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sábado, 10 de março de 2007

A questão religiosa em Eugénio de Andrade: da palavra-ser à utopia da palavra (António Joaquim Oliveira*)

(Eugénio de Andrade)


«Do sangue nascem os deuses
que as religiões assassinam.
Ao sangue os deuses regressam
E só aí são eternos»
Vergilio Ferreira, Aparição


Quase todas as obras de um artista nascem da junção entre a experiência vivida e a sensibilidade criadora, que permite ao eu criador transpor as metáforas obsessivas do seu eu social para o seu mito pessoal, ocasionando-lhe um estado de devaneio («rêverie»). Desta forma, ao procurar as metáforas obsessivas da obra eugeniana, na tentativa de definir o seu mito pessoal (ou mitos pessoais ou as suas utopias), verificamos que a questão religiosa não representa, por assim dizer, um mito pessoal. Na verdade, para Eugénio de Andrade, a religião, tal como ela é vista pela comunidade cristã, nunca foi uma preocupação, ou, se foi, a sua preocupação consistiu em tentar conseguir demonstrar que ela subjuga demasiado o ser humano.
 

quinta-feira, 8 de março de 2007

Sobre o inconsciente (Nilto Maciel)



Cornélio Basso fez uma pausa. Agarrou o copo e o levou aos lábios. Na platéia houve inquietação. Alguém tossiu. Da primeira fila de cadeiras pareceu sair um homem agachado, ou pequeno. Uma criança, talvez. Pôs-se de quatro, de costas para o orador, no início do corredor atapetado. Cornélio voltou a falar. Os desejos recalcados não deixam de ter uma existência no inconsciente. No entanto, a platéia se mostrava inquieta. Ouviram-se sussurros. O homem agachado pôs-se a andar pelo carpete vermelho, rumo à saída. Subiu o primeiro degrau, caminhou, subiu o segundo. No inconsciente os desejos inconciliáveis podem coexistir. Na primeira fila uma cabeça olhou para trás. O fugitivo já ia quase ao meio do corredor, a passos lentos e cadenciados. Os desejos inconscientes não são modificados nem pela realidade exterior nem no decorrer do tempo.