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quarta-feira, 23 de novembro de 2005

O soneto-conto de Glauco Mattoso (Nilto Maciel)


O imortal Gregório de Matos (1636-1696) ainda tem admiradores e discípulos. Um deles é Glauco Mattoso (1951). Mesmo imortal, o poeta baiano é tido por José Veríssimo como “servil imitador” de Quevedo (1580-1645). Além de pretenso imitador do poeta espanhol, Gregório é parodista de Camões e outros gigantes e poeta maldito, “sempre ágil na provocação, mas nem por isso indiferente à paixão humana ou religiosa, à natureza, à reflexão e, dado importante, às virtualidades poéticas de uma língua européia recém-transplantada para os trópicos”, segundo Antônio Dimas (Gregório de Matos – Literatura Comentada, Editora Nova Cultural, São Paulo, 1988). Como o filho da Bahia, Glauco Mattoso também cultiva o soneto, de rimas ricas e versos decassílabos. E é maldito, marginal.

As contas de Setidon (Nilto Maciel)



Ao aparecer à porta, Setidon sorria cinicamente, como o fazia sempre. Um olhar de relance apenas, o suficiente para perceber sua presença. Sua inútil e insignificante presença. Logo perceberia nossa indiferença por sua pessoa e se retiraria. Com seu eterno sorriso imotivado. Tal não ocorreu, no entanto. E pior: lançou na direção de nossos pés uma porção de continhas. Jogou e riu ainda mais. O terço, ou rosário, (imaginamos que o estranho objeto fosse um desses instrumentos) deslizou mansamente pelo assoalho e quase parou ao pé da mesa. Tivemos a clara impressão de que iria enganchar-se ali. E a brincadeira de Setidon teria um fim sem graça.