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sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

Maracanãs (Nilto Maciel)



No meio daquelas mulheres tão coloridas e belas demais para seus olhos turvos, a tontura o empurrou para os cantos, barata chutada com nojo. A alegria geral cresceu em ondas avassaladoras, afogando-o. Ele escapulia, cheio de culpa, fugindo dos olhos que o não olhavam. Pião perdendo a velocidade, prestes a rolar descontrolado, a ponta para todos os lados. Equilibrou-se, voltou à mesa. Suava, arfava. Iria embora, para a rua, a praia, os matos longínquos? Não, restava-lhe ver e sentir. E beber, por não lhe ser possível o amor de tantas mulheres. Mais uma cerveja. Já que pular também não podia. Acendeu um cigarro.

De seu canto, veria tudo. Estaria, de certa forma, mais perto de todas as folionas. Daquelas calcinhas verdes e daquelas meias pretas, daqueles óculos vermelhos e daqueles penachos cinzas, que cantavam feito maracanãs fogosas à beira da lagoa. Rodopiavam e riam já dentro de seus olhos arregalados e famintos. Beleza demais para a sua feiúra de lobo solitário. Mas quem privatizou a natureza, o sexo? Não, era tempo de brincar. Com certeza, milhares de homens mais tristes gritavam por detrás de máscaras. Umas até femininas. Criou coragem, bebeu um gole, ergueu-se. E correu para o meio do salão, esquecido de suas pobres cores. Cercou-se de passos e harmonias e gritou um grito de vencido. Tão próximo de tudo, perdeu a noção do sonho e mergulhou noutro. Mais antigo e terrível para o seu corpo raquítico de comedor de açúcar. Ao seu redor, já não bailavam mocinhas. Nem as aves do livro de zoologia. Eram guerreiras em pé de guerra. Amazonas. Maracás medonhos matraqueavam no ar repleto de fumaça. Dentro das cuias, pedras preciosas em revolução. Fora, penas de guarás agitados, como numa tempestade. Guarás ferozes, brancos, pretos e vermelhos, que esvoaçavam ao seu redor. Abelhas mortíferas, a querer ferroá-lo, queimá-lo. Iria tombar feito um cobarde caraíba? Parou, como se fosse possível frear o medo que galopa dentro dos olhos. Estranho, espécie de sonho. Ou o delírio de quem bebe para dormir? Voltaram as maracanãs enlouquecidas, rindo daquela cara de cera, múmia fugida da frigidez do tempo. Mergulhavam harmoniosamente no espelho das águas. Dois bandos a sapatear exatamente um nos pés do outro. Balé perfeito. Fascinado, não viu aproximarem-se dois imensos soldados. Agarraram-no pelos sovacos, como se o fossem depenar. As folionas reuniram-se numa só, caladas, estáticas. Conduziram-no, espantado. Maestro daquela ópera. Vá embora, se não quiser ser jogado por cima do muro. Do rochedo que apaziguava o mar. Aquele jaguar a bufar lá fora. Deixou-se levar como um cordeiro para o horto. O mar gritava, o samba fugia, a lua rolava, o frio zunia. Caiu para sentar-se. E logo dormiu e teve um sonho. Quando o sol lhe queimou os olhos, um riso esquisito abria-lhe a boca de lado a lado.
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quinta-feira, 8 de dezembro de 2005

O pássaro de luz de Guido Heleno (Nilto Maciel)


Pássaro de Luz, de Guido Heleno, traz apresentação de Cassiano Nunes e 36 poemas, cujos temas variados nos dão uma idéia de sua versatilidade. Ora Guido apresenta sua vocação telúrica, com poemas bucólicos, paisagens do interior de Goiás e Minas Gerais, ora fala de solidão e angústia, como no longo “Panorâmica desvairada”, em que, com algum humor, diz: “orar é preciso/ mas se possível, senhor, sem o peso do mundo sobre os ombros/ pois em meu dorso serpenteiam escolioses doloridas”.

A viga mestra onde se assenta a poesia de Guido Heleno é, sem dúvida, a dor do homem urbano. O cotidiano da cidade grande é pintado com a linguagem de uma realidade cinzenta: “todas as ruas são riscos de vida/ em cada esquina o encanto se desfaz”. O poema “diagnóstico da urbe” é exemplo típico dessa poesia feita com a matéria suja da civilização burguesa.

Essa tendência da poesia brasileira contemporânea – de retratar as mazelas sociais e, especificamente, urbanas – alcança em Guido Heleno pontos culminantes. A cidade enferma tem “ruas reumáticas”, “tumores em escavações”, sofre de “câncer”, tem respiração ofegante. Não poderia faltar, pois, o tema poluição. Por isso, o regresso do poeta ao campo, sua saudade dos pássaros em vôo, dos insetos em cântico, dos rios, das árvores, da própria vida campestre.

A morte, não como enigma ou objeto de especulações filosóficas, mas como fato corriqueiro do absurdo da civilização industrial, é tema dominante na poesia de Guido. “Passeio” e “ferroviária” colhem fragmentos semelhantes desse absurdo – a menina e sua boneca esmagadas pelo trem; a velha e seu cão esmigalhados pelo ônibus.

Nesse pousar sua visão sobre a podridão social, não poderia o poeta deixar de atingir o âmago mesmo da realidade. Nasce então o grito, o protesto, como em “América".

A formação dessa concepção poética do mundo em Guido Heleno poderia ser assim esboçada: o poeta postado à janela da vida, a determinar-se “passar um pano úmido nos olhos/ desembaçar o mundo”. A obscuridade não deixa ainda palpável a realidade das coisas: “lá fora/ se não me engano/ soam sobrenaturais trombetas”. Entre a paisagem bucólica perdida – ponto de partida para uma crítica da devastação da natureza e o estar na cidade, o início de uma fase de constatação: a rua, Brasília, sua História a confundir-se com a página mais suja da História do Brasil (“Honestino sorrindo para os amigos! sem pressentir ainda o ódio dos soberanos”), até o grito de protesto: “por que tantos punidos/ torturados e banidos?”
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