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segunda-feira, 31 de outubro de 2005

Paulo Véras, contista do interior nordestino (Nilto Maciel)


Em O Cabeça-de-Cuia, Paulo Véras enveredou também pela análise psicológica das personagens. Seus contos são quase todos tecidos a partir do fio da memória, razão por que os personagens situam-se entre a infância e a adolescência.

Como está nos manuais, o conto é uma peça literária curta, de poucos personagens, de um só núcleo fático. É o caso dos contos de O Cabeça-de-Cuia, de Paulo Véras. Todos curtos, quase sintéticos, quase à maneira de Dalton Trevisan. Períodos incisivos, sem rodeios, sem malabarismos de linguagem. Espécie de roteiro para elaboração de narrativas mais extensas. Ao lado disso, um linguajar bem nordestino, tal como em Graciliano Ramos ou Juarez Barroso, sem o folclorismo da literatura regionalista, apesar dos “num” em vez de “não”, dos “tá” em vez de “está”. O povo rude fala assim. Mas também não diz, por exemplo: “duas bilas de vidro”. Diz: “duas bila de vrido”. Isto, que Graciliano não fazia, não pode desmerecer a literatura de Paulo Véras. Não chega a ser um grande pecado.

Os vinte e seis contos de O Cabeça-de-Cuia carregam esta mesma maneira de escrever, apesar de não haver homogeneidade temática. Uns são mais voltados para o interior das personagens, outros para o binômio homem-ambiente. E são estes últimos, quase todos circunscritos ao espaço rural, os que apresentam melhor feição. Gravitam em torno de personagens situados entre a infância e a adolescência. Neles o contista melhor se revela. Certamente Paulo é dono de prodigiosa memória, pois, movimentando personagens antigos e complexos, como as crianças no mundo rural, pinta quadros tão coloridos que é de se imaginar ter ele escrito os contos quando ainda criança. Não menos coloridas e vivas são as personagens.

Porém um senão deve ser registrado – o conto “O Equívoco”, de tão comum, tão falto de criatividade, deveria ter sido excluído do livro. Apesar disso, Paulo Véras se situa ao lado dos bons narradores das pequeninas criaturas do interior nordestino.

Não fosse o conto “O Equívoco” (título excelente para um trocadilho), O Cabeça-de-Cuia poderia ser incluído no rol dos bons livros de contos surgidos no período histórico aqui estudado. E é justamente o único em que o contista tenta mostrar-se engajado. É o caso de se dizer: quem nasceu para Cornélio Penna nunca chega a Lima Barreto.
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A odisseia de Carlos Mago (Nilto Maciel)



Havia um homem. Depois se fez capitão, cavalariano. Chamavam-no, quase sempre, Carlos Mago. O que o irritava profundamente. Talvez por entender magro, magricela, esquelético.

Ora, havia outros Carlos na cidade. Dezenas e dezenas. De importância, no entanto, somente dois. Ele, Carlos Mago, e Carlos Gordo. Ambos galistas, pais-de-família respeitáveis, cidadãos de bem, etc. Diferençava-os, apenas, o espaço que ocupavam no Universo. Um, magro como um pau de vassoura; outro, gordo como um porco. A razão de serem assim parecia de fácil entendimento. O primeiro, eterno perdedor de apostas fraudulentas presididas por outro Carlos, deixava de se alimentar para cuidar de seus doze galos. Tratamento à base de aveia, girassol, lingofex intramuscular, pantetonato de cálcio, nicotinamida, vitamina K, ferro, fósforo e iodo.

(Corrija-se informação anterior: eram três e não dois os Carlos importantes da cidade. E o terceiro, com certeza, encabeçava a lista. Primeiro por ser chefe político, cacique, raposa velha. E também por ser dono do único rinhadeiro da região.)

Carlos Gordo, o sempre ganhador das apostas, amigo, parente e correligionário do terceiro Carlos, seria gordo por isso mesmo.

A explicação do Mago de Carlos parece plausível. Além do mais, mago, no linguajar nordestino, é corruptela de magro. De outra forma, mago seria o Gordo.

Havia também um animal. O quadrúpede, o condutor do capitão, o cavalo, “um alazão famoso, bralhador e galopante, tão enorme quanto um cavalo de imperador, rei ou guerreiro”. Chamavam-no Carlos Galo.

(Corrija-se informação anterior: eram quatro e não três os Carlos importantes da cidade. E o quarto, com certeza, encabeçava a lista, como encabeça esta história.)

Montado em Carlos Galo, o cavaleiro desaparecia no meio das crinas esvoaçantes. Mais parecia um simples e mínimo adorno humano. Na estrada, somente se via o cavalo. Os mendigos cegos, no entanto, enxergavam um cavalo e seu cavaleiro. Os demais habitadores daquelas bandas só viam um cavalo fantasma, a atravessar nu os caminhos e as veredas, relinchando e bralhando. Às vezes cantando como um galo na madrugada. Não se sabe, daí, quem o apelidou de Galo, se o dono, se o povo.

Não, um cavalo não podia cantar – negavam os mais incrédulos. O canto fluía da garganta de Carlos Mago. Toadas de entristecer as pedras, a caminho ou descaminho das rinhas. Perdedor sempre, nunca chorava – cantava. Cantigas chorosas.

A lenda falava ainda de um fenômeno horroroso: a simbiose dos dois seres, enquanto cavaleiro e cavalo. Não seriam dois, mas um só bicho nos ermos: metade homem, metade cavalo. Sempre a cantar. Galo quadrúpede.

Estudiosos do romance de cavalaria vêem em Carlos Magno a origem do nome do cavalo de Carlos Mago. Brazilianists vislumbram Charles de Gaulle. Humoristas brasileiros, porém, vêem apenas uma estreita relação entre o homem Carlos Mago e o cavalo Carlos Galo. Um seria Ma(g)no; outro, galo, gaulês. Ambos Carlos. No fundo, seriam um só ente: cavalo-cavaleiro.

Havia ainda doze galos. Todos semelhantes entre si em idade, tamanho, peso, penas, armadura e nome. Todos Carlos.

(Corrija-se informação anterior: eram dezesseis e não apenas quatro os Carlos importantes da cidade.)

Iam, um dia, em marcha, quatorze Carlos. Na seguinte ordem: o cavalo, sadio, cascos de ferro, esporões, chifres artificiais de touro e dentes afiados à lima. Montado neste, o homem, tísico, tossindo permanentemente, cantando, peixeira à cintura, pau de vassoura à mão direita, esporas, pracatas de rabicho, banguela e dois chifres invisíveis sob o chapéu de couro à Lampião. Logo atrás, os galos, em fila indiana, esporões naturais e de metal, bicos também naturais e de prata, cristas eriçadas, pescoços de girafa, rijos como cabos de aço, asas espalhadas como de aviões, coxas musculosas como de atletas humanos. Os doze carregavam consigo a glória e a fama de terem fendido o ventre de outros doze galos. Assim mesmo, Carlos Mago perdeu todas as apostas. Havia apostado nos adversários.

A marcha cavaleirosa capitaneada pelo galista Carlos Mago se denominou Coluna Carlos. Partiu do Sítio Dom Chicote, Município de Baturité, quando ficou proibida a realização de rinhas em todo o país.

Alguns anos atrás, Carlos Mago vivia de fabricar vassouras de palha para a prefeitura da cidade. E durante certo tempo percorreu estradas, lugarejos, vilas e ruas, em luta contínua contra a sujeira. Vassoura à mão, comandava um exército de garis. Enxotava os bichos que, soltos, sujavam as ruas e atormentavam as vistas castas de damas e donzelas.

E se fez janista noite e dia. Finda a campanha eleitoral, Carlos largou para sempre a vassoura. E abandonou uma profissão de quase meio século, para se dedicar a galos de briga. Em compensação, livrou-se de um estoque de três mil vassouras e um jumento de estimação. Em troca, recebeu um cavalo velho e doze pintos órfãos.

A Coluna Carlos atravessou a principal rua da cidade numa tarde quente. A molecada vaiou. Os bêbados, no entanto, gritaram e saudaram a marcha. Logo, moleques e bêbados, unidos, davam vivas ao troço. Incentivada pelas manifestações públicas, a comitiva seguiu, airosa, sua marcha guerreira.

A caminho da capital, a Coluna foi interceptada e interpelada por um grupo de pessoas. Fizeram perguntas de toda ordem. Apontaram máquinas para os galos, o cavalo e Carlos Mago. Aborrecido, este gracejou: ia às Índias, à China, à Pérsia, à Indonésia e à Grécia, levar a formosura e a valentia dos galos do Ceará.

À noite, já em plena capital, Carlos Mago se viu nos vídeos da televisão. O locutor falava de retirantes nordestinos em demanda do Oriente, fugidos da seca.
Alta noite, os retirantes tomaram o rumo da estrada que levava ao Planalto Central. A Coluna Carlos ia derrubar o inimigo das rinhas.
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