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sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

O engenho poético de Batista de Lima (Nilto Maciel)



O terceiro volume de poemas de Batista de Lima é a reunião de dois livros. No “Engenho”, também título do conjunto, buscou pintar ou descrever um pedaço histórica e sociologicamente importante da zona rural cearense. E pintou as personagens e descreveu partes do cenário do engenho de cana, como se, dirigindo seu discurso à cidade, pretendesse comovê-la. Seu pincel denuncia, como o Picasso de “Guernica”. Sua pena é um grito, como o de Jorge Amado dos primeiros livros.

Todavia, talvez seja melhor lembrar um poeta. Outro Jorge, o de Lima. Aquele da “Mulher proletária”. Até pela nordestinidade de ambos. Em Batista de Lima há instantes concretamente revolucionários: “Caldeireiro caldeireiro / por tua mão passadeira / passa o ouro da cana / do sítio à mão do patrão”.

O poeta não é, porém, um pregador de rebeliões, um pasquineiro metido a poeta, um desses bons rapazes que confundem arte literária com discurso político. E certamente é um homem voltado para o hoje das lutas e o amanhã das transformações, como o são sempre os bons escritores. Sua linguagem é translúcida, sem ser pobre. A terminologia do engenho está presente em todos os poemas da primeira parte do livro. Com isso, Batista de Lima demonstra que a boa literatura pode ser feita com a língua falada, viva, nacional e regional. E que seus pés estão enfiados na terra, feito raízes, e sua alma vibra com a alma do homem lavrador, nordestino, secularmente sofrido.

Batista utiliza métricas e formas poéticas variadas, sobretudo aquelas herdadas do cancioneiro ibérico pelo nosso cordel e pela poesia sertaneja e popular. Apesar disso, elabora também sonetos, embora fugindo aos cânones clássicos.

Enquanto “Engenho” é um longo poema composto de vários pequenos poemas, o que não constitui nenhuma novidade, no segundo livro, ou na segunda parte, Batista abre o leque de suas inquietações e, liberto dos propósitos ideológicos e lingüísticos que nortearam a feitura do primeiro, volta-se até mesmo para a metapoesia. Já não se dedica aos flashes do canavial. Agora vaga pela casa e pela infância, pela terra vasta e pela palavra “vasto”, pela geometria e pelo sonho. Faz-se poeta de outras dimensões e engendra poemas de linhagens e temáticas diversas. E, mais uma vez, sabe utilizar todas as cores, todas as técnicas e toda a magia que a palavra escrita pode ter nas mãos de um poeta.

Demonstra Batista de Lima que a arte poética prescinde de gráficos e invenções “geniais” Para ela basta um material primitivo e eterno – a palavra. Não a palavra isolada, não o quebra-cabeça, não a charada, mas a frase, o texto, o discurso, o verso. Ela, a palavra, e o exercício do poeta.

São tantos os bons momentos de Engenho que seria pouco eleger apenas quadros como “O Morto”, “Escola de Pedras” e “Poema”. E também “Garimpagem”, pela sua dialética. Outros e outros poemas se colocam lado a lado destes, pela poesia neles contida e pela engenharia com que foram elaborados.

Há em Os Viventes da Serra Negra dois poemas fundamentais da obra de Batista de Lima: “Agri/cultura”, espécie de poema-roteiro, e “Mirança”. Talvez um volume de poemas com o primeiro título pudesse ser confundido com um manual do lavrador. Já o segundo, além de belo, é novo, ou renovado. Mas, pluralizado, serve de título à segunda parte do livro.

Oriundo do campo, Batista está atado ao espaço rural. Em sua escrita, vocábulos como “chão”, “casa", “jardim” e "alpendre" se repetem por necessidade da própria linguagem poética. A casa ora é um todo, como a do avô, que “tem histórias que o vento/ esqueceu nas cumeeiras”, ora é vista em cada um de seus compartimentos: “No quintal da casa/ uma outra casa começa”. A casa, entretanto, situa-se dentro do sítio, do Taquari, que se ilha em uma terra maior – Lavras da Mangabeira. Ao redor da casa, o canavial, as pastagens, os currais, o chão de massapê, onde os homens encalham feito navios. E ainda os campos, as léguas, o açude, o rio que seca, a “estrada que vai/ que apenas vai/ que de tanto ir/ chega ao pé de mim”. Na cidade, o grupo escolar, a igreja, a praça, as calçadas. Nesse mundo dos viventes da Serra Negra, onde “as mulheres só têm/ coração para seus filhos/ ossos para seus homens”, o canto é um desencanto. A casa, de paredes de barro, tem telhados, chaminé, alpendre, cumeeiras, quintal, poleiro e um poço velho, “vertiginoso espelho/ onde mora meu medo”. Antes do dentro, a porta, depois o canto da porta, onde “o último cachorro deixou seu jeito”. Pelos quartos, baús de carinho, retratos, chapéus, abas, camas, mesas, gavetas. E o último quarto, as dobras da casa, “a dor/ que no morador mora”. Por fim, “dentro do dentro do quarto/ o centro de onde parto”. E lá está o menino, o poeta, com suas visões.

Noutra geometria, a do apartamento, no espaço roubado à casa, aos varais, às portas abertas, a Vitalina, porque não é mais tempo de cocadas, nem de tição, fogo e brasa, nem de caco, nem de coco, num espaço sem raízes, porque a nova morada não tem chão e o menino está desterrado de seu Taquari, o poeta se lamenta: “No mundo do apartamento/ não cabe a casa”. Aquele espaço ficou para trás, agora é apenas “uma dor sem jeito”. Ou ficou para dentro, fincada no fundo, feito estaca, doendo: “A casa tem raízes que se aprofundam/ no chão da alma”. A poeira do tempo, os ponteiros do relógio.

É a outra tecla da poesia de Batista de Lima, batida com vigor e beleza em “Mirança”.

Mas, como contar o tempo sem pisar o chão? “Os meninos subiram a serra/ para conhecer o céu”.

Em tudo, a busca da palavra, do poema. Da miragem? O poeta procura uma palavra, possível, até mesmo trivial, vaidosa dama. Como encontrá-la? Pegando-a, “pela surpresa, no bote”, em luta de caçador e caça, de fera e presa.

Em “Palavras”, toda uma confissão: “Minha primeira função/ foi ouvir palavras/ batidas do coração”. Palavras colhidas à terra, ao espaço, e ouvi-las, tecê-las, repeti-las, poli-las, com o tempo.

Batista de Lima, polidor de palavras, poeta.
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Maracanãs (Nilto Maciel)



No meio daquelas mulheres tão coloridas e belas demais para seus olhos turvos, a tontura o empurrou para os cantos, barata chutada com nojo. A alegria geral cresceu em ondas avassaladoras, afogando-o. Ele escapulia, cheio de culpa, fugindo dos olhos que o não olhavam. Pião perdendo a velocidade, prestes a rolar descontrolado, a ponta para todos os lados. Equilibrou-se, voltou à mesa. Suava, arfava. Iria embora, para a rua, a praia, os matos longínquos? Não, restava-lhe ver e sentir. E beber, por não lhe ser possível o amor de tantas mulheres. Mais uma cerveja. Já que pular também não podia. Acendeu um cigarro.

De seu canto, veria tudo. Estaria, de certa forma, mais perto de todas as folionas. Daquelas calcinhas verdes e daquelas meias pretas, daqueles óculos vermelhos e daqueles penachos cinzas, que cantavam feito maracanãs fogosas à beira da lagoa. Rodopiavam e riam já dentro de seus olhos arregalados e famintos. Beleza demais para a sua feiúra de lobo solitário. Mas quem privatizou a natureza, o sexo? Não, era tempo de brincar. Com certeza, milhares de homens mais tristes gritavam por detrás de máscaras. Umas até femininas. Criou coragem, bebeu um gole, ergueu-se. E correu para o meio do salão, esquecido de suas pobres cores. Cercou-se de passos e harmonias e gritou um grito de vencido. Tão próximo de tudo, perdeu a noção do sonho e mergulhou noutro. Mais antigo e terrível para o seu corpo raquítico de comedor de açúcar. Ao seu redor, já não bailavam mocinhas. Nem as aves do livro de zoologia. Eram guerreiras em pé de guerra. Amazonas. Maracás medonhos matraqueavam no ar repleto de fumaça. Dentro das cuias, pedras preciosas em revolução. Fora, penas de guarás agitados, como numa tempestade. Guarás ferozes, brancos, pretos e vermelhos, que esvoaçavam ao seu redor. Abelhas mortíferas, a querer ferroá-lo, queimá-lo. Iria tombar feito um cobarde caraíba? Parou, como se fosse possível frear o medo que galopa dentro dos olhos. Estranho, espécie de sonho. Ou o delírio de quem bebe para dormir? Voltaram as maracanãs enlouquecidas, rindo daquela cara de cera, múmia fugida da frigidez do tempo. Mergulhavam harmoniosamente no espelho das águas. Dois bandos a sapatear exatamente um nos pés do outro. Balé perfeito. Fascinado, não viu aproximarem-se dois imensos soldados. Agarraram-no pelos sovacos, como se o fossem depenar. As folionas reuniram-se numa só, caladas, estáticas. Conduziram-no, espantado. Maestro daquela ópera. Vá embora, se não quiser ser jogado por cima do muro. Do rochedo que apaziguava o mar. Aquele jaguar a bufar lá fora. Deixou-se levar como um cordeiro para o horto. O mar gritava, o samba fugia, a lua rolava, o frio zunia. Caiu para sentar-se. E logo dormiu e teve um sonho. Quando o sol lhe queimou os olhos, um riso esquisito abria-lhe a boca de lado a lado.
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