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segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

O caso de Amo (Nilto Maciel)



Eis que venho sem demora.
Ap. 22.7.

Mitologia
Gordo e corado carro parou no claro da esquina e dele saltou murmúrio suave de sereia, que penetrou as serenas ouças de bela menina. Sai dos escolhos destes velhos becos e vem provar o doce desta vida. Vem ver que eu tenho mais pra dar que pra tirar. O macio deste pássaro de ouro e o vôo aventureiro de meu pulso. Vem, flor mimosa, molhar teu cheiro na brisa desta noite.
E tanto o canto sibilou que a pobre flor sorriu e para o carro entrou.

Embriaguez
Num bar qualquer, um magro, pálido e triste obreiro bebia umas e outras doses de aguardente. Falava da vida e da morte e cuspia blasfêmias nas pontas de cigarro, como se as fomes que os seus olhos viam pudessem ser saciadas com sonhos e ausências suas.

Escolhos
Fugindo das luzes e dos olhos, o carro corria feito criança, em busca dos ermos das praias longínquas. E de tanto buscar, vela que a doçura da fala embalava, a lua os iluminou entre o cansaço e a luta. E lhes deu paz pra guerra entre o espinho e a flor. E os derrubou no sujo gozo dos corpos nus.

Viagem
Pelos vapores do copo ido, o pálido obreiro no seu barraco aportou. A porta espancou e o choro fino da mulher ouviu. Nossa virgem sumiu pra rua ou pra lua, encantada por moço galante ou leite galático.

Ato
O velho barco na escuridão penetrava as profundezas do mar, em viagem tão de fúria que os olhos da lua se anuviavam. As águas de frias ardentes se fizeram e de vermelho se tingiram. Um grito mudo o sátiro pançudo espantou e fê-lo correr pra longe das areias.

Procuras
Nas vizinhanças e chefaturas a triste mãe e o magro pai toda a noite consumiram, perguntas fazendo e dúvidas deixando, nada encontrando parecido com uns cabelos longos, olhos castanhos, pernas bonitas, sorriso de flor e vestidinho de organdi.

Vagamundo
Girando no escuro da noite, o carro viu a cidade estertorar de cansada e rasgar os lençóis do sonho. Viu as fugas em fugas ligeiras e as estrelas mudar de cor. E disse graças a Deus quando o sol piscou o olho entre as brancuras edificadas.

Alerta
Quando os galos suburbanos cantaram, os pais da menina perdida anunciaram aos filhos dormidos que procurassem debaixo das malas a irmãzinha escondida, pois nas ruas não havia nenhuma com ela parecida.

Primeiro
Antes que o porteiro chegasse, Amo abriu as portas do escritório. O vigia experimentou uma sensação de dormência muito mais forte que a sentida no decorrer do noturno serviço. Refestelou-se o patrão no gabinete e ordenou a si mesmo que não pensasse em nada, a não ser em dinheiro.
E se viu rajá, rodeado de moedas. Coroa de rei e cara de mulher. Caras que se alongavam, rindo e chorando a um tempo, rindo do rei rajá amo de todos, chorando do estupor ante o poder daquele que as mirava com avidez.

Último
Muito tarde foi chegar o operário Valdevino, alegando estar vivendo um momento de terrível aflição, por ter sua filha sido raptada ou fugido na noitada passada. Tal desculpa não quis o gerente ouvir, dizendo simplesmente vá-se embora.

Rixa
Revoltado com o dito, Valdevino procurou o gabinete do patrão, pra contar a mesma história e dizer mal do puxa-saco. Seu Amo não aceitou a desculpa e gritou-lhe vá-se embora. Valdevino, enraivecido, levantou o punho forte e derrubou o patrão.

Prisão
Alertados pela barulheira, guarda-costas de Amo tomaram o gabinete e desancaram o malcriado. E, por ordem patronal, a polícia chegou e levou acorrentado o coitado Valdevino.

Sonho
Na cela pequena, o operário se enroscou e olhou o mais que pôde para dentro de si. E viu sua filha voltando nos braços-silvas dos anjos, pisando a cabeça grande do dragão-amo-patrão, que tombava desfalecido na cadeira confortável.

Fim
No gabinete, Amo pensou uma vez mais na menina morta e sentiu uma agonia apoderar-se de seu corpo. Agarrou-se ao espaldar da cadeira que girava, como se agarrasse a vida, que fugia, fugia.
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sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

Francisco Carvalho: um poeta maior (Nilto Maciel)


Há quem coloque Francisco Carvalho ao lado dos poetas maiores da Língua Portuguesa. Em 1982 teve reconhecido o mérito de sua arte, ao ser premiado em 1º lugar na Bienal Nestlé de Literatura Brasileira o livro Quadrante Solar. Mesmo assim, Francisco Carvalho não se tornou um nome conhecido nacionalmente

Um dos mais importantes livros do poeta cearense é, sem dúvida, Barca dos Sentidos, editado em 1989 pela Universidade Federal do Ceará. Trata-se de livro portentoso, além de englobar mais de duzentos poemas, divididos em cinco livros.

Francisco Carvalho conhece profundamente todas as técnicas, regras da arte poética. E por ser conhecedor dela é que não hesita em ser moderno, sem deixar de abrir novos caminhos a partir das rotas abertas pelos grandes poetas. Isto é, não dá ouvidos àqueles que preconizam a morte do verso e, por conseqüência, dos diversos tipos de poemas tradicionalmente conhecidos, como o soneto. Aliás, há um livro dele composto só de sonetos – Rosa Geométrica.

Muitos dos poemas do poeta são intitulados balada, canção, cântico, elegia, madrigal, ode, soneto. Como “Canção Marinheira”, “Ode Itabirana” ou “Balada do Rio”. Nem por isso Francisco Carvalho é poeta atado a fórmulas ou formas já sedimentadas. Não, ele é também inovador ou, pelo menos, capaz de romper os limites impostos pela tradição poética. Como em soneto rimar “suspiros” com “arco-íris” (“Dádivas”) ou “barrocas” com “opas" (“Soneto de Sabará”).

Não vou citar aqui nenhum verso do livro. Seria difícil eleger este ou aquele, tantos são os mais belos.

Francisco Carvalho se distingue da maioria dos poetas brasileiros em atividade pelo uso de uma linguagem própria, sem deixar de ser tradicional, clássica. Não escreve para provar que é moderno ou para criar modas. Pois até passou ao largo dos movimentos do tipo Concretismo, Práxis, Processo. Nunca se deixou seduzir por modismos.

Apesar de ser poeta desobrigado de muletas, Francisco Carvalho não esconde influências de alguns poetas. E lhes presta homenagem, quer nas epígrafes, quer ao lhes dedicar poemas. E são muitos os homenageados. Como Fernando Pessoa. O poema “Interlúdio para Cefaléia” lembra muito o poeta lusitano. O mesmo se pode dizer de “Aspirina”. Há até um poema intitulado “Falsa imitação de Fernando Pessoa”, também no livro Rosa dos Eventos.

Embora dono de rico vocabulário, o poeta tem especial devotamento a algumas palavras-tema. Como morte/morto, casa, vento, chuva, cavalo/potro, boi/vaca, latifúndio, ancestral, diáspora. Talvez estes temas, só, assumam a maior parte de sua vasta obra.

Aqui e ali o poeta tange a lira burlesca ou contestatória. Nunca, no entanto, se faz vulgar ou panfletário. Pelo contrário, às vezes é hermético. Ele mesmo diz: “ninguém pode ser poeta sem ser, de vez em quando, hermético”.

Finalmente quero louvar a persistência de Francisco Carvalho em escrever poesia, quando tudo nos empurra para longe dela.

Termino entregue à tentação de citar uns versos seus: “Não seremos os últimos / a beber desta água e deste vinho”.
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