Translate

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

O castigo de Deus (Nilto Maciel)


Olhei para o chão. Uma sombra deslizava, corria. Respirei e senti cheiro de coisa queimada. Mormaço insuportável. Olhei para o céu, na esperança de ver alguma nuvem de chuva. O sol, pardacento, quase me cegou. Levei as mãos à testa e corri para junto de mamãe, que lavava roupa junto ao tanque cheio de água. Ela nem deu resposta à minha inquietação. Antes, quis saber a causa de tanta tropelia. Fosse brincar na sala e não lhe desse mais sustos. Terminava me batendo.

Assustado, corri, atravessei o corredor e alcancei a porta da rua. Às janelas, mulheres debruçavam os olhos para as bandas do céu. E mexericavam medos antigos de fogos vindos do alto para castigar os pecadores. Nas calçadas, esquecidas pelos meninos, castanhas de caju se assavam. Pés descalços não suportavam a quentura do chão. Evolava-se dele uma fumaça espessa.

— Incêndio, minha gente, incêndio!

O homenzinho parecia aflito, suava muito e fedia a cachaça. Talvez fugisse para a serra. O jumento, no entanto, mostrava-se manso, sem a mínima vontade de andar. Com certeza, se sentia cansado de carregar carga tão pesada de bugigangas nos caçuás. Nem olhava para trás nem para o alto.

— Incêndio, meu povo, incêndio!

À falta de ouvintes para sua notícia, o homem vibrava o chicote no ar, como para alertar o animal. O fogo devorava a fábrica do Seu Cordeiro. E ninguém ia apagar as chamas? O jumentinho dava um passo, catava capim, resfolegava. Aproximava-se deles outro curioso, olhos fitos na fumaça cinzenta que passeava sobre todas as coisas. Ninguém ia apagar o fogo?

Medo redobrado, voltei ao quintal e acocorei-me ao pé das bananeiras, onde sempre fazia frio. A terra úmida molhava meus pés e me confortava. No alto, porém, a fumaça corria e, de vez em quando, fazia sombra. Parecia até nuvem de chuva. O homem e seu jumento talvez já tivessem ido embora. Fui até junto ao muro. Não fossem os cacos de vidro, eu poderia ver as ruas, a fábrica do Seu Cordeiro, o incêndio. Línguas vermelhas a lamber o céu azul. E as casas, toda a cidade. Sim, o fogo devoraria tudo, coisas e pessoas. A menos que fôssemos todos para o meio da rua, as praças. Ou para a igreja matriz. Lá o fogo não entraria. Na casa de Deus a salvação. Quando o mar invadisse a terra, no dilúvio do fim do mundo, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior da igreja. As águas não passariam dos degraus do patamar, enquanto o mundo estaria alagado.

— O mundo vai se acabar.

E, se não fosse pela água, seria pelo fogo. Por que então não corríamos todos para a matriz?

— Vamos, mãe.

Fazer o que na igreja àquela hora do dia? Deixasse de besteiras, fosse brincar.

Obediente, atravessei de novo a casa, aos pulos. Da janela avistei o jumentinho, a comer o capim da rua, conformado com sua carga, manso como antes. O homem, suado, no entanto, falava mais alto e gesticulava muito, cercado de curiosos. No céu, a fumaça negra fazia sombras enormes no chão.

Aflito, busquei refúgio no quarto de dormir e me ajoelhei diante do santuário. Deus nos protegeria. Olhei para o teto: a telha de vidro servia de clarabóia. No entanto, a luz do sol quase não penetrava no quarto. E papai, onde estaria? Corri mais uma vez para perto de mamãe. Ela saberia me dizer. Nem tive tempo de abrir a boca. Fosse logo tomar banho.

— Seu pai está para chegar.

Precisava ter certeza daquilo e, numa carreira medonha, atravessei a cozinha, a sala de janta, o corredor, e cheguei à sala.

— O que é isso, meu filho?

Ele tirou o chapéu e se dirigiu aos fundos da casa. Estava salvo.

Mais longe, o jumento não parava de comer capim. Onde andaria o homenzinho suado? Estiquei o pescoço – o desgraçado apareceu à porta da bodega de Seu Quincas e cuspiu.

— Venha tomar banho logo, menino mal-ouvido.

(18/11/87)
/////

segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

Joanyr de Oliveira: Um poeta quase bíblico (Nilto Maciel)


O título de qualquer livro é, necessariamente, uma síntese. Em muitos, entretanto, torna-se quase impossível ao leitor descobrir a intenção do autor. Não é o caso de O Grito Submerso, de Joanyr de Oliveira.

Existe em Joanyr uma profunda preocupação com a palavra. Está arraigado nele o conceito segundo o qual o poeta trabalha com a palavra. Palavra é ferramenta, objeto de trabalho. Esse conceito se amplia, para fazer da palavra objeto a ser trabalhado, como a terra para o lavrador, a madeira para o carpinteiro, o barro para o modelador. 

Por extensão, a palavra é, ainda, pedra no meio do caminho e nela o poeta tropeça para descobri-la. A palavra é também fruto pendurado da árvore. A palavra existe em abundância e ao poeta cabe colhê-la.

Adão no paraíso, ao poeta é dado até colher o fruto do mal e distanciar-se dos desígnios de Deus. E ser maldito, como Baudelaire. É-lhe igualmente permitido simplesmente vagar por estes caminhos infinitos e, rei ou súdito, ufanar-se de habitar esse reino – o da palavra. “Meu reino é a palavra/ em seus ângulos mais lúcidos”.

A palavra é também para Joanyr de Oliveira prisioneira da noite e a ele cabe resgatá-la. Bruxo de mil poderes, o poeta inventa, diabolicamente, o poema. Surge então "Didática geral”, no qual a palavra é captada e apreendida, como se o poeta fosse o dicionarista do sobrenatural. Nascem dez sub-poemas: o primeiro cabeça (caput) e o último capacete, paradoxalmente. Capacete e capuz sobre a cabeça do capitão e do capataz. E o jogo se faz. É a palavra no mosaico do poeta.

O Grito Submerso é livro de bons poemas e excelentes momentos. O ponto culminante dessa montanha é o meritíssimo senhor poema intitulado "Lunar”.

Em Sinais dos tempos, Joanyr já domou a palavra, o verbo. Por isso me volto para outros aspectos de sua poesia. Sem esquecer o lirismo, Joanyr se volta para o mundo exterior, em alguns poemas, e faz poesia de protesto. Alude a alguns momentos de nossa História recente e atual. Como o caso da tortura a presos políticos. Elabora vigorosos anátemas (preciso ser redundante) aos torturadores. A tortura, porém, não foi crime cometido apenas no Brasil pós-64. Ela é antiga e universal. E ele sabe disso muito bem. É por isso e então que a poesia aflora ou deixa de ser mera poesia de circunstância. Ou apenas panfleto. Nelson Mandela aparece grandioso num dos poemas. Todavia, mesmo que amanhã ninguém mais se lembre dele, o poema de Joanyr não terá sido simples panfleto: “Não estou hoje para a Primavera / nem para as luzes e os anjos. / Sou um poeta de sangue e nervos / e a liberdade é minha sede”.

O poeta, ser sensível por excelência, não pode passar imune às injustiças, misérias, catástrofes sociais. Talvez nem tenha existido aquele tipo de poeta lunático, alheio às dores do mundo, recolhido à sua torre de marfim. Tal idéia, difundida no seio das famílias burguesas, visava tão-somente afastar os jovens da poesia, torná-los apenas médicos, comerciantes, padres.

Joanyr não é somente protesto. E, se o fosse, não seria o bom poeta que é. O lirismo não está esquecido em Sinais dos tempos. Trata-se, no entanto, de um lirismo angustiado. Lirismo nascido da memória. Não o lirismo adolescente, piegas, que Joanyr já amadureceu, já sazonou. A memória é o terreno adubado onde ele colhe os frutos com os quais elabora iguarias e licores. Delícias do passado, a infância, a juventude. A cidadezinha, a vida quieta, saudades: “O branco-azul do colégio / caía nas tardes peripatéticas”.

Sem a lembrança pouca poesia existiria. A não ser aquela feita apenas de palavras. Poesia árida, tida por alguns propagandistas de vanguardismos passageiros como a única poesia possível e necessária. Questão de gosto.

É na memória que tudo se guarda e se acha. A vida e a morte. O tema da morte está também presente em Sinais dos Tempos: “As mãos da Eternidade vêm falar-me / empós de um oboé grave e suspeito / e retemperam fios desse alarme / pelo universo atônito do peito”.

Versos como esses, de singular construção, até ensejariam falar-se em simbolismo. Ou em surrealismo. Mas a boa poesia não carece de rótulos. Aliás, seria melhor não lhe dar rótulo nenhum. Cruz e Sousa seria grande poeta, mesmo não sendo simbolista. Ainda que não tivesse lido os corifeus dessa escola, certamente seria um grande poeta. Talvez romântico, talvez parnasiano.

Já disseram estar a melhor poesia impregnada de metafísica. Os exemplos são muitos: Quental, Sá-Carneiro, Pessoa, para falar apenas em portugueses. São poetas espiritualistas. Lembraríamos também o nosso Jorge de Lima, tão místico. Há um poema de Joanyr que até lembra o poeta alagoano. Trata-se de “O Fio”, poema longo, não tão longo quanto Invenção de Orfeu – um monumento. Um dos melhores e mais perfeitos poemas de Sinais dos Tempos.

Uma das partes desse livro é toda constituída de sonetos. Com rimas e decassílabos, sim, porém com um sopro de novidade em todos eles. Novidade num aspecto, porque Joanyr de Oliveira é quase bíblico. Seus temas favoritos são bíblicos. Como em Camões e Jorge de Lima. Não é à toa o título Sinais dos Tempos.

Joanyr voltou melhor, muito melhor do que nos tempos de O Grito Submerso. E naquele tempo já era bom poeta, respeitado e admirado por seus pares, pelos críticos e leitores.
//////