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segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

Joanyr de Oliveira: Um poeta quase bíblico (Nilto Maciel)


O título de qualquer livro é, necessariamente, uma síntese. Em muitos, entretanto, torna-se quase impossível ao leitor descobrir a intenção do autor. Não é o caso de O Grito Submerso, de Joanyr de Oliveira.

Existe em Joanyr uma profunda preocupação com a palavra. Está arraigado nele o conceito segundo o qual o poeta trabalha com a palavra. Palavra é ferramenta, objeto de trabalho. Esse conceito se amplia, para fazer da palavra objeto a ser trabalhado, como a terra para o lavrador, a madeira para o carpinteiro, o barro para o modelador. 

Por extensão, a palavra é, ainda, pedra no meio do caminho e nela o poeta tropeça para descobri-la. A palavra é também fruto pendurado da árvore. A palavra existe em abundância e ao poeta cabe colhê-la.

Adão no paraíso, ao poeta é dado até colher o fruto do mal e distanciar-se dos desígnios de Deus. E ser maldito, como Baudelaire. É-lhe igualmente permitido simplesmente vagar por estes caminhos infinitos e, rei ou súdito, ufanar-se de habitar esse reino – o da palavra. “Meu reino é a palavra/ em seus ângulos mais lúcidos”.

A palavra é também para Joanyr de Oliveira prisioneira da noite e a ele cabe resgatá-la. Bruxo de mil poderes, o poeta inventa, diabolicamente, o poema. Surge então "Didática geral”, no qual a palavra é captada e apreendida, como se o poeta fosse o dicionarista do sobrenatural. Nascem dez sub-poemas: o primeiro cabeça (caput) e o último capacete, paradoxalmente. Capacete e capuz sobre a cabeça do capitão e do capataz. E o jogo se faz. É a palavra no mosaico do poeta.

O Grito Submerso é livro de bons poemas e excelentes momentos. O ponto culminante dessa montanha é o meritíssimo senhor poema intitulado "Lunar”.

Em Sinais dos tempos, Joanyr já domou a palavra, o verbo. Por isso me volto para outros aspectos de sua poesia. Sem esquecer o lirismo, Joanyr se volta para o mundo exterior, em alguns poemas, e faz poesia de protesto. Alude a alguns momentos de nossa História recente e atual. Como o caso da tortura a presos políticos. Elabora vigorosos anátemas (preciso ser redundante) aos torturadores. A tortura, porém, não foi crime cometido apenas no Brasil pós-64. Ela é antiga e universal. E ele sabe disso muito bem. É por isso e então que a poesia aflora ou deixa de ser mera poesia de circunstância. Ou apenas panfleto. Nelson Mandela aparece grandioso num dos poemas. Todavia, mesmo que amanhã ninguém mais se lembre dele, o poema de Joanyr não terá sido simples panfleto: “Não estou hoje para a Primavera / nem para as luzes e os anjos. / Sou um poeta de sangue e nervos / e a liberdade é minha sede”.

O poeta, ser sensível por excelência, não pode passar imune às injustiças, misérias, catástrofes sociais. Talvez nem tenha existido aquele tipo de poeta lunático, alheio às dores do mundo, recolhido à sua torre de marfim. Tal idéia, difundida no seio das famílias burguesas, visava tão-somente afastar os jovens da poesia, torná-los apenas médicos, comerciantes, padres.

Joanyr não é somente protesto. E, se o fosse, não seria o bom poeta que é. O lirismo não está esquecido em Sinais dos tempos. Trata-se, no entanto, de um lirismo angustiado. Lirismo nascido da memória. Não o lirismo adolescente, piegas, que Joanyr já amadureceu, já sazonou. A memória é o terreno adubado onde ele colhe os frutos com os quais elabora iguarias e licores. Delícias do passado, a infância, a juventude. A cidadezinha, a vida quieta, saudades: “O branco-azul do colégio / caía nas tardes peripatéticas”.

Sem a lembrança pouca poesia existiria. A não ser aquela feita apenas de palavras. Poesia árida, tida por alguns propagandistas de vanguardismos passageiros como a única poesia possível e necessária. Questão de gosto.

É na memória que tudo se guarda e se acha. A vida e a morte. O tema da morte está também presente em Sinais dos Tempos: “As mãos da Eternidade vêm falar-me / empós de um oboé grave e suspeito / e retemperam fios desse alarme / pelo universo atônito do peito”.

Versos como esses, de singular construção, até ensejariam falar-se em simbolismo. Ou em surrealismo. Mas a boa poesia não carece de rótulos. Aliás, seria melhor não lhe dar rótulo nenhum. Cruz e Sousa seria grande poeta, mesmo não sendo simbolista. Ainda que não tivesse lido os corifeus dessa escola, certamente seria um grande poeta. Talvez romântico, talvez parnasiano.

Já disseram estar a melhor poesia impregnada de metafísica. Os exemplos são muitos: Quental, Sá-Carneiro, Pessoa, para falar apenas em portugueses. São poetas espiritualistas. Lembraríamos também o nosso Jorge de Lima, tão místico. Há um poema de Joanyr que até lembra o poeta alagoano. Trata-se de “O Fio”, poema longo, não tão longo quanto Invenção de Orfeu – um monumento. Um dos melhores e mais perfeitos poemas de Sinais dos Tempos.

Uma das partes desse livro é toda constituída de sonetos. Com rimas e decassílabos, sim, porém com um sopro de novidade em todos eles. Novidade num aspecto, porque Joanyr de Oliveira é quase bíblico. Seus temas favoritos são bíblicos. Como em Camões e Jorge de Lima. Não é à toa o título Sinais dos Tempos.

Joanyr voltou melhor, muito melhor do que nos tempos de O Grito Submerso. E naquele tempo já era bom poeta, respeitado e admirado por seus pares, pelos críticos e leitores.
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O caso de Amo (Nilto Maciel)



Eis que venho sem demora.
Ap. 22.7.

Mitologia
Gordo e corado carro parou no claro da esquina e dele saltou murmúrio suave de sereia, que penetrou as serenas ouças de bela menina. Sai dos escolhos destes velhos becos e vem provar o doce desta vida. Vem ver que eu tenho mais pra dar que pra tirar. O macio deste pássaro de ouro e o vôo aventureiro de meu pulso. Vem, flor mimosa, molhar teu cheiro na brisa desta noite.
E tanto o canto sibilou que a pobre flor sorriu e para o carro entrou.

Embriaguez
Num bar qualquer, um magro, pálido e triste obreiro bebia umas e outras doses de aguardente. Falava da vida e da morte e cuspia blasfêmias nas pontas de cigarro, como se as fomes que os seus olhos viam pudessem ser saciadas com sonhos e ausências suas.

Escolhos
Fugindo das luzes e dos olhos, o carro corria feito criança, em busca dos ermos das praias longínquas. E de tanto buscar, vela que a doçura da fala embalava, a lua os iluminou entre o cansaço e a luta. E lhes deu paz pra guerra entre o espinho e a flor. E os derrubou no sujo gozo dos corpos nus.

Viagem
Pelos vapores do copo ido, o pálido obreiro no seu barraco aportou. A porta espancou e o choro fino da mulher ouviu. Nossa virgem sumiu pra rua ou pra lua, encantada por moço galante ou leite galático.

Ato
O velho barco na escuridão penetrava as profundezas do mar, em viagem tão de fúria que os olhos da lua se anuviavam. As águas de frias ardentes se fizeram e de vermelho se tingiram. Um grito mudo o sátiro pançudo espantou e fê-lo correr pra longe das areias.

Procuras
Nas vizinhanças e chefaturas a triste mãe e o magro pai toda a noite consumiram, perguntas fazendo e dúvidas deixando, nada encontrando parecido com uns cabelos longos, olhos castanhos, pernas bonitas, sorriso de flor e vestidinho de organdi.

Vagamundo
Girando no escuro da noite, o carro viu a cidade estertorar de cansada e rasgar os lençóis do sonho. Viu as fugas em fugas ligeiras e as estrelas mudar de cor. E disse graças a Deus quando o sol piscou o olho entre as brancuras edificadas.

Alerta
Quando os galos suburbanos cantaram, os pais da menina perdida anunciaram aos filhos dormidos que procurassem debaixo das malas a irmãzinha escondida, pois nas ruas não havia nenhuma com ela parecida.

Primeiro
Antes que o porteiro chegasse, Amo abriu as portas do escritório. O vigia experimentou uma sensação de dormência muito mais forte que a sentida no decorrer do noturno serviço. Refestelou-se o patrão no gabinete e ordenou a si mesmo que não pensasse em nada, a não ser em dinheiro.
E se viu rajá, rodeado de moedas. Coroa de rei e cara de mulher. Caras que se alongavam, rindo e chorando a um tempo, rindo do rei rajá amo de todos, chorando do estupor ante o poder daquele que as mirava com avidez.

Último
Muito tarde foi chegar o operário Valdevino, alegando estar vivendo um momento de terrível aflição, por ter sua filha sido raptada ou fugido na noitada passada. Tal desculpa não quis o gerente ouvir, dizendo simplesmente vá-se embora.

Rixa
Revoltado com o dito, Valdevino procurou o gabinete do patrão, pra contar a mesma história e dizer mal do puxa-saco. Seu Amo não aceitou a desculpa e gritou-lhe vá-se embora. Valdevino, enraivecido, levantou o punho forte e derrubou o patrão.

Prisão
Alertados pela barulheira, guarda-costas de Amo tomaram o gabinete e desancaram o malcriado. E, por ordem patronal, a polícia chegou e levou acorrentado o coitado Valdevino.

Sonho
Na cela pequena, o operário se enroscou e olhou o mais que pôde para dentro de si. E viu sua filha voltando nos braços-silvas dos anjos, pisando a cabeça grande do dragão-amo-patrão, que tombava desfalecido na cadeira confortável.

Fim
No gabinete, Amo pensou uma vez mais na menina morta e sentiu uma agonia apoderar-se de seu corpo. Agarrou-se ao espaldar da cadeira que girava, como se agarrasse a vida, que fugia, fugia.
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