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segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Os urubus e Deus (Nilto Maciel)


























– Qual a diferença entre a alma e um passarinho?
O que é a alma, Isaac Leão Peretz

(...) formavit igitur Dominus Deus hominem de limo terrae et inspiravit in faciem eius spiraculum vitae et factus est homo in animam viventem (...)
Vulgate, Genesis, 2:7

O urubu avistou o corpo do menino, empinou-se e bateu as asas. Não pude fazer nada. Aliás, nunca posso fazer nada. Não devo fazer nada. Não posso estorvar os impulsos instintivos dos urubus, nem dos leões, nem dos sapos. Todos eles precisam sobreviver. Os olhos da alma do menino pareciam horrorizados. Então ele, um ser humano, pequenino ser humano, recém-nascido, indefeso, deveria morrer para que urubus sobrevivessem? Não entendia a lógica da morte. 

sábado, 4 de agosto de 2007

Uma história secreta (Tércia Montenegro*)


Agora que estamos envelhecendo, Ismália, posso ter tua mão entre meus dedos enquanto penso que talvez seja improvável que me abandones, porque afinal continuo gordo e lento, mas fiquei velho e ninguém repara mais em mim, e tu também – embora tenhas conservado as medidas de solteira – perdeste o viço da pele; agora que provavelmente muitos homens já não te olham com desejo, posso ficar mais tranqüilo. É verdade, Ismália, que se torna difícil acostumar-me com o sossego, quando por vinte anos sofri, esperando que cada dia fosse o último, que me dissesses Estou farta, e batesses a porta sem mesmo levar tuas coisas. Nem quando estiveste grávida fiquei certo da tua permanência em minha casa; pelo contrário, a cada enjôo ou irritação sentia-me culpado e te levava a passeios, e te achava aborrecida comigo, pensando no que eu poderia ter feito de errado, e depois do parto, quando esperei que ficasses mais gorda, recuperaste em pouco mais de um mês a silhueta, apenas teus seios cresceram, e isso te fez ainda mais bonita. Bonita, apesar do ódio que sentias ao acordar com o choro da criança querendo mamar – muitas vezes temi que sufocasses o menino, tão enraivecida acordavas, a camisola mostrando um seio, os cabelos desalinhados. Quando teu filho se acidentou, aos quatro anos de idade, e não voltou do hospital, tive certeza de que partirias. A morte da criança era motivo suficiente para que dissesses que nada mais te ligava a mim (e eu poderia responder que o menino nunca fora uma ligação entre nós, pois não era meu filho), mas nem assim me deixaste.