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segunda-feira, 6 de novembro de 2006

A guerra da donzela (Nelly Novaes Coelho)


Girando em torno de um pretenso rapto de moça, feito na calada da noite, a efabulação vai revelando (através do alvoroço e medo que sacodem uma pacata cidade no interior cearense, palco do acontecimento) os costumes e preconceitos que fundamentam a estrutura e profundidade em que atua o grande tabu da civilização cristã: o da violenta repressão ao sexo.
A propósito desse rapto, o narrador vai registrando, em flashs, as cômicas reações dos habitantes da cidade, desnorteados e apavorados com o gesto de liberdade que afrontava a solidez de seus costumes. Nunca se soube quem eram a “donzela raptada” e seu “raptor”. Bastou o boato para que, num crescendo cômico-trágico, se criasse uma situação de guerra, com a formação de um batalhão de voluntários, comandados pelo alucinado Francisco Sombra. É extraordinária a arte com que o narrador trabalha sobre o nada (em matéria de fatos reais), consegue criar situações que se sucedem, cada qual mais absurda ou inverossímil do que a outra, mas aceita por todos como verdadeiras, devido ao clima de alucinação em que todos mergulharam. Inclusive com o aparecimento de seres monstruosos e ameaçadores: o gigante Gorjala, o porcão preto, o ovão do tamanho de uma jaca, o cururuzão e outros monstros que, gerados no nível profundo do inconsciente coletivo, correspondem à grande ameaça representada pelo tabu do sexo que fora violado. Violação que a todos causa repulsa e medo, porque ao nível do inconsciente é o que todos ansiavam por cometer. É essa, sem dúvida, uma das mais contundentes denúncias, feitas pela literatura contemporânea brasileira, acerca da violência contra o ser humano que, há séculos, vem sendo cometida pela repressão sexual, que está na base da sociedade tradicional.

(Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira, p. 873, 4.ª edição, EDUSP, Editora da Universidade de São Paulo, 1995)
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A perseguição (Nilto Maciel)



Após perambular por ruas escuras e desertas, eu só queria dormir ou descobrir um modo de afugentar os urubus que me bicavam a solidão. Devia ser mais de meia-noite. Não se via uma só pessoa na rua e eu caminhava sem pressa. De repente pressenti que alguém me seguia. Ouvi-lhe a zoada das pisadas. Tranquilizei-me: certamente outro solitário vagabundo com quem poderia conversar por alguns minutos de caminhada. Pouco me importava fosse uma puta desleixada e doente, um bêbado sem rumo e delirante, um mendigo à cata de pouso e mudo. Olhei de esguelha e achei tratar-se de homem de passo firme e boa aparência. Andava na mesma vagareza com que eu passava pelas casas dormidas. Estranhei não se aproximasse um metro sequer de mim E se se tratasse de um assaltante? Deveria enfrentá-lo ou correr? Meti as mãos nos bolsos. Nada me faltava ainda: chaves, cigarros, lenço, documentos, dinheiro. Apressei o passo, por cautela. Logo, porém, mudei de idéia. Seria mesmo um mendigo e não me custava nada dar-lhe uma esmola e um boa-noite. Também logo desisti da piedade. Devia ser um estrangulador, um maníaco qualquer.