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quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A fila (Nilto Maciel)









Esbaforido, Luís se aproximou do fim da fila e se postou atrás de um homem. Ah! Se tivesse chegado antes! Mas o ônibus rodou devagar pelas ruas, repleto de passageiros. Meia hora atrás talvez encontrasse apenas vinte pessoas na fila. Tentou contar as cabeças: uma, duas, três... Homens e mulheres, cabelos negros, loiros e até brancos. Ora, o que faziam aquelas pessoas idosas numa fila para emprego? Melhor assim. Seriam eliminadas de pronto. A empresa não trocaria um jovem saudável e disposto a trabalhar dia e noite por um senhor grisalho, já sem forças, talvez doente, cheio de catarro, pernas bambas. Boa idéia para trocar com o homem à sua frente. Quem teria mais chance de ganhar a vaga: ele ou aqueles senhores de cabelos brancos? O homem virou a cabeça para trás: vaga de quê? Ora, do emprego de encarregado de distribuição de senhas. Não era isto que constava do anúncio no jornal? O homem não sabia de anúncio nenhum. E estava ali pensando tratar-se de quê? Luís olhou para trás. Mais de dez pessoas atrás dele. O mais próximo quis saber se a fila não andava. Queixou-se da demora do ônibus. Carros passavam diante da calçada. Luís coçava a orelha. Aquele barulho contínuo o deixava impaciente, nervoso. Nem sabia mais por que se chamava Luís. Às vezes pensava besteiras. As pessoas dentro dos automóveis olhavam para as filas como quem olha para as pernas das moças. O rapaz sorriu. Também se chamava Luís. Poderiam chamar aquilo de fila dos luíses. Eu sou o Luís I e você o Luís II. Quem seria o terceiro? E os outros também se chamavam Luís? E se fizessem a pergunta a cada um? Besteira! Luís II sorriu de novo. Carros passavam em disparada. Ao pé do meio-fio acumulavam-se pontas de cigarro, papéis rasgados e sujos, latas. Se o emprego fosse para gari? Luís I quis saber se o outro sabia distribuir senhas. A moça atrás de Luís II olhava atentamente para ele e para Luís I. Não havia tarefa mais fácil do que distribuir senhas, mas preferia não fazer nada. Como se chamava? Luzia da Silva. A mãe fizera promessa a Santa Luzia: se ela, a menina, nunca ficasse cega, a mãe jamais olharia para o Sol. Ela pagou a promessa? Não, e já morreu, a coitadinha. E você sabe distribuir senhas? Não sabia e não queria saber. Quando lhe entregassem a senha, entraria correndo no teatro. Há dias só pensava naquela peça. Quando chegava a vez dela, as portas se fechavam. Sempre assim. Mas hoje contava com a sorte. O homem à frente de Luís I se irritou. Parassem com tanta conversa besta. E saiu da fila, a gesticular. Pareciam doidos. Os luíses e a moça riram. Fosse então embora, deixasse a vaga para quem queria trabalhar. Fosse embora, deixasse a vaga para quem gostava de teatro. Luís II esfregou os olhos com as mãos. Por que a fila não andava? Ou o velório já tinha se encerrado? Quem morreu? O governador. Luís I arregalou os olhos e se retirou. Ia averiguar direito aquilo. Atrás de Luiza um rapaz falou em exposição de fotografias. Os jornais falavam em fotos de guerra. Luís se dirigiu a outro. Queria jogar numa loteria. Ou aquela não era a fila da loteria? Luís II e Luiza conversavam animadamente. Todos mentiam. Ou inventavam histórias para engabelar os idiotas. Riram de novo. Outros também riram. Luís I voltou para perto de Luís II. Sentia fome. Guardassem o seu lugar. Em quinze minutos estaria de volta. A moça falava de teatro e parecia num palco: To be or not to be, that is the question. Os carros passavam em disparada pela rua. A fila andava lentamente. Homens e mulheres pediam licença e furavam a fila: precisavam entrar na loja cuja porta não conseguiam ver. Luiza repetia Hamlet: Vamos, vamos, sentai-vos: não vos movereis, nem saireis daqui, sem que eu vos ponha aos olhos um espelho onde vejais o fundo de vossa alma. Houve vaias e aplausos. Luís I apareceu no meio da rua, entre os carros. Procurava Luís II e Luiza. Andava para lá e para cá, a fazer perguntas irrespondíveis. Onde se achava a moça do teatro? Riam dele. Correu em busca do início da fila. À porta um guarda impedia a entrada de quem não fosse chamado. Por favor, é preciso preencher alguma ficha? O guarda se irritou: procurasse o final da fila. Luís se exasperou e correu pela calçada. Chegou ao fim da fila. Quem viu Luís II e Luíza? Riam, respondiam com gestos, chamavam-no de doido. Voltou devagar, a olhar demoradamente para os rostos. Fila para comprar ingressos para o jogo de futebol. Andou, andou, andou, voltou ao guarda, recebeu ameaças. Fila para marcar consulta médica. Coçava a cabeça, puxava as orelhas, amassava o nariz. Ia ser entregador de senhas. Luiza surgiu do outro lado da calçada. Gritou por ela. Os carros passavam entre ele e ela. Luís quis atravessar a rua. Gritou por Luiza. Depois não a viu mais. Voltou-se de novo para a fila. E se fosse para o fim?
4/8/2004
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domingo, 23 de setembro de 2007

Os dez dias de Raimundo (Nilto Maciel)

















Meu único filho viveu apenas dez dias. Cheguei do laboratório há pouco. A morte dele ocorreu ontem. Os médicos da equipe científica responsável pela experiência exigiram de mim absoluto sigilo. Eu, no entanto, não cumprirei a promessa. Muita gente me chama de louco, mentiroso. Quase ninguém acredita na história desses dez dias. Mesmo quem viu de perto Raimundo. Mesmo quem acompanhou o seu desenvolvimento físico e mental em tão pouco tempo. Quem foi a mãe? Não houve mãe. Ele nasceu em laboratório. Ao nascer, deram-lhe leite e mo entregaram. Leve-o para casa e cuide bem dele – aconselhou o dr. Ângelo. Traga-o amanhã, para avaliação. Entregou-me também um manual de instruções. No capítulo relativo a unhas e cabelos lia-se: Cortar unhas e cabelos, três ou quatro vezes, somente no primeiro dia. A partir daí, unhas e cabelos crescerão tão pouco que somente no último dia de vida da criatura será preciso chamar barbeiro e manicura. Criatura é o nome dado pelos cientistas ao meu filho, o ser criado em laboratório. Deitei-o no banco do carro e corri para casa. Durante o percurso, jogou fora os panos e se pôs a pular no banco e balbuciar palavras. Coloquei-o no berço, fui tomar banho e almoçar. Durante este tempo não parou de gritar. Ao meio-dia se arrastava pelo chão da casa. Algumas horas depois, falava sem parar, corria para lá e para cá, chutava bolas, gritava. Pediu-me para ir à praia. Prevenido pelos médicos, havia comprado roupas e calçados de diversos tamanhos. Fomos ver o mar. Ele parecia acostumado às ondas. Nadou como um peixe. Regressamos no início da noite. Falava tudo, conversava sem parar. Vasculhou minha biblioteca e leu, em meia hora, alguns livros. Cansado, dormiu cedo. Também dormi cedo, preocupado com o rápido desenvolvimento de Raimundo. Cedinho voltamos ao laboratório. O dr. Ângelo nos recebeu sorridente, abraçou o menino e o conduziu ao consultório. Está muito bem – assegurou, após os primeiros exames. É como se tivesse dez anos de idade. Prepare-se para a adolescência, ainda hoje. No carro, o menino olhava através do vidro para as meninas nas ruas. Ria, piscava, mandava beijos. Seria aquele meu pior dia? Chegados à casa, o garoto abriu a geladeira diversas vezes. Sentia muita fome. Recebi um telefonema e passei quase uma hora em conversa. Dr. Ângelo me dava conselhos: saísse a passeio com o menino, viajasse para o campo. Para me libertar do médico, chamei Raimundo. Nada de resposta. Corri a casa em busca dele. Por onde andava o safadinho? Cansado de perambular pelas ruas, busquei o apoio do dr. Ângelo. Ele me deu sossego. O rapazinho andaria à cata de mocinhas. Voltasse para casa e aguardasse Raimundo. À noite ele voltou. Ele e uma garota muito bonita. Falavam sem parar, de paixão instantânea, amor sem fim. A barba dava-lhe ares de maturidade. A mocinha parecia não perceber nada, nenhuma mudança no corpo dele. Como se estivesse cega. Chegada a noite, dormi no sofá. Eles tomaram conta de um quarto. De manhã ele me contou, em segredo, ter passado a noite em conúbio com a moça. Hoje ela ainda chora a morte prematura do seu grande amor. Disse estar grávida. Será meu primeiro neto. E eu só tenho vinte e poucos anos de idade. Ao fim do terceiro dia ele saiu de casa. Não suportava mais aquela prisão. A jovem chorou muito. Tentei impedir tal aventura. Regressou dois dias depois, cabelos grisalhos, cansado, sujo, maltrapilho. Fui conhecer o sertão. A mocinha se apavorou. Não acreditou no que viu. Aquele homem envelhecido não poderia ser o seu belo Raimundinho. Deveria ser o nosso pai. Para ela, eu e Raimundo éramos irmãos, pois parecíamos ter ambos vinte anos, quando nos conhecemos, os três. Conduzi-a à biblioteca e contei-lhe a verdade. Ela riu de mim, chamou-me de louco, mentiroso. Só voltou a me ver no dia da morte de meu filho. No sexto dia levei-o ao consultório do dr. Ângelo. Sentia dores na cabeça. O médico não se mostrou preocupado. É assim mesmo. No dia seguinte levei o velho Raimundo para casa. Lia sem parar, falava esquisitices, andava pela casa, ia às ruas. No nono dia percebi a loucura instalada nele. Não me conhecia, não se lembrava de quase nada. Conduzi-o de novo ao doutor. Ele me segredou: Hoje ou amanhã a criatura morrerá. É como se tivesse cerca de cem anos de idade. Deixe-o comigo. A experiência está apenas começando. Eu me retirei e à noite fui vê-lo pela última vez. Já não vivia o meu filho. Eu, no entanto, não poderia retirar o cadáver. Raimundo não existira para o mundo. Nem nascimento, nem óbito. Uma experiência, apenas.
Fortaleza, 21/6/2004.
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