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segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Til Ananias e seus Policarpos (Nilto Maciel)


Afagado pela língua de um cão, Policarpo misturava nos olhos imagens antigas ao furor do patrão. Por acaso estais duvidando da fama de Til Ananias, autor de autos e farsas, relações e epopéias, e mil outras maneiras de inventar a vida de sanchos como tu? Como ousas afirmar a negação? Incompetente, cego e maneta, como é possível não me encontrares neste cosmos gutenberguiano?

Policarpo recordava os primeiros passos em busca do afamado autor. Depois a angústia maior. Na calçada, meninos brincavam, surdos às palmas tímidas e frias. Talvez não houvesse ninguém no casarão do velho Ananias. Batia e escutava o eco das palmas cantadas. E, quando ia bater novas palmas, uma bola de meia atingiu-lhe o rosto. Ao mesmo tempo, um rosto de bola abria meia porta, devagarinho e assustado.

— Que deseja?

Atarantado, Policarpo não sabia se devia se voltar para os moleques ou fugir daquela voz de mofo e sono. Preferiu fechar os ouvidos às molecagens da rua. E pôs-se a gaguejar. Um escritor muito atarefado, acho que é este o endereço, a cabeça muito cheia de pesadelos, andava perdido no meio das letras de hebdomadários e resenhas, as mãos trôpegas, colunas sociais e linguísticas, necessita de um ledor, digo, de um secretário, ativo, inteligente, que saiba ler as cento e tantas, não sei, línguas faladas e escritas, para recortar o seu nome, deixe ver, Til Ananias, escritor famoso, autor de pasquins e outras inutilidades.

Os moleques ouviram, calados e tristes, a bola esquecida entre as patas de um cão sonolento, o tímido falar de Policarpo.

Quando o sono desembolou-se das patas do cão, os dois senhores entraram a tratar dos detalhes do ofício de recortar periódicos.

Uma hora depois, a mesma fatídica bola de meia molhada acertou a outra face de Policarpo. Mais uma vez nada reclamou. Já contratado, precisava ir logo à banca de jornais.

Ainda aturdido, Policarpo regressou ao casarão. Sobraçava alguns quilos de jornais e revistas. Na calçada, os garotos riam e gargalhavam. Um homenzinho amarelo batia palmas diante do portão de Til Ananias.

— Palmas para o campeão das palmas! – conclamava um dos moleques.

A rua inteira se encheu de sons de palmas. Mulheres de todos os gêneros acorreram às janelas, aflitas. E gritavam: parem com isso!

A porta se abriu e o velho meteu a língua no ouvido esquerdo do novo Policarpo. Não precisava mais do primeiro. Fosse atrás de outro emprego.

— Trouxe o anúncio?

O rapaz estendeu a senha amassada.

— Comece a pesquisa a partir de 31 de março de 1917.

O novo empregado não se assustou, mas teve a ousadia de fazer uma pergunta.

— Porque esta é a data de meu nascimento.

E meteram-se os dois entre os jornais.

— Já encontrou alguma coisa?

— Nada, senhor escritor.

E se enfurnaram tempo a fundo. Til Ananias pelas edições futuras, Policarpo pelas passadas – útero letrado.

— Em que data você está?

— 30 de janeiro de 1945.

De repente, um grito. Policarpo tremeu e parou. Ameaçavam-no garras homicidas de manchetes. Sufocavam-no mãos negras de notícias terríveis. Desmaiou e, inconsciente, se viu caminhando de encontro ao velho escritor.

— Senhor, achei uma mentira.

Til Ananias iniciava o século XXI, carregado de cãs e suores, pendurado num caibro podre.

— Diz que faleceu hoje, vítima de um choque elétrico, o fracassado escritor...

— Continue.

— Til Ananias.

Sufocado pela fumaça que vinha da sala onde estavam depositados os jornais da década de 20, o novo Policarpo acordou. Buscou fugir do passado. O fogo devorava, célere, os anos, reduzindo-os a cinza. Apavorado, o rapaz correu e, pisando as letras, alcançou a rua. Diante de si, o primeiro Policarpo ainda chorava o emprego perdido, alheio aos moleques que gritavam: vamos chamar os bombeiros para apagar a História. E mais gritaram quando viram o milagre acontecer — a fusão dos dois Policarpos.
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Salomão Sousa: A lógica do pessimismo (Nilto Maciel)




O Susto de Viver e A Moenda dos Dias, de Salomão Sousa, foram reunidos num só volume. No primeiro, o poeta, impossibilitado de conter as palavras, a poesia, anuncia o seu drama: a cidade, que o chamou do campo (e esse tema estará mais presente em outros poemas), o assusta, o persegue, o amedronta, como se ele fosse um cão vadio. Não sabe se se quede como árvore em descampado açoitada pelo vento que passa – a vida a fluir – ou se vá, sem rumo, embora. Constata: “Sua sina, menino,/ é de árvore/ em descampado”. O silêncio fala ao seu redor, amedrontador. O poeta pára, enquanto tudo se movimenta, corre. O poeta se assusta da própria imobilidade: “Estendo os olhos/ e há o pedido de não ver”. A cidade (a vida) estende-se como um rumo, caminho sem fim. Mas cadê coragem de enfrentá-la? “A valentia/ conhecida de mim/ arrefeceu”. Mais do que perigoso, o existir ofende. É o medo de viver. O título esconde a palavra e a constatação mais comprometedora. No entanto, não sendo possível escamotear a alma no poema, a confissão sai clara: “Compromete/ olhar sobre os muros”. Do outro lado podem estar escondidos o fruto proibido, a serpente enroscada na árvore, Eva desnuda. Os terrores infantis, ainda recentes, não se apagam facilmente. Por mais que tente trair o próprio medo, ainda assim será fatal o susto. Amarra-se para segurar-se: “Teço a corda com a própria pele”. O corpo (o ser) serve de prisão, de degredo. O mundo é um perigo, abismo onde se precipitam os seres. É preciso fechar-se em si, caramujo. Qualquer impulso irracional leva à queda, como se nunca houvesse dado um passo. Todo passo será falso: “Atiro-me às escondidas/ e os charcos/ me atiçam as quedas”.

Na segunda parte – “Dados” – a mesma relação de forças: a pedra (o ser) que gira é atirada, sem destino. A vida é um jogo: o impossível esconde-se detrás das facetas do dado. O azar dorme nos esconsos do cubo. Em si mesmo o dado não fica, não se imobiliza: “A pedra/ atirada/ soa a queda”. É patente o sinal concreto da construção desses poemas, concretismo por metáforas: jogo-vida, pedra-ser.

O segundo livro, antes publicado separadamente. também se divide em duas partes. Numa – “Ladainha da Cidade Dura” – o poeta, de forma mais objetiva do que nos poemas já focalizados, individualiza a cidade, dá-lhe nomes: Ceilândia, Brasília. Ocorre uma inversão ótica: em vez do indivíduo perdido nos meandros da cidade, agora a humanidade e a cidade aparecem na pintura poética ampliadas, obscurecendo o indivíduo. O pintor sobe aos céus e de cima vê o todo, e não mais o indivíduo apenas. Ainda assim, o mesmo medo de abrir os olhos, olhar sobre os muros, correr, soltar-se: “Resisto à vontade/ de soltar fora os sapatos,/ de soltar fora os cachorros,/ de soltar fora as ruas.

Na segunda parte – “O Ser ao Ser”– o lado oposto dessa cidade de medo: o campo de onde proveio o menino assustado, em busca de si mesmo. Entretanto, apenas um reflexo do passado, porque são as ruas por onde passa que lhe despertam a necessidade de escrever. Nasce em seus ouvidos aquele silêncio antes visto nos outros. O silêncio das coisas é uma auréola protetora. Para onde o poeta for conduzirá consigo o silêncio.

A cronologia sentimental de Salomão Sousa obedece a uma lógica do pessimismo. O universo pode ser desigual no tempo e no espaço, porém o indivíduo é apenas um dado, “pedra atirada dentro do rio”. Se antes “entendia cada silêncio que estivesse por perto”, agora “é impossível passar ileso por qualquer despensa do vazio ou do silêncio”. Se antes conservava “um medo leve”, agora “o gume da tristeza não fende o medo”.

A linguagem pode mudar, porque mudam o tempo e o espaço, todavia ao personagem nenhum historiador poderá transfigurar. Passa o vento, não a arvore. Passam os dias, os dentes da moenda, não o homem triturado pela vida. Passam as nuvens, os pássaros e o rio, não o menino a quem o bicho-papão fez estremecer.

E finalmente: tudo passa, menos o homem e a sua poesia.
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