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segunda-feira, 1 de outubro de 2007

O perdão (Nilto Maciel)

















(El Velorio, 1972, de Carmelo Sobrino)


“– Tu agüenta mesmo um homem?”
Os anões, Moreira Campos

O anão chorava abraçado ao corpo da anã. Descontrolado, fazia a rede balançar, como se embalasse a morta. Uma vizinha entrou no casebre. Por que chorava o anão? Nem sequer olhou para a mulher. Outros vizinhos se aproximaram da porta da casinha. Meninos tentavam sondar o interior da sala e saíam correndo para o mar. Amanheceu morta, o coração parado. Pobre Lourdinha! Coitada, deve ter morrido dormindo. Melhor assim; não sofreu para morrer. O anão chorava sem parar. Acendessem uma vela. Onde arranjar vela? Uma mulher se esgueirou. Lembrava-se de um toco de vela em cima da mesa. Ia num pé e voltava noutro. Começassem a reza. O bater das ondas na praia cadenciava a reza. Ave-maria, cheia de graça. Trouxeram uma garrafa de cachaça. O anão recusou a bebida. Precisava chorar. Sua pobre Lourdinha havia sofrido muito. Não por causa dele, mas dos outros. Nunca nela bateu e ela estava ali como testemunha. Outros, sim, quiseram usar o corpo dela, tão pequeno, como de menina. Como aquele negro safado, anos atrás. Consolavam o anão. Bebesse um tiquinho para se acalmar. Ele voltava à rede, ao corpo da mulher. Ave-maria, cheia de graça. Acenderam o toco de vela. Ia ter caixão? Procurassem o padre na igreja. E se Lourdinha estivesse ainda dormindo? Costumava beber muito de noite? Nunca, nunca bebia. E como tinha sido a história do negro? Muitos anos atrás, quando ainda moravam num armazém abandonado, perto do Mercado Central, um homem arrombou uma das portas. Acordaram assustados. Na mão do bandido o relógio de ouro de Lourdinha. E o pior: o deboche, a perguntar se ela agüentava mesmo um homem. Não conseguia esquecer aquilo. Anos e anos passados e ainda assim a figura do negro aparecia diante dele, a resmungar imundícies. Depois daquilo, Lourdinha nunca mais foi a mesma, sempre nervosa, com medo de tudo e de todos, chorosa, querendo ir embora para bem longe. Uma casinha na beira da praia. Não rezavam mais, a garrafa de cachaça vazia e o toco da vela apagado. E o padre? Tome um golinho, vizinho. Não lhe pronunciavam o nome nem o chamavam de anão. Quem ia arrumar a defunta para o enterro? Súbito assomou à porta a figura musculosa de um negro. O anão arregalou os olhos, fez um esgar, rangeu os dentes, retesou-se todo. E correu para junto da rede e do corpo da anã. Os outros se afastaram para os cantos das paredes. O mar rugia feito um monstro em fúria. O visitante juntou as mãos, como se fosse rezar, e disse: vim pedir perdão pelo que fiz e trazer um relógio de ouro para a sua mulher.
Fortaleza, 10/9/2004.
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domingo, 30 de setembro de 2007

Poesia (Caio Porfírio Carneiro)




– Leu a minha poesia?
– Li. Leu a minha?
– Li. Linda, linda.
– Linda é a tua. Eu quase choro.
– Eu também senti um nó na garganta quando li a tua.
– Deixa eu te dar um beijo de agradecimento.
– Deixa eu também dar um em você.
– Quando é que a gente troca de novo outra poesia?
– Vou fazer outra pra você no fim da semana.
– Eu também.
– Então tchau.
– Tchau.
Caminharam, em sentido contrário, ao longo do quarteirão. Ela conduzindo a sacola de livros e cadernos do colégio. Ele também.
Ele chegou na esquina de cá, ela na de lá. Viraram-se. Ele deu sinal de adeus. Ela também.
O quarteirão ficou deserto.
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