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quinta-feira, 8 de dezembro de 2005

Impossível contar a história de Palma (Nilto Maciel)




Ao regressar de Palma, passou Martinando dias e dias aborrecido. Não o incomodava ter visto os primos ainda ameninados e o tio quase igual a antes, como sempre tinha sido. Admirava-se da prodigalidade mansa daqueles adolescentes, como se o pai fosse muito rico. Todo o povo sabia da avareza do velho Augusto: até dormia na bodega, com medo de ser roubado. Nunca permitiu a presença demorada dos filhos no pequeno estabelecimento. Não fossem chupar os bombons expostos à venda. Tudo medido e pesado, para que pudessem estudar e ser gente na vida. Talvez doutores.

Depois de satisfazer a ânsia de redescoberta da terra natal, Martinando procurou o tio. Sobre a mesinha, onde guardava o dinheiro, duas carteiras de cigarro abertas, como se o tio não tivesse deixado de fumar, depois de ter ido parar num hospital, acometido pela bronquite secular. “Vim só comprar cigarro”, apressou-se a dizer, abanando a cédula na direção do comerciante.

Na verdade, Martinando se sentia cansado de tanto andar. Preferia descansar os pés, embora para ouvir as perguntas de sempre: “Como vai o Carlos? Você já se formou? E a comadre Clarice?” Havia andado muito, subindo e descendo ladeiras, no meio dos matos, percorrendo as velhas ruas, onde brincara de bola-de-meia. Tudo diferente do que tinha imaginado. Parecia uma terra estranha, tantos montes, tantos rios, tanta floresta. Nunca um passeio por aqueles campos. Sempre entre as paredes das casas da cidade. Quando muito, antes de se mudar para a capital, pequenas viagens aos sítios de parentes e aderentes situados do lado direito de quem entrava na cidade. Via tudo com olhos novos, com interesse de pesquisador. Como um médico legista diante do cadáver da própria mãe. Não, não uma visão assim tão trágica. Sentia até umas pontadas de nativismo nos olhos. Os primos nunca haviam saído de lá e faziam papel de cicerones. Davam indicações, explicavam nomes e apelidos, sérios e preocupados em servir ao primo viajado.

Martinando encontrou o livro por acaso. Porque esperava colher informações sobre a história de Palma nas pessoas mais velhas e nas construções antigas. Acompanhado de alguns primos, vasculhou grotas para saber os nomes dos sítios, dos rios e das árvores. Depois dispensou a companhia deles e andou só pela cidade. Ora, conhecia Palma tanto quanto eles. Diante de cada prédio de aparência antiga, sobrados e casarões, parava, olhos de turista, caderno e caneta à mão.

Da fachada de um sobrado copiou o ano de 1912; na parede da frente de um casarão leu a inscrição “Solar do Capitão Pedro Vasconcelos – 1915”; e assim por diante. Aquelas informações serviriam para contar parte da história de Palma. Ultimamente não parava de sonhar com a velha cidade. Agora acreditava nos sonhos. Porque os sonhos não surgiam do acaso, mas de uma exigência objetiva do intelecto. Ora, como sonhar com aqueles prédios e aquelas inscrições, se seu intelecto não exigisse a história de Palma?

Cansado de procurar inscrições, entrou numa bodega, à toa, como poderia ter ficado num banco de praça. O bodegueiro não lhe parecia estranho, como a maioria das pessoas da cidade. Porém não lhe sabia o nome. Aquele rosto envelhecido habitava a memória de Martinando. Aborreceu-se de novo. Não, não se sentia aborrecido com o incidente público provocado pelo bodegueiro ao avistar Caetano e gritar: “Diga a Madalena que venha pagar os quarenta cruzeiros que me deve.” Apenas desapontado. O comerciante teria feito aquilo para insultar toda a sua família. Cobrar aos gritos uma continha de nada, ora essa! Como se gritasse: “Olhe, sua família, tão numerosa e tão conceituada, compra fiado e não paga porque não pode.”

Caetano parou e se voltou para dizer: “Mamãe não tem dinheiro nenhum.” Talvez até quisesse dar melhores explicações, mas, vendo o primo, continuou a caminhada. “Então diga a ela que arranje dinheiro hoje à noite com os machos.”

Martinando teve ímpetos de se retirar e abandonar o livro. No entanto, continuou a acariciá-lo, folheá-lo, desejá-lo. Onde encontraria aquela obra raríssima, senão ali? Permaneceu. E era a lembrança desse incidente que o aborrecia. Por que não comprou o livro? Tivesse perdido a cerimônia, pedido dinheiro emprestado ao tio, e pronto. Um livro velho destinado a enrolar sabão e fumo numa bodega de interior, transformado em raridade de antiquário! E se tivesse roubado o objeto? Ora, o nome da família iria para onde com mais essa? Por que não pediu o livro ao comerciante, se se tratava apenas de papel para enrolar sabão?

Martinando se aborrecia com o destino. Por que parou naquela bodega e não noutra? Ou em todas havia livros importantes sobre o balcão, destinados a embrulhar sabão, fumo?

Pelo hábito de querer saber de que tratam os livros, folheou aquele pedaço da história de Palma, sem saber como se comportar diante de tamanho achado. Aquele livro teria respostas a todas as suas indagações históricas. Desde os primórdios de Palma. A aldeia indígena transformada em vila, depois em cidade. Tudo em detalhes. A primeira cabana, a primeira capela, o primeiro sobrado. “É para vender?” Não devia ter demonstrado tanto interesse pelo livro. O papel velho virou mercadoria de valor. Surgia o ato mercantil. “Oitenta cruzeiros. É o último exemplar.”

Numa foto, a Praça da Matriz vista de longe e do alto. Talvez de outra igreja ou de um avião. Formando um triângulo, viam-se três igrejas. Martinando não se lembrava da existência de duas delas. “Demoliram estas duas, ficou só a matriz,” explicou o bodegueiro. “Livro raro. Toda a história de Palma.”

(Brasília, 5 de abril de 1978)
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terça-feira, 6 de dezembro de 2005

José Alcides Pinto: Ordem e desordem (Nilto Maciel)



Cassiano Ricardo via na poesia de José Alcides Pinto uma arte de currupira. E tão inumeráveis têm sido seus apelidos, de satânico a louco, que não se duvidará chamem-no agora de poeta escatológico.

Em Ordem e Desordem, Alcides faz profissão de fé numa poesia mais comprometida com o homem-animal. A palavra é apenas um dado recente na evolução biológica, e a poesia escrita um dado recentíssimo. Assim, o autor de O Dragão abandona a história da vida para penetrar, sem receios ou preconceitos, na própria biologia, não como cientista, mas como poeta. E descobre que poesia não se faz com palavras, porém com fezes. De igual forma, a pintura. “Faz-se a pintura no muro/ com fezes/ bosta de animal, pêlo de cachorro/ doido, vira-lata”. 

Arte para ele nada tem de beleza, aquela beleza distante do bicho-homem que ainda teima em se decantar em prosa e verso.

Ordem e Desordem traz também o cantor do tempo perdido, em versos que recontam a infância, relembram a mãe. Há até uma “Conversa com o tempo”. No entanto, a inserção de vocábulos considerados malditos por defensores da moral e dos bons costumes, nesses poemas aparentemente voltados para a História, vem confirmar a tendência de Alcides Pinto para uma poesia suja. Assim em “A professora”: “Esse tempo vai longe;/ Porra! Como vai longe”.

É essa linguagem, a utilização da palavra certa, embora supostamente repugnante aos olhos e ouvidos fariseus, que dá ao verso de José Alcides Pinto um sentido duplamente escatológico. Porque trata do homem e sua miséria animal e porque fala do ser humano e seu destino. E aqui não há como separar o biológico do histórico. Então temos o poema drummoniano “A bomba oficial”.

Não poderia, por isso mesmo, de deixar de constar no livro um "Exercício rimário”, onde o poeta se diz artífice de uma poesia de variados e infinitos motivos: “Faço o poema/ de ouro/ da asa do besouro./ Do couro/ do boi/ do eco do abôio”. E até “Com o talento/ de Poe:/ Verlaine, Artaud, Rimbaud”.

Dentro dessa variedade de motivos, encerra-se o livro com um curiosíssimo e enigmático “Projeto rural para receber o Poeta Artur Eduardo Benevides na Fazenda Equinócio”, no qual verso e prosa convivem em “cantos” que lembram ora a Bíblia, ora os gregos, ora o romance romântico, ora os contos de Poe.

Enfim, Ordem e Desordem é a própria contradição de José Alcides Pinto, e nada melhor do que o título do livro para defini-lo.
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