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domingo, 11 de dezembro de 2005

Mistério doloroso (Nilto Maciel)


1 - Desgraceira



Ora se isso tem cabimento! Se fosse ao menos outra! E por que ele não fez uma carta dessas pro Mundico? Todo mundo sabe que aquele é corno no duro. Mas escrever pro prefeito, que até meu amigo é! Eu nunca esperava uma coisa dessas. Logo agora que eu estava me aprumando na vida! Só pode ser caiporismo. Como tem gente ruim neste mundo. É, ele queria que o prefeito se intrigasse comigo e deixasse de empreitar meus serviços. Assim, ele fica com o bolo inteiro. Ganância, pura ganância. Mas ele vai me pagar. Vou mostrar com quantos paus se faz uma canoa. Meto uma bala na cara lá dele e acabo com tudo. Gente ruim não merece viver.

E se eu for embora? Evito uma desgraça. Vou tentar a vida longe daqui. Começar tudo de novo. Outra cidade, outras amizades. Não, assim ele vai ficar se pabulando, me chamando de cabra safado e covarde. Não, aqui é o meu lugar. Aqui comecei, aqui vou ficar. Fico e tiro aquele trambolho do meu caminho. Desce daí, filho de quenga. Vem, que eu quero mostrar quem é o covarde. Pei, bufo. Aí fujo pros cafundós de judas, deixo a mulher, os filhos, os cafiotes, me desgraço de uma vez. Desgraça pouca pra mim é tiquinho. Ou vou logo pra cadeia ou me matam por aí.

Não, não vou fazer nada disso. O prefeito já deve saber a verdade. O melhor é deixar a coisa como está. Agüentar tudo calado. Mas aí vem uma bala doida e... adeus vidinha. Não, essa não. Vamos, homem, deixa de paleio. Decide logo a porcaria dessa atitude. Acaba com aquele loroteiro de uma figa e foge pro oco do mundo. Você vai sofrer que só couro de pisar fumo, mas homem nasceu foi pra sofrer mesmo. Você não é mais menino. Conheceu a vida, constituiu família, fez de tudo. Até demais. Elegeu até um prefeito. Não fosse esse cabo-eleitoral-velho-de-guerra aqui, a situação hoje seria bem diferente.

Pensando bem, é melhor deixar tudo como está. Quem mexe em casa de maribondo... Eu nunca fui de fazer confusão. Nunca mesmo. Homem pacífico, ordeiro, respeitador está aqui. Porém aquele sujeito precisa aprender a respeitar homem. Pensa que sou o quê? Vagabundo, velhaco, vadio? Vou mostrar quem sou. Vai ser uma desgraceira danada, eu sei, mas tem que ser assim. Ele vai aprender comigo a não mexer com quem está queto. Meto uma bala no meio da testa lá dele, e pronto. Depois fujo, sou preso, a família vai passar dificuldades. É o jeito. O povo já sabe da futrica toda. Se eu não fizer nada, vão me chamar de covarde e acreditar nessa história furada.

E se eu metesse o relho-cru nos lombos daquele futriqueiro, nas vistas de todo mundo, pra ele deixar de ser sem-vergonha? Não, não ia dar certo. É melhor mesmo acabar logo com essa história, porque o safado não vale um tostão furado. E se eu errar o tiro? Ele me mata em cima das buchas. Não, minha pontaria não falha nunca. Vou. Me deu na veneta, agora vou mesmo. Se não, ele vai ficar fazendo mangofa de mim. Chego lá, não quero conversa, mando ele descer do andaime, se estiver trepado. Ou mando se virar, se estiver de costas. Porque homem não mata nem cachorro a traição. Vim mostrar a carta que você escreveu em meu nome, bandido. Digo assim mesmo, porque escrever carta falsa é coisa de bandido. De bandido não, de cachorro. Faça o pelo-sinal, cachorro. Não, cachorro não faz pelo-sinal. Faça o pelo-sinal, seu mequetrefe, pra não morrer feito bicho. Eu vou mandar você pra terra dos pés juntos. Atiro dentro da boca lá dele, sem dó nem piedade. Ele cai que nem um passarinho, fica estrebuchando no chão. O povo quer me agarrar, corro, pra não ser linchado. Os cabras dele vão se meter na briga. Nunca fugi, mas dessa vez vai ser o jeito. Os coitados dos meus barrigudos vão ficar ao deus-dará. A pobre da Bastiana vai chorar pelo resto da vida, ficar sozinha no mundo, sem nada, sem homem. Prometo um dia voltar e continuar a vida. Vamos pras bandas da Bahia, no rumo de São Paulo. Se não der certo, se eu for preso aqui, vai ser até melhor. Pelo menos, ela e eles vão poder me ver, de vez em quando, e ter paciência de esperar.

Lá está ele, trepado. Já me viu. Será que está armado? Fala com os outros. Vai descer. Desça logo daí, seu filho de puta. Venha aprender a ser homem. E vem mesmo. Preciso atirar logo. Assim que ele chegar perto de mim. Não, vou primeiro dizer umas verdades e esperar a reação dele. Quando ele se peneirar, mando bala. Ai, filho duma égua. Vou te matar, bandido. A carta. Pura covardia. Queria me ver na merda. Mato, mato, mato. Olha os outros. Vão se meter na briga. Matei. Aposto que matei. Caiu. Está estrebuchando. Cachorros! Vou matar vocês também. Afastem-se. Cambada de cachorros! Ou mato ou eles me matam. Atiro e corro por aquele beco. Ganho as brenhas, corro feito bicho acossado, até a noite chegar. Vão me esfolar vivo, a mulher vai ficar doida, os meninos vão chorar. Eles são capazes de se vingar nela e neles, os malvados. E eu não vou poder fazer nada. Um dia, porém, vou me vingar, matar um a um. Não, é melhor me entregar logo, correr pra delegacia. Lá vêm os soldados e o delegado. Me deixem em paz, bando de covardes, sou só um contra vocês. Eles querem me matar, Seu delegado. Eu matei aquele bandido pra mostrar... Me soltem, filhos de puta. Me levem daqui, senão eles me matam. Prendam, afastem eles de mim .Magote de urubus! Quase morto e eles me batendo. Se não fosse a polícia... Também, não presta pra nada. Mas desta vez me salvou. Talvez até me mate de peia, como fizeram com Zeca Mariano. Coitado! Deram uma surra danada no pobre. Morreu todo quebrado e ensanguentado. Uns malvados! Só porque o desgraçado bebeu-bebeu e não pôde pagar a despesa. Precisava disso? Não precisa quebrar meus braços, não, seus cachorros.

Todo mundo olhando, parece que nunca viram cabra macho. Pois é, não engulo desaforo. Matei e está matado. Agora o safado está pra lá das profundas. Quem mandou ele arranjar encrenca? Agora estou com o sangue frio. Fiz o que devia fazer. Vou sofrer nas unhas desses outros urubus, mas um dia me solto. Lavei minha honra e a da mulher do prefeito. Ninguém vai mais acreditar naquela história. Vão me chamar de criminoso, é certo. Só porque matei aquele peste. Todo mundo vai ficar com pena dele. É assim o mundo. Só tem valor quem não presta. Defendi minha honra e meus direitos. Lavei com sangue. Não é direito, eu sei, mas não havia outro jeito. Ele escreveu a carta, inventou tudo, feito rapariga. Merecia mesmo morrer. E eu inocente, sem saber das tramóias do cabra. Eu nunca imaginei uma safadeza dessas. Esperava tudo, menos uma baixeza dessas. Esperava até que ele tentasse me matar. Atitude de homem. Se a carta não desse certo, se eu não fosse embora daqui, fugido como um covarde, ele me matava. Cabra ruim! Ou talvez não tivesse coragem. Covarde não tem coragem de matar ninguém. Manda matar. Ou arranja um meio de não mandar, como o sistema da carta.

O prefeito chegou a abrir meus olhos: olhe, ele vai mandar uma carta dessas pro Valdomiro. E com este não tem conversa. Mesmo sendo mentira. Eu ia morrer inocentemente. Desgraçado! Mas já está morto e não adianta mais pensar no caso. Agora é esperar pelo resto da desgraça. Quem nasceu pra penar, não adianta procurar felicidade. Desgracei minha vida, virei barata doida, bala zunindo nas oiças. Está tudo rodando que nem pião. Tudo uma desgraceira só.



2 - Doideira



Não pára de chover. Como nos invernos passados. E os presos trabalhando ao relento. Balaio de bosta de gado na cabeça. Líquido podre e fedorento escorria por minha cara suada, suja e endurecida. Eu e outros, desgraçados penitentes, açoitados pelos carcereiros malvados. Gritavam impropérios, como se fôssemos bestas de carga e devêssemos pagar os pecados de toda a humanidade. Ou limpar toda a sujeira do mundo. Quase todos inocentes. Quando muito, pecadores por necessidade. Eu, por exemplo, agi em legítima defesa. Aquele cabra mereceu a morte.

Vai ficar tudo molhado, vai virar tudo um rio, um grande rio barrento. E eu vou ser levado feito graveto. Assim, me lava o crime. Apenas uma vingança, porque aquela carta foi uma calúnia. Mais do que uma calúnia, uma emboscada. Com a carta nas mãos, o prefeito, antes meu amigo, se tornaria meu desafeto e me mataria. E sem eu de nada saber, inocente. Como eu iria corneá-lo, se lhe devia favores, se ele me dera a fazer serviços? Embora ele também me devesse favores. Elas por elas. Uma mão lava a outra. Sim, fui seu cabo eleitoral, arranjei-lhe votos e mais votos, de parentes e aderentes. Além disso, nunca me apeteceu sua mulher, mesmo sendo ela ainda bonita, nova e fogosa. Não nego: cometi mil desatinos, me meti em muitas fuzarcas, me embriaguei em demasia, em bares e cabarés. Tive cunhãs e muitos filhos deixei pelo mundo. Nunca, porém, me atrevi a mexer com moça-donzela e muito menos olhar para aquela mulher com olhos pecaminosos. Nem uma vez sequer lhe disse palavras de desrespeito. Quando com ela falava, era só: como vai a senhora? Bom dia. Boa tarde. Boa noite. Ela também (embora não saiba eu do coração de ninguém, porque, como diz o povo, coração é terra que ninguém pisa), ela nunca olhou para mim com intenções de traição. Seus olhares para mim eram sombrios. Nunca como os relâmpagos, que tudo alumiam e apavoram. E fazem da noite mais escura dia bem claro. E se sucedem os trovões, que assustam a natureza, rasgam o céu com estampidos e me amedrontam, como se eu fosse um pobre animal indefeso, perdido nesses ermos alagados e frios.

Tomei um susto medonho quando o prefeito me veio com a carta na mão, nervoso e enraivecido, as feições endurecidas, gaguejando. Fiquei também nervoso. Antes de ler o papel, pensei logo naquele lambanceiro de uma figa. Reconheci-lhe a letra, não tive dúvida nenhuma. Sosseguei, no entanto, quando o prefeito disse acreditar em mim. Logo, porém, me deixou apreensivo. “Tome cuidado então. Carta idêntica a esta vai chegar às mãos do vice-prefeito. E ele é valente como uma onça, mata sem conversa.” Virei o diabo na hora e pensei logo em matar aquele safado. Quando saiu o resultado do exame do manuscrito, criei coragem e mais raiva. Fui direto procurar o traiçoeiro. E fui armado. "Desça daí, seu escrivão, venha ver pela última vez sua carta de puta ruim." Ele desceu, atrevido, e foi me esbofeteando. Como se não bastasse o que já havia feito. Atirado sobre tábuas e pregos, vi tudo muito claro diante de meus olhos. Puxei a arma e dei um só tiro certeiro no peito esquerdo dele. Depois não vi mais nada, tudo escureceu. Como agora, com essa chuva grossa.

Eu vivia com medo de tudo, menino com medo de bacurau. Passados seis anos de prisão, convivendo com o cansaço, a tristeza, a dor, embriaguei-me mais ainda. Não via motivos para vestir as roupas nem falar as falas dos meus semelhantes. Desejo de fugir, sumir. Antes, porém, veio o indulto. Voltei para casa, enfim. Mas que liberdade era aquela, se eu não me sentia liberto? Tinha medo até de gato em cima do telhado. Um dia uma zoada nas telhas fez meu filho acordar e acender o lampião. Vendo a luz nas paredes e nos cantos do telhado, pôs-se a gritar. Via estrelas no céu. Corri, apavorado. Para mim, o safado, ressurgido do cemitério, havia destampado minha casa, para vingar sua morte.

Não tenho mais sossego. É tempestade dentro de mim, é tempestade lá fora. É mata caindo aqui, é boi correndo maluco. É rio que vai enchendo, é lama por toda parte. É perdição de quem se perdeu, é tristeza que não tem fim. É a vida virando perau, é rio cheio e barulhento. É lama, ribanceira derrubada, levada pras lonjuras. E esta doideira de correr, estando parado, porque não sei se sou eu ou o rio quem corre. Se sou eu que corro maluco, dentro da treva e da tempestade. Se é o mundo que gira doido, com medo de babau, jaguara e caipora.



3 – Praga de urubu



Você caiu, enfim. Agora vai apodrecer debaixo desse aguaceiro. Queimado pelos raios, açoitado pelos ventos, levado nas ribanceiras, feito boi morto na enchente. Vai bater no fim das águas. No fundo do mar, lá onde moram as grandes serpentes. Nem por encanto você será salvo. Nem por milagre. E não adianta se valer de seus santos. Olhe o céu clareando, os trovões assustando a natureza. Olhe como a chuva está grossa, seu valentão. Agora trema de frio e medo. Agora agüente as conseqüências de seu crime. Quem não pode com o pote, não pega na rodilha. Quem mandou você fazer aquilo? Quem lhe deu o direito de tirar a vida de um pobre vivente? Quem mandou tirar a vida daquele coitado? Ele só queria ganhar dinheiro como você ganhava, para sustentar a família, tão grande quanto a sua e a de tantos outros. Quem mandou, heim? Você não tinha o direito de fazer uma desgraceira daquelas. Por que só você queria construir prédios e ganhar dinheiro? Por acaso ele não era tão bom artífice, tão pai de família, tão humano como você? Se escreveu a carta, foi por necessidade de salvar a pele. Por que um crime maior para vingar um crime tão curto? Matar por causa de uma simples carta! Você tem mesmo certeza de que não namorava, pelo menos com os olhos ou apenas com o desejo, a mulher do prefeito? Você nunca foi flor que se cheirasse. Lembra-se daquela sua vizinha? E da irmã de sua própria mulher? E da filha da velha broeira? E de tantas e tantas outras? Ou já está broco? Não sabe mais o que fez? Bote o quengo pra funcionar. Não se faça de mouco pra melhor passar. Você nega, por acaso, ter engabelado aquela moça da Serra? Aquela a quem você disse ser solteiro e rico fazendeiro da Paraíba. Sua conversa fiada iludia qualquer mulher. Você era sonso, sempre foi sonso. Todo o seu tempo de prisão não passou de uma grande sonsice. Até granjear fama de cabra trabalhador e conseguir livrar-se da bosta na cabeça. Mas pra quê? Pra viver se embriagando, desrespeitando as famílias, humilhando a mulher, envergonhando os filhos? Lembra-se de uma vez ter saído nu, bêbado, facão em punho, derrubando cocos dos coqueiros públicos, só por malinagem? De você não se podia esperar coisa boa. Você já nasceu malfeitor. Instinto perverso. Matava animais só pra ver quantas tripas eles tinham. Malvado! E a pisa dada em seu filho, com o chiqueirador? Saiu sangue das costelas do miserável. E você urrava de ódio, animal doido, como se batesse num inimigo ou numa pedra. Você sempre foi ruim. Não vale o que a gata enterra. Lembra-se de ter jogado fora o escapulário que sua mãe lhe deu quando a Santa Missão visitou o interior? Agora precisa de ajuda. Mas ninguém virá socorrê-lo. Todos o abandonaram, como se você estivesse atacado da peste. Agora vai morrer sozinho, feito leproso, cão sem dono. E só não lhe atiram pedras porque já bastam as que caem do céu. Castigo, castigo, seu danado! Agora se ate sozinho. Sua vida virou uma doideira. Aguente o rojão. Matar não é nada, ruim é essa doideira dentro da cabeça e esse castigo da natureza. Lembra-se da mulher do finado, gemendo e chorando? E você dizia: matei e está matado. Pois ela, pra se vingar, desejou a você a pior de todas as mortes. Você não acreditou e ainda disse: praga de urubu não mata cavalo. Agora aguente, filho de uma égua. O morto talvez esteja em melhor situação. Morreu sem pensar na morte e você vai morrer se agarrando aos últimos galhos da vida. Agora não chame a vida de tirana. Não adianta se encostar nos troncos das árvores, se esconder detrás das moitas. Onde estiver, a desgraça irá buscá-lo. É o destino. A desgraça mora até nos cafundós de judas. O fundo das grutas. Não tem por onde escapulir. Olhe pro céu e veja a vingança vindo do alto. As nuvens vão se despencar, as estrelas vão cair sobre a terra. Tudo vai virar mar, como predisse o Bom Jesus Conselheiro. Não adianta se lamentar, nem botar a culpa nisso ou naquilo. Você vai pagar caro pelo seu crime. Por todos os seus crimes. A morte daquele homem foi apenas desembocadura do grande rio de seus erros. Você se lembra das aves mortas por sua baladeira? Não, não se tratava de brincadeira. Você matava por malvadeza. Quem via a sua frieza, nem imaginava que você só faltava se cagar de medo de babau, caipora e jaguara. E o medo dos coitadinhos dos bichos? E não é só isso. O rosário é grande. As galinhas esfoladas, como se não bastassem os animais maiores. Jumentas, cabras, novilhas. Você, capiau sem eira nem beira, maculava a natureza. E as meninas que você obrigava a se despir no meio do mato, detrás das bananeiras, nas beiras dos rios? E já frangote, as saias que você arribava por pura sem-vergonhice?

Você vai pagar caro por tudo. Vai apodrecer feito fruta na lama e se encher de bicheira. Os urubus vão bicar seus restos, quando a chuva passar. Se antes seu corpo não for levado pelas grotas, pelos rios, para o fundo do mar. Porque aquela prisãozinha não significou nada, não valeu nada. Não deu pra pagar seus pecados. Agora, sim, é que vem castigo. Você vai virar molambo. Se assim não fosse, você muito ainda iria andar ao léu. Ovelha desgarrada. Retirante. Carcaça arrastada pelas onças. Fuçada pelos porcos. Esquecida na lama. Pior, muito pior. Você vai ficar inteiro, cururu inchado. Cascabulho. Muito pior.
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sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

O engenho poético de Batista de Lima (Nilto Maciel)



O terceiro volume de poemas de Batista de Lima é a reunião de dois livros. No “Engenho”, também título do conjunto, buscou pintar ou descrever um pedaço histórica e sociologicamente importante da zona rural cearense. E pintou as personagens e descreveu partes do cenário do engenho de cana, como se, dirigindo seu discurso à cidade, pretendesse comovê-la. Seu pincel denuncia, como o Picasso de “Guernica”. Sua pena é um grito, como o de Jorge Amado dos primeiros livros.

Todavia, talvez seja melhor lembrar um poeta. Outro Jorge, o de Lima. Aquele da “Mulher proletária”. Até pela nordestinidade de ambos. Em Batista de Lima há instantes concretamente revolucionários: “Caldeireiro caldeireiro / por tua mão passadeira / passa o ouro da cana / do sítio à mão do patrão”.

O poeta não é, porém, um pregador de rebeliões, um pasquineiro metido a poeta, um desses bons rapazes que confundem arte literária com discurso político. E certamente é um homem voltado para o hoje das lutas e o amanhã das transformações, como o são sempre os bons escritores. Sua linguagem é translúcida, sem ser pobre. A terminologia do engenho está presente em todos os poemas da primeira parte do livro. Com isso, Batista de Lima demonstra que a boa literatura pode ser feita com a língua falada, viva, nacional e regional. E que seus pés estão enfiados na terra, feito raízes, e sua alma vibra com a alma do homem lavrador, nordestino, secularmente sofrido.

Batista utiliza métricas e formas poéticas variadas, sobretudo aquelas herdadas do cancioneiro ibérico pelo nosso cordel e pela poesia sertaneja e popular. Apesar disso, elabora também sonetos, embora fugindo aos cânones clássicos.

Enquanto “Engenho” é um longo poema composto de vários pequenos poemas, o que não constitui nenhuma novidade, no segundo livro, ou na segunda parte, Batista abre o leque de suas inquietações e, liberto dos propósitos ideológicos e lingüísticos que nortearam a feitura do primeiro, volta-se até mesmo para a metapoesia. Já não se dedica aos flashes do canavial. Agora vaga pela casa e pela infância, pela terra vasta e pela palavra “vasto”, pela geometria e pelo sonho. Faz-se poeta de outras dimensões e engendra poemas de linhagens e temáticas diversas. E, mais uma vez, sabe utilizar todas as cores, todas as técnicas e toda a magia que a palavra escrita pode ter nas mãos de um poeta.

Demonstra Batista de Lima que a arte poética prescinde de gráficos e invenções “geniais” Para ela basta um material primitivo e eterno – a palavra. Não a palavra isolada, não o quebra-cabeça, não a charada, mas a frase, o texto, o discurso, o verso. Ela, a palavra, e o exercício do poeta.

São tantos os bons momentos de Engenho que seria pouco eleger apenas quadros como “O Morto”, “Escola de Pedras” e “Poema”. E também “Garimpagem”, pela sua dialética. Outros e outros poemas se colocam lado a lado destes, pela poesia neles contida e pela engenharia com que foram elaborados.

Há em Os Viventes da Serra Negra dois poemas fundamentais da obra de Batista de Lima: “Agri/cultura”, espécie de poema-roteiro, e “Mirança”. Talvez um volume de poemas com o primeiro título pudesse ser confundido com um manual do lavrador. Já o segundo, além de belo, é novo, ou renovado. Mas, pluralizado, serve de título à segunda parte do livro.

Oriundo do campo, Batista está atado ao espaço rural. Em sua escrita, vocábulos como “chão”, “casa", “jardim” e "alpendre" se repetem por necessidade da própria linguagem poética. A casa ora é um todo, como a do avô, que “tem histórias que o vento/ esqueceu nas cumeeiras”, ora é vista em cada um de seus compartimentos: “No quintal da casa/ uma outra casa começa”. A casa, entretanto, situa-se dentro do sítio, do Taquari, que se ilha em uma terra maior – Lavras da Mangabeira. Ao redor da casa, o canavial, as pastagens, os currais, o chão de massapê, onde os homens encalham feito navios. E ainda os campos, as léguas, o açude, o rio que seca, a “estrada que vai/ que apenas vai/ que de tanto ir/ chega ao pé de mim”. Na cidade, o grupo escolar, a igreja, a praça, as calçadas. Nesse mundo dos viventes da Serra Negra, onde “as mulheres só têm/ coração para seus filhos/ ossos para seus homens”, o canto é um desencanto. A casa, de paredes de barro, tem telhados, chaminé, alpendre, cumeeiras, quintal, poleiro e um poço velho, “vertiginoso espelho/ onde mora meu medo”. Antes do dentro, a porta, depois o canto da porta, onde “o último cachorro deixou seu jeito”. Pelos quartos, baús de carinho, retratos, chapéus, abas, camas, mesas, gavetas. E o último quarto, as dobras da casa, “a dor/ que no morador mora”. Por fim, “dentro do dentro do quarto/ o centro de onde parto”. E lá está o menino, o poeta, com suas visões.

Noutra geometria, a do apartamento, no espaço roubado à casa, aos varais, às portas abertas, a Vitalina, porque não é mais tempo de cocadas, nem de tição, fogo e brasa, nem de caco, nem de coco, num espaço sem raízes, porque a nova morada não tem chão e o menino está desterrado de seu Taquari, o poeta se lamenta: “No mundo do apartamento/ não cabe a casa”. Aquele espaço ficou para trás, agora é apenas “uma dor sem jeito”. Ou ficou para dentro, fincada no fundo, feito estaca, doendo: “A casa tem raízes que se aprofundam/ no chão da alma”. A poeira do tempo, os ponteiros do relógio.

É a outra tecla da poesia de Batista de Lima, batida com vigor e beleza em “Mirança”.

Mas, como contar o tempo sem pisar o chão? “Os meninos subiram a serra/ para conhecer o céu”.

Em tudo, a busca da palavra, do poema. Da miragem? O poeta procura uma palavra, possível, até mesmo trivial, vaidosa dama. Como encontrá-la? Pegando-a, “pela surpresa, no bote”, em luta de caçador e caça, de fera e presa.

Em “Palavras”, toda uma confissão: “Minha primeira função/ foi ouvir palavras/ batidas do coração”. Palavras colhidas à terra, ao espaço, e ouvi-las, tecê-las, repeti-las, poli-las, com o tempo.

Batista de Lima, polidor de palavras, poeta.
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