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quarta-feira, 8 de novembro de 2006

O julgamento (Nilto Maciel)




A desgraça, descarga megatômica, se abateu sobre nós, de forma impiedosa. Deus nos castiga com seu chicote de ferro, como se tivéssemos cometido infinitamente os pecados das Tábuas da Lei. E eu, que fiz eu, que não me lembro? Terá sido pecado tão terrível todo o sofrimento que sempre tive? Esta série incontável de malogros que não consigo esquecer? Ou, meu Deus, a rebelião que arquitetei e cometi contra o poder de meu pai? Mas nunca o ofendi publicamente, nunca o esbordoei, nunca sonhei a sua morte. Se o ofendi, o fiz em silêncio, nas longas noites de insônia, em sonhos e pesadelos, histórias horrorosas que jamais inventei, e apenas fluíam como águas da terra, incontrolavelmente. Ou terá sido aquela mancebia tão conscientemente esquecida, eu tão jovem e necessitado de amor, de três anos apenas, com a pobre Raquel, coitada, onde estará? Ou a prodigalidade vivida por tanto tempo, a esbanjar como não devia, a deixar de dar a eles, meus pais e irmãos, o tanto precisado? Ou esse casamento malfadado, com essa menina tornada adulta tão de repente? Ou essa fuga precipitada e alucinante, como um bandido caçado insistentemente, para este fim de mundo? Ou o abandono a que lancei meu querido Aécio, para morrer só como um leproso? Não sei, não sei. Ou terá sido tudo isso, todo esse rosário de erros? Estou desgraçado pelo resto da vida. Vou penar ainda mais como um vil pecador. Morrer e parar nas profundezas do Inferno. Não, vou cair eternamente nas labaredas infinitas, inteiro e consciente de minha perdição. Mas, meu Deus, tenha piedade de mim, ajude-me, socorra-me, livre-me dessa dor, desse tormento, desse momento e das dores maiores que me esperam. Dê-me um fim sem dor, perdoe-me todos os pecados e leve-me para sua morada. Seja piedoso! Sou um pobre ser humano ignorante do que faz e fez. Se errei, não foi por querer, mas por não saber. Eu queria ser bom, eu sempre quis ser bom. Eu juro, era assim.

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

A guerra da donzela (Nelly Novaes Coelho)


Girando em torno de um pretenso rapto de moça, feito na calada da noite, a efabulação vai revelando (através do alvoroço e medo que sacodem uma pacata cidade no interior cearense, palco do acontecimento) os costumes e preconceitos que fundamentam a estrutura e profundidade em que atua o grande tabu da civilização cristã: o da violenta repressão ao sexo.
A propósito desse rapto, o narrador vai registrando, em flashs, as cômicas reações dos habitantes da cidade, desnorteados e apavorados com o gesto de liberdade que afrontava a solidez de seus costumes. Nunca se soube quem eram a “donzela raptada” e seu “raptor”. Bastou o boato para que, num crescendo cômico-trágico, se criasse uma situação de guerra, com a formação de um batalhão de voluntários, comandados pelo alucinado Francisco Sombra. É extraordinária a arte com que o narrador trabalha sobre o nada (em matéria de fatos reais), consegue criar situações que se sucedem, cada qual mais absurda ou inverossímil do que a outra, mas aceita por todos como verdadeiras, devido ao clima de alucinação em que todos mergulharam. Inclusive com o aparecimento de seres monstruosos e ameaçadores: o gigante Gorjala, o porcão preto, o ovão do tamanho de uma jaca, o cururuzão e outros monstros que, gerados no nível profundo do inconsciente coletivo, correspondem à grande ameaça representada pelo tabu do sexo que fora violado. Violação que a todos causa repulsa e medo, porque ao nível do inconsciente é o que todos ansiavam por cometer. É essa, sem dúvida, uma das mais contundentes denúncias, feitas pela literatura contemporânea brasileira, acerca da violência contra o ser humano que, há séculos, vem sendo cometida pela repressão sexual, que está na base da sociedade tradicional.

(Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira, p. 873, 4.ª edição, EDUSP, Editora da Universidade de São Paulo, 1995)
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