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terça-feira, 6 de dezembro de 2005

José Alcides Pinto: Ordem e desordem (Nilto Maciel)



Cassiano Ricardo via na poesia de José Alcides Pinto uma arte de currupira. E tão inumeráveis têm sido seus apelidos, de satânico a louco, que não se duvidará chamem-no agora de poeta escatológico.

Em Ordem e Desordem, Alcides faz profissão de fé numa poesia mais comprometida com o homem-animal. A palavra é apenas um dado recente na evolução biológica, e a poesia escrita um dado recentíssimo. Assim, o autor de O Dragão abandona a história da vida para penetrar, sem receios ou preconceitos, na própria biologia, não como cientista, mas como poeta. E descobre que poesia não se faz com palavras, porém com fezes. De igual forma, a pintura. “Faz-se a pintura no muro/ com fezes/ bosta de animal, pêlo de cachorro/ doido, vira-lata”. 

Arte para ele nada tem de beleza, aquela beleza distante do bicho-homem que ainda teima em se decantar em prosa e verso.

Ordem e Desordem traz também o cantor do tempo perdido, em versos que recontam a infância, relembram a mãe. Há até uma “Conversa com o tempo”. No entanto, a inserção de vocábulos considerados malditos por defensores da moral e dos bons costumes, nesses poemas aparentemente voltados para a História, vem confirmar a tendência de Alcides Pinto para uma poesia suja. Assim em “A professora”: “Esse tempo vai longe;/ Porra! Como vai longe”.

É essa linguagem, a utilização da palavra certa, embora supostamente repugnante aos olhos e ouvidos fariseus, que dá ao verso de José Alcides Pinto um sentido duplamente escatológico. Porque trata do homem e sua miséria animal e porque fala do ser humano e seu destino. E aqui não há como separar o biológico do histórico. Então temos o poema drummoniano “A bomba oficial”.

Não poderia, por isso mesmo, de deixar de constar no livro um "Exercício rimário”, onde o poeta se diz artífice de uma poesia de variados e infinitos motivos: “Faço o poema/ de ouro/ da asa do besouro./ Do couro/ do boi/ do eco do abôio”. E até “Com o talento/ de Poe:/ Verlaine, Artaud, Rimbaud”.

Dentro dessa variedade de motivos, encerra-se o livro com um curiosíssimo e enigmático “Projeto rural para receber o Poeta Artur Eduardo Benevides na Fazenda Equinócio”, no qual verso e prosa convivem em “cantos” que lembram ora a Bíblia, ora os gregos, ora o romance romântico, ora os contos de Poe.

Enfim, Ordem e Desordem é a própria contradição de José Alcides Pinto, e nada melhor do que o título do livro para defini-lo.
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O castigo de Deus (Nilto Maciel)


Olhei para o chão. Uma sombra deslizava, corria. Respirei e senti cheiro de coisa queimada. Mormaço insuportável. Olhei para o céu, na esperança de ver alguma nuvem de chuva. O sol, pardacento, quase me cegou. Levei as mãos à testa e corri para junto de mamãe, que lavava roupa junto ao tanque cheio de água. Ela nem deu resposta à minha inquietação. Antes, quis saber a causa de tanta tropelia. Fosse brincar na sala e não lhe desse mais sustos. Terminava me batendo.

Assustado, corri, atravessei o corredor e alcancei a porta da rua. Às janelas, mulheres debruçavam os olhos para as bandas do céu. E mexericavam medos antigos de fogos vindos do alto para castigar os pecadores. Nas calçadas, esquecidas pelos meninos, castanhas de caju se assavam. Pés descalços não suportavam a quentura do chão. Evolava-se dele uma fumaça espessa.

— Incêndio, minha gente, incêndio!

O homenzinho parecia aflito, suava muito e fedia a cachaça. Talvez fugisse para a serra. O jumento, no entanto, mostrava-se manso, sem a mínima vontade de andar. Com certeza, se sentia cansado de carregar carga tão pesada de bugigangas nos caçuás. Nem olhava para trás nem para o alto.

— Incêndio, meu povo, incêndio!

À falta de ouvintes para sua notícia, o homem vibrava o chicote no ar, como para alertar o animal. O fogo devorava a fábrica do Seu Cordeiro. E ninguém ia apagar as chamas? O jumentinho dava um passo, catava capim, resfolegava. Aproximava-se deles outro curioso, olhos fitos na fumaça cinzenta que passeava sobre todas as coisas. Ninguém ia apagar o fogo?

Medo redobrado, voltei ao quintal e acocorei-me ao pé das bananeiras, onde sempre fazia frio. A terra úmida molhava meus pés e me confortava. No alto, porém, a fumaça corria e, de vez em quando, fazia sombra. Parecia até nuvem de chuva. O homem e seu jumento talvez já tivessem ido embora. Fui até junto ao muro. Não fossem os cacos de vidro, eu poderia ver as ruas, a fábrica do Seu Cordeiro, o incêndio. Línguas vermelhas a lamber o céu azul. E as casas, toda a cidade. Sim, o fogo devoraria tudo, coisas e pessoas. A menos que fôssemos todos para o meio da rua, as praças. Ou para a igreja matriz. Lá o fogo não entraria. Na casa de Deus a salvação. Quando o mar invadisse a terra, no dilúvio do fim do mundo, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior da igreja. As águas não passariam dos degraus do patamar, enquanto o mundo estaria alagado.

— O mundo vai se acabar.

E, se não fosse pela água, seria pelo fogo. Por que então não corríamos todos para a matriz?

— Vamos, mãe.

Fazer o que na igreja àquela hora do dia? Deixasse de besteiras, fosse brincar.

Obediente, atravessei de novo a casa, aos pulos. Da janela avistei o jumentinho, a comer o capim da rua, conformado com sua carga, manso como antes. O homem, suado, no entanto, falava mais alto e gesticulava muito, cercado de curiosos. No céu, a fumaça negra fazia sombras enormes no chão.

Aflito, busquei refúgio no quarto de dormir e me ajoelhei diante do santuário. Deus nos protegeria. Olhei para o teto: a telha de vidro servia de clarabóia. No entanto, a luz do sol quase não penetrava no quarto. E papai, onde estaria? Corri mais uma vez para perto de mamãe. Ela saberia me dizer. Nem tive tempo de abrir a boca. Fosse logo tomar banho.

— Seu pai está para chegar.

Precisava ter certeza daquilo e, numa carreira medonha, atravessei a cozinha, a sala de janta, o corredor, e cheguei à sala.

— O que é isso, meu filho?

Ele tirou o chapéu e se dirigiu aos fundos da casa. Estava salvo.

Mais longe, o jumento não parava de comer capim. Onde andaria o homenzinho suado? Estiquei o pescoço – o desgraçado apareceu à porta da bodega de Seu Quincas e cuspiu.

— Venha tomar banho logo, menino mal-ouvido.

(18/11/87)
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