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sábado, 6 de outubro de 2007

O ponto de vista das sombras (Stélio Marras*)



(A propósito do livro Nó de sombras**, de Chico Lopes)


“Localizar o ponto inicial, o fundamento das sombras. Preciso de tranqüilidade, depois virá a clareza. Preciso entender ”. (Do conto Um corpo no rio, de Chico Lopes, p.36)

Pergunto-me que outro título poderia expressar assim tão fielmente esse autor. Para quem o conhece um pouco, saberá intuir o rendimento metafórico que as sombras lhe alcançam. O Cinema e a Pintura, duas das artes com que Chico divide a sua vida, ambas dependem das sombras como condição de existência. Isto é, a luz só é possível contrastada à sua ausência. Sem o jogo do claro-escuro não há cinema, as cores do quadro não se distinguem, não há imagem qualquer que se defina. Pois a literatura de Chico acusa o mesmo. Retomamos o claro e o positivo pela ótica induzida da sombra e do negativo.

Era inevitável que logo às primeiras páginas um feixe de relações se armasse e alguns escritos de Pedro Sanches, Coelho Neto, João do Rio e sobretudo de Jurandir Ferreira viessem agora fazer face à leitura dos contos de Chico Lopes. E percebesse que desse embate saía claramente destacado seu ponto de vista destoante sobre ocorrências de uma cidade então pequena – mas daí além. De fato, se muito do referencial provém de tudo aquilo que sentiu e observou em Poços de Caldas, o caso é que o filtro de Chico, seu tratamento dado à matéria da realidade sensível do cotidiano e as conseqüências alcançadas, levam sua escritura para bem longe de Poços. É quando aquele compartilhar físico com tal ou qual pessoa na espera do ônibus no ponto, experiência banal ou corriqueira, reaparece mais tarde, cotovelos à escrivaninha, quando a rua invade o quarto do escritor, e as impressões do dia irão transcender-se em personagens e fina literatura. Então, Poços, o ponto de ônibus e a tal ou qual pessoa desprendem-se de si mesmos. Mas também, e vice-versa, a escritura instrumentaliza-se e retorna à cidade submetendo aquela mesma notação da realidade micropautada a um diferente – original, talvez aterrador – exame.

Em Chico o ponto de vista é o das sombras. É daí que o mundo dá-se a conhecer. Aquela mesma cidade, já nem tão pequena, espraia-se em periferias, estende margens antes insuspeitas. Chico nos arranca do velho e aparentemente pacato centrinho e nos atira para as bordas – segundo a propriedade de quem, qual etnógrafo ou verve jornalística, a experimenta no dia a dia. De súbito, caímos noutro lugar. De volta, o que havia da imagem antiga já não permanecerá incólume. O deslocamento é a sensação forte que atravessa o leitor na leitura diagonal dos contos. Muda o foco, agora as sombras é que clarificam. O periférico ilumina o centro e denuncia que um não pode ser compreendido senão remetendo ao outro, como o imoral ao moral, a sandice à sanidade, a solidão a dada economia das relações sociais. O positivo é considerado na revelação do negativo. Mas o negativo é a posição de partida.
O argumento das sombras torna-se paulatinamente robusto à medida que penetra com semelhante e simétrica persuasão a escala psicológica e sociológica. A mais funda introspecção da experiência pessoal da personagem reencontra inteiro seu pólo coletivo. O fragmento funda a perspectiva da escritura e torna-se a chave interpretativa que submete e deriva o mundo. Por isso, em pouco tempo, o leitor nota que a temática é mais vasta do que porventura imaginara. O referencial do espaço (periferia-centro) replica-se na oposição sociológica (ser periférico-ser central) e adquire estatuto simbólico (impuro-puro, imoral-moral, perversão-culpa etc.), assim descolando-se da imanência empírica, de onde partiu, mas que pode voltar a ela e explicá-la, porém em escala muito mais abrangente. É quando aquele referencial restrito a dada coordenada tempo/espaço (esta de uma certa pequena cidade) transborda destes seus signos primeiros e passa a dizer respeito seja à periferia de grandes cidades, seja à periferia interna do ser psicológico. Entre as diversas dimensões – eis o ponto – resultam razões de continuidade.

Se o leitor seguir pari passu a analogia direta com a cidade (eixo possível, mas restrito, de leitura), terá logo de saída que lidar com a realidade de uma contradição e assentá-la no espírito. Todos aqueles traços de esgarçamento social, até então típicos de grande cidade – medo, desconfiança, solidão, terror – caem de chofre a arrasar qual imagem de um comunitarismo romântico da tida pequena cidade. Se tal imagem nem mesmo o gênio de Jurandir algum dia teve a inocência de esculpir, agora é que ela se tornaria sumamente anacrônica. Chico nos obriga a dar meia volta e olhar ao redor, reconhecer a existência dos mais de cem bairros de Poços de Caldas. De volta ao ângulo inicial, repito simbolicamente, o centro não será mais o mesmo.

Porque aqui já não é mais aquela vila de Jurandir Ferreira, com seus recatos de comunidade, a organização tradicional de pequenos agrupamentos, onde todos sabiam dos vícios e virtudes uns dos outros. Agora a vila cresceu, está repleta de anônimos. Mas cresceu muito mais, desproporcional, a dramática da coesão coletiva. Compare-se a experiência dos personagens por meio de ambos os autores:

“Desconhecidos? Haverá desconhecidos? (...) Ficamos os dois por ali a malhar o nosso arroz aéreo, longamente colhido. Voltamos ambos ao Palácio dos Dias Antigos e descobrimos novamente todos os seus prodígios e seus tesouros. Enquanto isso, em torno de nós desapareciam os arranha-céus, os grandes edifícios, o alastrado casario moderno. A cidade tumultuária como que, sob nossas evocações, se desfazia do peso de suas cargas de atualidade e reassumia os sorrisos e os perfumes da vila montanhesa, com ruas que eram ainda como estradas para carros de bois, enfeitadas pelos verdes do capim nativo e pelas borboletas que desciam do mato vizinho.” (Jurandir Ferreira, “O arroz longamente colhido”. In “A visita”, São Paulo, Ed. Do Escritor, 1977, pp.80-1)

Para este que nasceu em 1905 e agora via aquela cidadela expandir em prédios, ruas, “cargas de atualidade” com seus ruídos e seu “casario moderno”, lícito que seu personagem pergunte se “haverá desconhecidos”. Mas logo o arroz colhido dos Dias Antigos obra diminuir a distância entre os desconhecidos postos face a face, bem como o peso de atualidade do entorno, e enfim ambos se reconhecem mutuamente, pois provenientes de uma mesma semeadura. Não, malgrado os arranha-céus, não haverá desconhecidos. O outro ainda continua em mim.

Situação oposta é a dos personagens de Chico. Arrisco dizer que entre eles não há, como em Jurandir, algo como uma memória mediadora que unifique estranhos e assim rapidamente dilua o anonimato. Em Chico, o anonimato não é diluído, mas impelido a radicalizar-se. O tempo e o espaço são outros, e o Palácio dos Dias Antigos, quando insinua aparecer, apenas ressurge pálido e confuso, e nada funda ou semeia no presente das relações entre estranhos – nem mesmo dentro da família. Estamos na “faixa periférica” (“A fresta”, p. 108) da cidadela que não há muito tempo contava “15 mil habitantes” e que neste momento apenas “deixava entrever saudades do povoado,dos arrasta-pés”, do “fugaz sanfoneiro” (Idem, p.111). Um passado nebuloso rápido se esvai e somente resta amargar as sombras de existências resignadas, remediáveis, dramas introspectivos a pôr em curso perversões e egoísmos, revolver angústias e recalques, mas também – paradoxo aparente – criar perspectiva enormemente humana. Contudo, nada tece de coletivo, e o eu permanece “agulhinha”, solitariamente fiando retalhos com que visar o mundo.

“Aliás, eu também não gosto de ninguém, não me permito. Tudo bem. Imune, liso, funcional. Natural que a cidade se interesse tanto por mortos no jornal, os acidentes, os cadáveres em fotos minuciosas de primeira página: só vale a sensação forte, a discernível, a única perceptível numa ruína ontológica. Eu, agulhinha.” (Chico Lopes, “O quarto e a rua”, p.28).

O outro permanece estranho e inspira pavor, o “outro que se esgueirava entre gente na calçada” (“Do outro lado”, p. 58), os “tipos insondáveis que passavam sem boa-noite.” (“Do outro lado”, p.54), “os rostos que fluem, inúmeros, inúteis, ninguém que possa ser um amigo, nada que possa estar livre e da necessidade e do desencanto letais.” (“Uma das mil noites”, p.75). Neste mundo de mônadas incomunicáveis, o diálogo entre os personagens aparece sempre breve, ríspido, lacônico. A figura do mudo (“Nos fundos”) é por isso paradigmática da unidade do livro, é o emblema da ausência de comunicação e diálogo. Diferente de Jurandir, enfim, o anonimato de Chico apresenta-se irredutível. O outro me descontinua.

Figura recorrente entre os contos é a do pai distante, esquivo, rival; que por tal distância o ego-personagem surpreende-se simetricamente mais próximo da mãe, às vexes da irmã ou até mesmo do irmão, a sugerir a atmosfera do incesto, porque a aliança que se deveria encontrar fora de casa, o afim externo, tal não sucede, não sem traumas e bloqueios, cujas razões são exatamente provenientes da vida ensimesmada, socialmente mínima, econômica quanto possível, a vida seca (de um Graciliano que, não será por acaso, tanto impressiona Chico e lhe fornece metáfora). E porque a relação com o de fora (tanto da família quanto, no limite, do indivíduo) é tão dificultosa, o par alteridade/identidade acaba tendo que voltar-se para dentro (eis o mecanismo próprio da perversão), para as relações internas à família, e aí mesmo operar. É quando a consanguinização atinge níveis insuportáveis e explode.
É a “vida até aí talvez triste, mas cômoda” (“A fresta”, p. 114), dessa comodidade de contra-senso, porque apequenada, embrutecida, encerrada numa resignação claustrofóbica, que a pulsão sexual, esta porém incontrolável, sobretudo em meio estimulante como o nosso, por isso mesmo de súbito aflora violenta, homicida, suicida, mal sublimada, pervertida, mas também emancipadora. Coerente, pois seria de esperar que a afinidade com o de fora de casa sucedesse bem nesse mundo desconfiado e retraído, de migalhas materiais e afetivas tão disputadas? Ir buscar-se fora, nas ruas? Mas estão “as ruas povoadas de sombras que poderiam censurá-lo, interrogá-lo, barrá-lo “ (“O recado”, p. 129). Então eis que surge a prostituta (“A fresta”) a dar escape a sonhos surdamente tramados, seja pai seja do filho, a prostituta vizinha que quando passa faz a mal recatada filha-irmã “morder cobras” de repulsa e inveja. Pois então está a prostituta a ocupar o lugar possível e provisório de uma alteridade truncada nesse mundo em que o outro mais apavora que fascina. Por isso a prostituta, como sempre, está lá, à disposição, sem juízo de censura ou palavras de acusação, ela dispensa cerimônias e ritos relacionais, já que nesse mundo atomizado, solitário e nada solidário, imperam as relações secas e ariscas. Pois alguém haveria, de um modo ou de outro, que promover alguma troca de afetos, de fluidos, o irredutível impulso da troca para estas almas sedentas e estes corpos desesperados por contato. Então a prostituta, é ela o que de mais viçoso se destaca dentre aqueles da vizinhança – mas que por tal viço pagará seu preço (como aquela Geni de Chico Buarque).

“Deus, Deus, é sempre isso, sempre repetir? Todos fixos, todos erráticos, vão de sombras a sombras, adensando-se, e os saciados são igualmente tristes, vácuos que imploram. (“O quarto e a rua”, p. 30).

Vê-se que nem mesmo os “saciados” estão saciados. Ninguém escapa às sombras. Todo o tecido, por desigual que seja, apresenta-se igualmente corroído pelas traças que não conhecem limites de classe. Mas somente nos é dado reavaliar o positivo quando, pela mão de Chico, seguimos o encalço do negativo. É mesmo sua estratégia. A periferia ensina a ver o centro, porque só há um contra a existência do outro. Por isso seus heróis recorrentes situam-se entre os de baixo, seja na hierarquia etária e geracional (irmão menor/irmão maior; filho/pai), seja na de gênero (esposa/marido), seja na distribuição social de poder (desempregado/empregado; insuficiência de meios/suficiência de meios etc.) Segui-los é caminhar junto centímetro a centímetro o pavimento das sombras. Dialeticamente, contudo, é nessa mesma ótica sombria que reside a fonte imaginativa e luminosa de seus heróis (penso em Chico pensando nas tramas psicológicas dos filmes de Hitchcock, cineasta dos seus preferidos). Porque as sombras, a todo despeito, logram edificar mentes psicologicamente complexas, introspectivas, cerebrais, elaborativas. Dessas mentes é que se estendem as redes através das quais o mundo se arvora, ainda que frágil ou terrível. Delas é que floresce – como a rosa drummondiana no asfalto – um embaraçoso, mas coeso e pertinente, ponto de vista por meio do qual visamos o mundo, esta perspectiva dos que se sabem reprimidos, amuados, obrigados a sempre admirar. Instalados, pois, nesta posição observatória, os heróis se engrandecem soberbamente. Aparente paradoxo que se desfaz. Compreendo enfim que a miséria, talvez a pior delas, assombre muito mais os saciados, porque estes não sabem que intimamente já conhecem as sombras.

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*Stélio Marras é mestrando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e membro do corpo editorial da revista Sexta-Feira – Antropologia, Artes e Humanidades.
** São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2000.

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quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Mea culpa (Nilto Maciel)

















Algumas horas após o cometimento do crime, familiares, amigos e vizinhos da vítima se dirigiram à delegacia de polícia da pequena cidade. Revoltados, gritavam, exigiam a imediata prisão do criminoso, ameaçavam invadir o prédio. Se o celerado já estivesse preso, que o soltassem. Queriam linchá-lo. A multidão crescia e a rua parecia em pé de guerra. Nenhum soldado aparecia. Passados alguns minutos, o delegado se aproximou da porta, aparentemente muito calmo. O povo urrava sem parar. Cadê o criminoso? Queremos fazer justiça! O homem pediu serenidade de ânimo e silêncio. E iniciou breve discurso. Meia dúzia de frases sem sentido, obscuras, incompreensíveis, como se falasse latim. Para encerrar, convidou as pessoas a se dirigirem à sua sala. Uma a uma ou casal após casal. Primeiro os pais da vítima. Fizessem fila. Dois minutos depois, o casal saiu, silencioso e cabisbaixo. E caminhou na direção de casa. A terceira pessoa voltou mais silenciosa e mais cabisbaixa ainda. E assim aconteceu com todos e a rua da delegacia voltou à paz de antes.

Passaram-se dias, meses, anos, e nunca mais na pequena cidade se falou do crime ou do criminoso. Na rua os cidadãos apenas se cumprimentavam, ainda cabisbaixos: bom-dia, boa-tarde, boa-noite. E voltavam para suas casas, calados.

Fortaleza, 24/25 de setembro de 2004.
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