Agora que estamos envelhecendo, Ismália, posso ter tua mão entre meus dedos enquanto penso que talvez seja improvável que me abandones, porque afinal continuo gordo e lento, mas fiquei velho e ninguém repara mais em mim, e tu também – embora tenhas conservado as medidas de solteira – perdeste o viço da pele; agora que provavelmente muitos homens já não te olham com desejo, posso ficar mais tranqüilo. É verdade, Ismália, que se torna difícil acostumar-me com o sossego, quando por vinte anos sofri, esperando que cada dia fosse o último, que me dissesses Estou farta, e batesses a porta sem mesmo levar tuas coisas. Nem quando estiveste grávida fiquei certo da tua permanência em minha casa; pelo contrário, a cada enjôo ou irritação sentia-me culpado e te levava a passeios, e te achava aborrecida comigo, pensando no que eu poderia ter feito de errado, e depois do parto, quando esperei que ficasses mais gorda, recuperaste em pouco mais de um mês a silhueta, apenas teus seios cresceram, e isso te fez ainda mais bonita. Bonita, apesar do ódio que sentias ao acordar com o choro da criança querendo mamar – muitas vezes temi que sufocasses o menino, tão enraivecida acordavas, a camisola mostrando um seio, os cabelos desalinhados. Quando teu filho se acidentou, aos quatro anos de idade, e não voltou do hospital, tive certeza de que partirias. A morte da criança era motivo suficiente para que dissesses que nada mais te ligava a mim (e eu poderia responder que o menino nunca fora uma ligação entre nós, pois não era meu filho), mas nem assim me deixaste.
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sábado, 4 de agosto de 2007
sexta-feira, 3 de agosto de 2007
Um passarinho (Nilto Maciel)
Viviam numa casa de campo Mateus e Maria. Às vezes ela o chamava de velho, quando ele dizia ou praticava tolices. No entanto, esta história teve início assim: Um gavião ia ao encalço de um passarinho. Na busca de salvação, a caça desceu mais e mais e avistou uma casa. Voavam sobre as copas das árvores, quase a tocá-las. E se a casa estivesse fechada? Arriscaria entrar por uma brecha da porta ou de uma das janelas e, assim, escaparia das garras do predador. A casa se aproximava mais do coitado. Entretanto, as janelas pareciam escancaradas. Logo, o gavião também invadiria a casa. Voava o passarinho já quase sem forças. O pio agudo do gavião soava nos ares. Não havia outra saída, quer dizer, outra entrada, a não ser a janela. Súbito o choque, a dor, o desmaio. Havia um vidro na janela.
Em outra ocasião, Mateus contou a história assim: Perseguido, assustado, em busca de abrigo, ninho, comida (suposições), ofuscado pela luz do Sol, pela neblina (não lembrava mais a hora e a estação do ano), um passarinho esbarrou no vidro de uma janela. O ruído provocado pelo encontrão despertou o dono da casa. Seria ladrão quebrando o vidro? Pedra jogada por moleque? Cauteloso, dirigiu-se à janela. Não, o vidro permanecia intacto, apesar de maculado de sangue. Olhou para o lado de fora: Nem ladrões, nem moleques. No chão, ao pé da janela, agonizava um pássaro. Chamou Maria. Precisava de ajuda.
A mulher contava a segunda parte da história de outro modo: O vento açoitava portas e janelas, em prenúncio de chuva. Mateus passeava pela casa, inquieto. Aproximou-se da janela, a resmungar: “Essa ventania não pára”. Maria queria ouvir notícias na televisão, saber de vendavais, furacões, tempestades, porém o vento atrapalhava e o marido não parava de grazinar. Sentia dor? Não, mas precisava de ajuda.
O homem correu até a sala, abriu a porta, aos gritos, e se precipitou no jardim. O pássaro se debatia, no chão. O vento zunia nas árvores. Formigas se acercavam do corpinho. Uma dúvida ocorreu de imediato: Abandonava a avezinha ou lhe dava socorro? À porta, Maria observava a cena e fazia perguntas. Acocorado, o homem levou as mãos ao chão e, com cuidado de pai, ergueu a criatura à altura do peito. O passarinho piava sem parar.
Para Maria, mal se aproximou da ave, Mateus se ajoelhou e, quase a chorar, se pôs a dar consolo ao moribundo. Acolheu-o nas mãos, ergueu-se e voltou para casa, a perguntar pela gaiola. Tempos passados livrara um pássaro mantido na prisão. E a gaiola, por que não a destruiu? Porque não havia mal nenhum nela. Mal havia no aprisionamento de pássaros.
A mulher buscou a gaiola e, às pressas, a depôs aos pés do homem. Não, antes de aprisionar o passarinho, urgia fazer-lhe curativos, dar-lhe alpiste. Onde achar alpiste? Servia qualquer comida: Arroz cozido, banana, água. Dias e noites de cuidados. Acordava assustado: Teria morrido a avezinha? E se o gavião voltasse, disposto a rematar a caçada? Maria se irritava. Fosse cuidar da casa, do jardim.
Nunca mais apareceu o rapinador, e o passarinho sarou, cresceu, cantou. O homem se animava, a rezingar: Filhos e netos precisavam ver a ave. Maria se agastava: Os filhos precisavam cuidar de si mesmos e dos próprios filhos; os netos careciam de brincar, estudar, viajar. Passarinhos gostavam de matas, liberdade. Soltasse o passarinho. Mateus cuidava cada vez mais do prisioneiro.
A mulher contou o último capítulo da história assim: O velho fez questão de convidar filhos e netos para um almoço. A casa vivia tão sem graça, silenciosa, sossegada! Necessitava de gente, barulho, vida. Não se acostumava a viver sozinho com Maria.
Para Mateus almoços e jantares significavam alegria. Saudades dos tempos de infância dos filhos. Naquele tempo tudo, até o choro dos meninos, terminava em riso.
Naquele almoço de fim de vida, Mateus serviu o passarinho aos filhos e netos, como se servisse arroz, feijão, legumes.
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