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quarta-feira, 26 de outubro de 2005

Adrino Aragão: o suor da escrita (Nilto Maciel)

Em 1972 estreou, com Roteiro dos Vivos, o contista Adrino Aragão, no Amazonas. Quatro anos depois deu a lume Inquietações de um Feto, contos de linhagem tradicional. Em 1985 apresentou As Três Faces da Esfinge, mais próximo do primeiro, embora no segundo haja narrativas que não devem ser necessariamente configuradas como contos. Seriam parábolas.

Apesar de os textos de As Três Faces da Esfinge poderem ser chamados de contos, ainda assim Adrino se serviu de técnicas mais modernas para a sua elaboração, como em “Ceia”. Em contrapartida, aqui e ali o contista escorrega e se deixa burlar pelo cronista adormecido e pelo novelista ou romancista abortado. (A expressão "romance abortado” foi usada, em 1894, por Araripe Júnior, ao se referir a livros de contos publicados então no Brasil). É o caso da boa narrativa “Hoje não tem Espetáculo”, na qual despontam alguns trechos de crônica. Ora, como diz Assis Brasil, “a crônica continua a ser um relato, bastante pessoal, e como relato nomeia e descreve acontecimentos, e cria enredos, sem a preocupação de criar uma nova realidade”.

“A Noite na Sala de Jantar” tem outra configuração: não é conto e não é crônica. Talvez seja capítulo de novela. Assim também “Menção Honrosa”, muito mais para anedota trágica do que para conto.

Os temas explorados por Adrino em As Três Faces da Esfinge se circunscrevem quase sempre ao cotidiano, sobretudo de personagens miúdos, da vasta fauna dos desgraçados, como se vê em “Os Pormenores” e “O Sistema”. No primeiro, alguns deslizes, como quando intromete no discurso do narrador figuras eruditas, tornando-o, dessa maneira, falso.

O apego de Adrino a temas mais comuns na prosa de ficção é responsável por outros equívocos. Assim, “Hoje não tem Espetáculo” parecerá, ao leitor mais experiente, alguma história há muito contada e recontada. Também o tema de “A Noite na Sala de Jantar” tem sido muito explorado: o fascínio doentio exercido pela televisão. Da mesma forma o tema de “Iniciação de Olga”, apesar de configurar um bom conto. A literatura está repleta de histórias de prostitutas, desde clássicos como Bubu de Montparnasse até o caboclo Doutora Isa, de Juarez Barroso. A função precípua do ficcionista não é criar enredos novos, porém é preciso sempre estar atento a esse aspecto.

Adrino Aragão se dedica também a temas grandiosos, tratados por escritores do porte de Thomas Mann, como o da angústia do artista frente à vida e à arte. Como os temas da loucura e da velhice, este magistralmente tratado em “As Tias”.

Feitas essas restrições, de leitor exigente e casmurro, uma última palavra – Adrino Aragão é dos poucos que saíram íntegros do turbulento carnaval literário iniciado nos anos 1970. A grande maioria dos foliões daquele período dançou, escorregou e foi ao chão. Ou se despedaçou, apesar de ter publicado livros e mais livros, aparecido em jornais e revistas e até posado de galã na televisão. Tudo em vão. Adrino continuou suando, não como folião, mas como laborador de contos. Sem confete e sem serpentinas.
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Romos (Nilto Maciel)



Os teus príncipes são como os gafanhotos, e os teus chefes como os gafanhotos grandes, que se acampam nas sebes nos dias de frio; em subindo o sol voam embora e não se conhece o lugar onde estão. Os teus pastores dormem, ó rei da Assíria; os teus nobres dormitam; o teu povo se derrama pelos montes, e não há quem o ajunte.
Naum, 17.18.

Chamou-nos de lá, do alto ou do fundo da terra, um Messias novo, uma voz interior apocalíptica, a necessidade de salvação urgente ou seja lá o que for. Abrimos os olhos, avistamos a névoa misturando-se às nuvens, o verde empalidecendo, e corremos irmanados pela estrada que leva aos píncaros da serra, lá onde os jesuítas ergueram um castelo no meio de seu feudo.

Já pisamos meio caminho de subida. Ainda avistamos a via-sacra, que não mais tocamos com os pés, para não nos comprometermos com as obras dos que fabricaram nossa desgraça. As borboletas ainda poisam sobre nossas cabeças, enchendo-as de fantasia. Recordamos as mãos invisíveis que nas noites intermináveis suspendiam nossas redes até às telhas. Embora nos firamos nas urtigas traiçoeiras, estamos catando flores silvestres, para não nos esquecermos destas cores, quando penetrarmos as grutas sem luz. Já chupamos todas as mangas que o tempo derrubou no meio do caminho e debaixo das mangueiras dos sítios que ladeiam a estrada. Já nos lavamos dez vezes nas águas apressadas e frias das levadas. Descemos, os mais afoitos, ao Poço da Moça, para nos banharmos de coragem, e pulamos as altas e gigantescas pedras por onde as águas do rio deslizam e onde as lavadeiras passam seus dias. Penetramos as hortas e devoramos as verduras que os moradores cultivam para a ceia dos padres. Como se para assistir à destruição das cidades da campina, voltamo-nos de defronte ao castelo para uma última visão da nossa, sem medo de nos convertermos em estátuas de sal. Tudo pequeno e distante. Uma nódoa esbranquiçada no meio do verde do vale. Decididos e medrosos do passado e do embaixo, vasculhamos os três pavimentos do velho seminário e escutamos as vozes perdidas dos meninos que lá brincaram, rezaram e estudaram. Na saída, batemos a cachorra, para assustar os fantasmas que habitam a tristeza das noites. Corremos, suados e sedentos, para a bica da barragem e nos lavamos um a um. Subimos a parede e nos ensopamos de sujeira. Pelas enormes fendas as águas escorriam, ameaçando estourar a sólida parede. Por precaução, voltamos à estrada e tomamos o rumo de Caridade. Não mais uma estrada, apenas uma vereda. Cansamos mais e parávamos de instante a instante. Entretínhamo-nos a ver as grandes formigas pretas, chupávamos os coquinhos das babaçus descomunais que nascem no fundo dos abismos e vêm mostrar suas folhas no alto onde a vereda se fez, e escutávamos os cantos dos pássaros, para esquecermos os ferimentos que as pedras faziam em nossos pés. Mil vezes cansamos, mil vezes descansamos. Quando lá chegamos, mal tivemos curiosidade de escancarar as portas e janelas do casarão. Acampamos nos treze degraus e na calçada em sombra, voltados para o vale já muito distante e já muito embaixo. No quintal, porcos comiam jaca, galinhas beliscavam o chão, laranjas e tangerinas apodreciam nas árvores. Mais adiante, engenhos de cana tomados de mato. Um abandono completo. Estávamos novamente suados e sedentos. Sabíamos que havia uma bica mais no alto. Subimos por outra vereda. Encontramos uma casinha de taipa, a casa do antigo morador, desabitada e prestes a cair. No chão, uma baladeira. Voando e cantando, pássaros variados. Bebemos água límpida que escorria de um cano. A bica estava cercada. Nada mais havia a ver sobre o chão. Restava buscar as grutas. Regressamos para tomarmos a vereda perigosa que leva à Gruta dos Morcegos. Outro abismo nos esperava. Seguimos, prudentes. Tropeçamos em árvores caídas, em galhos ressequidos, em folhas de palmeiras. Chegamos à gruta e tratamos de escalá-la. A areia era negra e fina como pó de carvão. Sujos, arrastamo-nos sobre a grande pedra e partimos em busca da caverna. Espantamos os morcegos e as cordas que pendiam dos tetos de monólito e descemos pela profunda grota que leva ao interior da terra.

Nós já fomos pacatos, trabalhadores e puros. Construímos esta cidade em mais de cem anos. Alimentamos meio sertão de frutas e legumes. Exportamos café para os brancos do Sul e gênios a quem nunca erigiram uma estátua. Outrora aqui os primeiros homens da terra viviam no Éden. Depois vieram os portugueses e os jesuítas e começou nossa ruína. Odiamo-nos, matamo-nos, roubamo-nos, caluniamo-nos, atraiçoamo-nos, tornamo-nos Madalenas, traímos nossos esposos e nossas esposas. Nossos comerciantes faliram nos bares, cassinos e cabarés. As moças foram desvirginadas e os moços se entregaram à vadiagem. De adoradores da Natureza, passamos a adoradores de estátuas. E, não suportando mais nossa traição, assaltamos os altares e profanamos os templos, mesmo antes da fuga dos padres, que abandonaram os conventos, os seminários e as igrejas. Esquecemos o latim, a missa, as orações e a Bíblia. E, inexplicavelmente, pisoteamos os jardins, desfolhamos os benjamins, desmatamos a serra, sujamos de sabão e sangue as geladas e límpidas águas de nossos rios, agora divididos por cercas de pau e arame aqui e acolá, margeados por cruzes e monumentos aos que roubaram os pobres, queimamos os cafezais e nos alimentamos hoje unicamente de banana e manga, que mal alimentam os poucos pássaros que não fugiram para o sertão. Derrubamos os velhos casarões ou deles fizemos bares e albergues de mulheres longínquas para nossos homens corrompidos. Erigimos por todas as cercanias casebres de taipa, fazendo de nossa cidade uma Canudos pequena. E, num passado recente, adoramos os ditadores europeus e nos destroçamos em defesa de ideais diabólicos, esquecidos de nosso verde e de nossos cento e tanto anos. Hoje morremos raquíticos aos trinta anos, quando não nos assassinamos aos vinte ou somos levados pelas águas ardentes aos quinze, frágeis que já somos, degenerados que já estamos.

Por tudo isto, estamos fugindo, por tudo isto, temos que fugir, abandonar esta Sodoma serrana, esta Jerusalém de taipa, e nos refugiar nas grutas mais escuras e mais profundas desta serra farta.

Estamos descendo este rio, sem rumos, sem ramos, sem remos, mas rimos, rimos, rimos
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