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segunda-feira, 7 de novembro de 2005

Enéas Athanázio: Histórias Catarinenses (Nilto Maciel)


Estreou Enéas Athanázio em 1973 e, nos anos seguintes, publicou inúmeras obras, quer como contista, quer como ensaísta. Citemos alguns de seus livros. Meu Amigo Hélio Bruma são páginas soberbas de homenagem a Monteiro Lobato. Tapete Verde traz dez peças, todas elas escritas nos moldes da narrativa tradicional, linearmente. Todavia isto não significa repetição, anacronismo, aversão ao novo.

Embora Athanázio elabore as suas narrativas com o propósito de retratar usos e costumes da gente simples do interior catarinense, até com o emprego de uma sintaxe própria de sua região, sua linguagem não deixa de ter um sabor clássico. Com maestria, consegue escrever como os bons cultores de nossa língua, utilizando palavras e expressões do linguajar do interior sulista. Como bem percebeu Luz e Silva, em excelente estudo sobre os contos de Meu Chão, Enéas Athanázio “dosa, de modo conveniente, uma prosa clássica com a inclusão adequada de expressões de uso regional”.

Nota-se, ainda, que o autor não se repete, embora seu universo ficcional seja miúdo – a gente e o espaço de determinada região. No máximo, repete personagens, como o Dr. Janary Messias, advogado solteirão e boêmio, sempre às voltas com seu passado.

Merecem destaque em Tapete Verde os três contos que narram os reencontros ou desencontros amorosos de Messias. Talvez fosse preferível falar de três textos ou partes de um único conto. A técnica nele usada pode não ser nova, mas não deixa de ser apropriada à narrativa. É um dos melhores momentos da coletânea.

A última história do volume, a que dá título ao livro, é uma espécie de biografia de Janary. Sua trajetória de estudante de Direito pobre a prefeito da cidade que adotou como sua. Talvez a estrutura da narrativa seja de novela, até porque vai além de vinte páginas, ou seja, mais de um terço do livro. Quem sabe, um esboço de novela.

Há também em Tapete Verde simples instantâneos, quase crônicas, como “Os matungos de Mané Fortuna”, “Visita Oficial” e “Viagem Inesperada”. Há também autênticos “causos” pitorescos, anedotas, como “Tamanho não é documento”. Todas as narrativas são, porém, belos textos e mimosas histórias, que agradarão a gregos e troianos.

Não resta dúvida, Enéas Athanázio conhece, como poucos, o ofício de escrever e narrar, e tem plena consciência de que literatura não se faz às custas de autoglorificação nem de bajulação.

Nos contos de O Cavalo Inveja e a Mula Manca, de Enéas Athanázio, o espaço da ação é quase sempre amplo, aberto: o campo, o coxilhão, a invernada, a estrada, a rua da vila. Raramente a ação se dá em espaços fechados. Um dos motivos freqüentes na obra de Enéas é a vida em volta da estação ferroviária. “A Estação”, em que narra a história de Seu Baby, é também um pouco a história das ferrovias brasileiras, do apogeu à decadência. Esse mesmo Baby reaparece em “O Natal de seu Berilo”. Às vezes o espaço do drama é um balcão de bar, como em “O Banco do Meu Compadre”. Aliás, em muitas histórias o protagonista não tem nome, como neste. É apenas “meu compadre”. No entanto, personagens menores têm nome, como os donos de bares Arno, Tatu, João-Sem-Braço. Muitos deles têm apenas apelido: “uma certa Xaxim, mulher de vida airada”.

Os personagens se locomovem no campo, nas fazendas, nas estradas. Em “Um gritedo na coxilha” é narrado um passeio da coronela e suas filhas: “de campo a fora, num desfile estranho, com a coronela encabeçando, acavalada no pitiço meio cambaio, seguida pela negra velha e as meninotas, enfrentando a quentura e a distância”, até se depararem com “as cabeçorras ameaçadoras” das vacas. Os personagens de Athanázio vagam pelas ruelas poeirentas da Vila do Calmoso; freqüentam os botecos de São Simão, “cidadezinha perdida nos campos”. Nos bares, “em cujas mesas jogavam cartas ou dominó”, quase não falam. Não há muito a dizer. E passam pelas ruelas, sob “as luzes baças dos postes”. Habitam a Vila (simplesmente “a Vila”): “aninhada num grande vale, a Vila vivia em permanente modorra” (p. 65). Visitam o armazém, os bares, a igrejinha, a delegacia, a estação ferroviária. Vivem vidinhas sem eira nem beira, sem horizontes, estagnadas, modorrentas.

Nos contos de O Cavalo Inveja e a Mula Manca, bem como em outras obras de Athanázio, ao lado do tradicional narrador-onisciente encontramos com freqüência o protagonista-narrador e o narrador-testemunha. O narrador-protagonista é um tanto obscuro, sem nome, contudo desenhado ao longo da vasta obra ficcional do escritor catarinense: ora advogado, ora promotor de Justiça, nascido na Vila ou em São Simão, viajante contumaz, sem mulher e filhos. Não fala muito de si mesmo. Em “O Banco do Meu Compadre” ele aparece a partir do título e logo no início da história: “Desde cedo meu compadre revelou vocação para os bares”.Não deixa de ser um narrador-onisciente, eis que acompanha todos os passos do “meu compadre”. Em “Meu Tio” ocorre o mesmo: o narrador conta detalhes da vida de seu tio deputado federal. Neste conto, contudo, o narrador tem nome – Dr. Enéas – e participa intensamente da trama. Pode, então, o leitor ver na narrativa uma crônica. Em “Calças Esfiapadas” o narrador é protagonista: advogado, candidato a vereador em São Simão. Em “A Tapera” é secundário. Em “O Campo do Silêncio” não conta uma história: lembra o passado de sua vila e constata a decadência. Em “Silêncio” o narrador se revela um pouco mais: “Depois de muitos anos na Capital, eu me vi em São Simão para iniciar nova fase da vida e a profissão abraçada. Fui morar no velho casarão que pertencera aos meus avós” (...). Em “Sonho de Liberdade” o narrador é ainda e apenas um advogado, sem nome, perdido no interior. Em “Estação de Cura” trata-se de um jovem incumbido da “nobre missão” de acompanhar o avô a uma estância hidromineral. Em “Retrato na Parede” o narrador se refere ao tempo em que fora Secretário Adjunto da Justiça e conta uma história desse tempo. Em “Como Casei com a Filha do Coronel” o próprio título denuncia o tipo de narrador. E mais uma vez sem nome, ao contrário dos demais personagens, como o cachorro Tigre e o automóvel Gentileza.

O tradicional narrador-onisciente está presente em “O Batizado”, “Negócio de Ocasião”, “O Atentado”, “Apelido”, “O Passamento do Arigó”, “Voz de Prisão”, “A Ameaça”, “A Estação”, “Um Gritedo na Coxilha”, “O Cavalo Inveja e a Mula Manca”, “Onde Está o João da Banha?”, “A Festa do Taquaral” e “O Natal de seu Berilo”. São contos anedóticos, de personagens planas, típicas do interior brasileiro ou catarinense, roceiros, gente simples, rústica, sem estudo, enraizada na terra.

Enéas Athanázio domina, como poucos, as mais variadas técnicas de linguagem. Não se encontra em seus contos o excesso. Consciente de que vem elaborando uma literatura regional, não se deixa conduzir pela tentação de descrever o campo, a flora, a fauna. Aliás, não há muitas referências a plantas e animais. Quando absolutamente imprescindível à história, aparecem bois, mulas, cavalos, cachorros. Nada de mais ou de menos. Os personagens também não são descritos. A não ser quando a personagem não pode deixar de ser pintada, como em “A Ameaça”. Marta é a mulher feia, gorda, disforme: “pegou a engordar de um jeito desconforme”, “as banhas se acumulando nas partes inferiores”, “as pernas se arredondando sem parar, como toras de corte”. Mesmo assim o leitor tem a sensação de que está vendo os personagens.

Enéas se vale mais da narração e do diálogo. No entanto, a inserção de diálogos não é excessiva, exaustiva. São diálogos mínimos, necessários. Os personagens não se perdem nas falas. São concisos; falam apenas o suficiente para que a narração prossiga. O contista evita o uso de vocábulos de uso regional na boca dos personagens, embora no decorrer das narrações sejam encontrados termos de uso mais freqüente nos campos catarinenses.

O autor de Peão Negro se pauta sempre pelas mesmas linhas, se serve dos mesmos ingredientes, buscando ocasionar no leitor a impressão de que conta histórias singelas, sem malícia. Sua intenção é apresentar causos do interior catarinense, das pessoas simples do campo, servindo-se de personagens comuns, mesmo quando se vale de “bandidos”. João da Banha está presente em duas narrativas e em ambas não ocorre nenhum crime, nenhuma tragédia. O personagem é apenas “um andarilho, andejo sem paragem certa, que vivia perambulando pela linha férrea, para cima e para baixo, ao deus-dará” e “ganhara o apelido porque surrupiara um tantote de banha numa casa”.

Conhecedor dos narradores clássicos e das técnicas de narrar, o contista catarinense é daqueles que sabem começar e finalizar histórias. O leitor não é conduzido a veredas obscuras, embora os arremates nos contos de Enéas sejam sempre jocosos, leves, sem nenhum traço de tragédia. Em “O Atentado” o leitor pode esperar um fim trágico. João da Banha, “conhecido facínora”, prometia matar Seu Berilo, o Administrador. O povo da Vila em pânico. Ainda assim, ao fim da história nada de refregas, violências, mortes.

Em suma, O Cavalo Inveja e a Mula Manca é livro de agradável leitura, para leitores de todas as idades, de quaisquer regiões do Brasil, sejam eles principiantes ou mais lidos. As narrativas do livro retratam os campos de Santa Catarina, sua gente simples, pacata. E é livro de linguagem correta, limpa, sem malabarismos, sem excessos, porém rico no vocabulário e na construção das frases.
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Homens (Nilto Maciel)


 

— Isso se deu nos tempos antigos, muito antes de Lampião, muito antes do Imperador, muito antes da seca dos três sete. O dito coronel tinha uma data de terra ali pros lados do Mulungu e já estava meio velho, aí pela casa dos noventa. Pra lhe dizer como ele era rico basta citar as preciosidades que tinha em casa: um baú cheinho de pedras, sete papagaios que falavam francês, seis filhas donzelas que conservava debaixo de sete chaves para casar só com príncipes loiros, e uma porção de coisas outras de valor. Mas porém isso não vem ao caso. A lenda conta é que esse tal sesmeiro, depois que virou o cabo-da-boa-esperança, passou a frequentar as autoridades da província e das vilas: juizes, procuradores, alcaides, tabeliães, escrivães, vereadores, tesoureiros, vigários, militares...

À pequena distância do homem que falava e de outro, que estavam sentados em cadeiras de balanço, um defronte para o outro, uma criança, sentada no chão, tentava acionar o pinguelo de um revólver de plástico. Ao conseguir firmar numa mão o brinquedo, regozijou-se, rodopiou com a bunda assentada no chão de cimento liso e fez menção de atingir primeiro o homem que falava e em seguida o outro, gritando pô-pô-pô, seguidamente, durante quase um minuto. Os homens, entretanto, nem se assustaram nem demonstraram sequer ter percebido a presença do traquino, continuando um a falar, outro a olhar atentamente para uma figura que segurava firmemente com as mãos e que apresentava um soldado montado num cavalo, ambos de perfil. O militar era novo, trajava fardamento antigo e trazia a tiracolo uma espada longa. O animal era baio, muito grande e bonito e parecia cansado.

Sem dar ouvidos à desatenção do homem da figura, o que falava incessantemente dizia que o fazendeiro procurou então o vigário da freguesia, que se encontrava escrevendo uma carta para o vigário da Vila de Aquiraz, e passaram a conversar sobre terras, política e safadezas, até que o ricaço soltou uma frase curta mas que fez o reverendo trancar a cara. A tal frase dizia mais ou menos isto: Este jucá deve ser lá bem possante.

A criança, nesse momento, já de novo de costas para os dois, olhava para o alto da parede, de onde pendia um crucifixo de madeira de cerca de meio metro, ornamentado por um Cristo de prata, possivelmente. Para melhor se equilibrar, pôs as mãos para trás e esticou as canelas, encostando os pés sujos na parede azul.

O homem que falava dizia que o sesmeiro aproximou-se da estrebaria, onde cerca de vinte cavalos assediavam cerca de outro tanto de poldras, e pôs-se a olhar nervoso para a cena. Em seguida, chamou um dos cavalos pelo nome – Mimoso –, que se abeirou da cerca excitado e ergueu as patas, mostrando ao dono o maravilhoso membro enrijecido.

Por seu turno, o homem calado olhava uma segunda figura, do mesmo tamanho da anterior e figurativamente tão perfeita que tanto poderia ser uma fotografia quanto um desenho célebre. No entanto, estava desbotada e apenas dava a perceber um padre ajoelhado diante de uma imagem, possivelmente da Virgem Maria. Movimentando apenas as mãos, como que para não fazer ranger a cadeira, aproximou dos olhos a figura, mais exatamente o ângulo superior direito, onde estava fotografada ou desenhada a santa mãe de Deus, se era esta o que representava a imagem figurada.

Ainda totalmente alheia ao que dizia o homem, que falava quase gritando, como se o outro fosse surdo, a criança agora estava no outro extremo da sala, escanchada em uma sela encostada à parede, como se galopasse um cavalo. A sela rangia e a criança batia os pés no chão, imitando patas de cavalo, ao mesmo tempo que incitava o animal a trotar, fazendo com os lábios um ruído engraçado.

Infenso à zoada que fazia a criança, o homem dizia agora que o barão chamou um índio da Vila para irem ao rio e o índio mostrou-se esquivo. O velho sesmeiro trazia na algibeira um pão e, sorrindo, ofereceu-o ao selvagem. Seguiram em direção ao riacho, o barão apontando acolá, o índio dizendo dehêtsi (*), o branco afirmando perto, o vermelho perguntando dedé?, o civilizado tirando a roupa, o selvagem falando croné.

Já chovia quando o homem que nada falava olhou para uma terceira figura, a criança pôs-se a agitar nas mãos uma espécie de brinquedo bizarro e o outro continuou sua história, então dizendo que já era noite escura e chuvosa quando o fazendeiro, como último recurso, dirigiu-se à capela de taipa que se erguia num extremo da vila. Um clarão alumiou toda a sala e o homem viu perfeitamente que na foto ou desenho apareciam duas figuras de gente, enquanto a criança fazia grande algazarra, como se com medo ou alegria, e o outro dizia que o velho saiu correndo em meio aos trovões e ao ladrar dos cães vadios que o não reconheciam. A porta se escancarou à força da ventania e um frio de arrepiar penetrou na sala com fúria. A estampa quase voa da mão do homem, quando ele constatava que uma das figuras apresentava uma cara de incontida ira, enquanto na do outro um pavor de morte próxima reluzia. A criança, ou por temor à tempestade ou por se ver tomada de algum transe peculiar ao ritual que ensaiava, parecia dançar ou pular entre os dois homens, sem com eles se importar, como se não existissem ou não estivessem presentes. Um dos homens dizia que o velho alcançou a capela e divisou, a um relâmpago, as várias imagens sobre altares e mesinhas, inclusive a de um Menino Jesus deitado sobre palhas numa estrebaria. O vento continuou a açoitar as portas, a balançar as cadeiras, a agitar a figura nas mãos do homem, a sacudir a cabeleira da criança. E na estampa trêmula um homem vestido tinha o braço erguido a segurar uma longa espada. A criança agitava no ar o brinquedo. O outro falava do barão apalpando a imagem. Nos olhos do índio o espanto. O maracá rodopiando. O homem nu. A cabeça prestes a rolar. O maracá caindo. O barão assentando-se sobre a imagem de pau.


(*) Em língua cariri, dehêtsi significa acolá; dedé, perto e croné, nu.
Brasília, janeiro de 1979.
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