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segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Babel (Erorci Santana)




Unanimemente reconhecido como um dos mais expressivos criadores da moderna ficção brasileira, o cearense Nilto Maciel, radicado em Brasília, editor da revista Literatura, traz a público os contos reunidos em Babel, que em vários momentos constitui-se numa tentativa de restauração da ordem num mundo caótico e apocalíptico, onde os seres foram privados de seus balizamentos existenciais. Assinalam e antecipam o fracasso da civilização, o fim do ordenamento racional. Daí seu enredo insano e desfecho quase sempre trágico. Escritos nos anos de 1975/76, engavetados por imerecido pudor, reescritos, burilados e finalmente dados à fruição, curtos, cortantes e desestruturadores, esses contos de Nilto Maciel revelam excelências narrativas e causam não poucas estupefações.

(Jornal O Escritor, da União Brasileira de Escritores, São Paulo, SP, outubro de 1997)
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sábado, 7 de outubro de 2006

O fim do mundo de Sinhá (Nilto Maciel)



A peste havia levado para a terra dos pés juntos quase todo o povo do lugar. Menos os filhos ingratos, sem amor ao chão, e os mais duros, de corpo fechado. Muita carniça para os urubus. Uma praga de bicho morto. Plantação nenhuma resistiu. A terra se esturricou. Quem escapou e não esperou pela morte, fugiu para bem longe, tomou o oco do mundo. Menos Sinhá. Essa ficou para enfrentar o cão. Comia raiz, qualquer coisa da terra nascida. Gafanhoto, formiga, besouro. Depois apareceram, não soube ela como, pés de pau, porco, galinha, toda sorte de bicho. Porém de quase nada disso ela se servia. Continuava a enfiar as mãos trêmulas na terra, à cata de comida do chão. Se enxergava ainda? Divertia-se a espiar as galinhas comerem minhocas, os porcos fuçarem a lama e os frutos apodrecerem em cima da terra. Sozinha no sitiozinho, na choupana velha, dos bons tempos, conversava com os bichos, a chuva, os ventos, a noite, os meninos que malinavam no terreiro e metidos no mato. Não havera de abandonar a terrinha, porque, o que de que carecia, ela dava em abundância. Dava e levava. Nas suas falas, porém, Sinhá muito se queixava de abandono e rogava pragas aos que a deixaram só, como se estivesse leprosa. Maldizia-se dia e noite, a gritar e blasfemar em miúda voz. Talvez não a ouvissem. Certamente viviam por ali, enfiados nas cabanas escondidas ou nas roças distantes. Tangiam porcos e galinhas, que não cessavam de fuçar o chão, em tempo de derrubar as casas. Ouvia de madrugada o canto dos galos. Sim, eles viviam por ali. E nunca se mostravam. Tinham medo da lepra que ela não carregava. Orgulhosos! A terra havia de papar um a um amanhã, antes da safra, depois de São João.