconde-esconde com nuvens e estrelas, entoada a Ave-Maria, transmitida a Voz do Brasil, as mulheres contavam histórias sem fim de minas e minas de ouro, fortins holandeses recém-descobertos, fotografias escandalosas, onde aparecia, entre o mar e a terra, um rapaz muito galante, cercado de mulheres extraordinariamente exóticas e impuras. Há muito a filha do boticário se perdera no Beco da Onça com o respeitável Josué Montezuma, armazenista de secos e molhados, devoto de Santa Luzia, que o livrara da cegueira quando menino, casado com a digníssima Nazaré da Conceição, cuja mocidade se fora nos braços do hoje invejável Daniel Montefusco...
A lua brincava de esconde-esconde com nuvens e estrelas...

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No decorrer dos dias e das noites, a cidade se encheu de outras novidades. Uma bodega cerrou suas portas, após seu dono se enforcar. Um homem espetou sua esposa. Algumas mocinhas tornaram-se definitivamente tristes. Um rapaz muito galante fugiu, deixando diante da casa de Daniel Montefusco dois cadilacs, onde meninos brincam de esconde-esconde.
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Nagib Jorge Neto: Cordeiros e lobos (Nilto Maciel)



Inicia Ivan Cavalcante Proença o ensaio “O Verão (e não a seca) Voltará” assim: “As Três Princesas Perderam o Encanto na Boca da Noite", estória-título, é cordel, variante em prosa, lembrando conto. Mas cordel. Em todas as suas constantes e na estrutura que o sustenta”. Referia-se ao segundo livro de Nagib Jorge Neto. O terceiro, de título mais fabuloso que cordelesco, é O Cordeiro Zomba do Lobo. Apenas o título, porque a maioria dos contos é mais cordel do que fábula, apesar de existirem semelhanças entre certo tipo de literatura popular nordestina e o fabulário em geral. Como a maioria dos escritores, certamente Nagib quis dar ao livro um título pomposo, desses de chamar a atenção do leitor, não se preocupando tanto com a identidade do título com a narrativa.

Já Ariano Suassuna havia encontrado no maravilhoso conto “O Sinal Misterioso”, do primeiro livro, “uma espécie de ‘folheto às avessas’’’. Quase todos os contos trazem a marca da poesia popular nordestina. Assim, “A Fumaça dos Combates” lembra folhetos de bravura, enquanto "Um Anjo Desnuda Margarida” e “Adeus, Rosa, Até Um Dia” têm raízes nos folhetos de safadeza. “Os Elefantes Cor-de-Rosa” e “A Queima dos Lenços Vermelhos” têm muito dos folhetos de política ou de época.

Outros contos, porém, fogem tanto da fábula como do cordel, aproximando-se do realismo-mágico hispano-americano. Vejam-se “A Segunda Morte do Padrasto”, “Uma Certa Mancha de Sangue” e “Rita Vai, Rita Vem”.

Nessa mistura de estilos, Nagib Jorge Neto acaba alcançando o espaço da lenda, da história de trancoso e do conto popular, em que aparecem, como personagens, reis, princesas, súditos, arqueiros, escudeiros. E vai beirar o armorial de Suassuna e o folclórico, o mágico e o maravilhoso de Hermilo Borba Filho, como no conto “O Exílio do Rei”, sem, no entanto, deixar de ser cordelesco.

Embora o erótico seja um elemento de larga presença na obra de Nagib, alcançando a plenitude em “A Violação Inútil”, incluído no segundo livro e indispensável numa antologia do conto erótico, a bravura, uma constante na literatura de cordel, é quase que o elemento preponderante. Nada, ainda assim, de cangaceiros e valentões do sertão. São lobos e cordeiros em luta, guerreiros, revolucionários, patriarcas, cavaleiros e outros tipos do romanceiro popular do Nordeste.

Com O Cordeiro Zomba do Lobo, Nagib Jorge Neto assegura seu lugar entre os poucos contistas brasileiros voltados para a feitura de uma literatura perene, longe das repetições e dos modismos.

O Presidente de Esporas é anterior à “prosa ritmada” e ao “mundo maravilhoso” de As Três Princesas Perderam o Encanto na Boca da Noite. Os contos (Nagib denomina sempre de contos as suas histórias) “As três princesas perderam o encanto na boca da noite” e “O erro de Deus e as pragas do Diabo” têm idêntica construção à de “O sinal misterioso”, embora o segundo verse problemática mais epopéica.

A literatura de Nagib tem raízes em Homero, na Bíblia, no trovadorismo, no romance de cavalaria. “A espada do anjo Gabriel” faz lembrar aquele povo bíblico, ainda sem “Deus”, às vésperas de Cristo ou, antes, de Moisés, que imporia suas leis misteriosas e jamais imaginadas pelo homem saído das cavernas.
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