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sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Bééé (Nilto Maciel)
























A charretezinha subia e descia a rua, o carneirinho a berrar. Animal altivo, sadio, de pêlo branco. Veículo pintado, envernizado, recoberto de frisos coloridos, bancos bem forrados. Verdadeiro carro de príncipes e princesas. O carneirinho berrava bééé. Jairo, na boléia, olhava loiro e feliz para os curiosos. À frente, puxando o cabresto, um homem, provavelmente o pai. Outros garotos, nas janelas e portas das casas, contemplavam o principezinho e sua carruagem real. O animal berrava, talvez para anunciar a passagem do menino rico.
Pela cidade não se viam carros, a não ser, de vez em quando, o jipe do prefeito, um caminhão que chegava num dia e saía no outro, o ônibus que vinha da capital duas ou três vezes por semana.
A quem pertencia a pequena charrete? Ao pai de Jairo? Teria adquirido o veículo apenas para divertir os filhos? Ou cobrava alguns réis pelos passeios? Talvez tenha ele mesmo construído o carro e adestrado os animais. Essas e outras questões faziam parte da conversa dos meninos.
Com o passar dos dias, meses e anos, deixaram de ver a charretezinha e nem se lembravam mais dela, e muito menos do carneirinho a berrar. No ginásio Jairo só falava de meninas e diversões. Não gostava das aulas e muito menos dos padres-professores. Andava a rir à toa, despreocupado de livros e lições, a perambular pelas ruas, a fumar escondido do pai. Pedia auxílio aos colegas nas aulas de português, matemática, inglês, geografia, de tudo. Não sabia nada.
Mais tarde conheceu o álcool, deixou de estudar, não trabalhava, vivia de favores de parentes. Até ser colhido por um veículo numa rua da capital. Andava bêbado, como todo dia. Tentou atravessar a rua e, passos lentos ou trôpegos, não alcançou o outro lado. Morte instantânea, o corpo esfacelado, moído, a sangrar muito. Longe, muito longe dali, um carneirinho berrava bééé.
Fortaleza, 19/10/2004.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Literatura e desvario (Henrique Marques Samyn*)




Nilto Maciel é, mais do que escritor, um guerreiro das letras. Mantém heroicamente, desde 1991, a revista Literatura, uma das poucas publicações brasileiras dedicadas exclusivamente às letras; paralelamente, constrói uma premiada obra como romancista e contista, além de assinar artigos, ensaios e poesias.
Carnavalha (Bestiário, 2007), sua obra mais recente, é uma espécie de romance em retalhos, construído por meio de uma laboriosa montagem de narrativas. O tênue fio que as une, o próprio motivo carnavalesco, dá azo ao vertiginoso desfile de cenas que se desenrola em torno de Zuza, bêbado e gauche, centro deste universo em que tudo tende ao desvario. O texto de Nilto comumente habita a fronteira entre o real e o fantástico, limite que também Carnavalha, com freqüência, desconhece; assim é que a narrativa entrelaça passagens em torno das mais prosaicas situações com textos de evidente carga simbólica. Carnaval, mundo feito máscara: nada é o que parece ser.

Se rótulos fossem necessários, talvez fosse possível qualificar Carnavalha como um romance etnográfico; categorizações, todavia, pouco importam no tocante à literatura, e mais vale observar que Nilto Maciel mergulha no universo carnavalesco para extrair dele a matéria-prima de sua criação literária – um romance em que a essência do carnaval mescla-se com a própria marcha da existência. Nas narrativas de Carnavalha, o que há é um desfile de efêmeras criaturas cujas vidas, árduas e dolorosas, sôfregas e retortas, só encontram algum sentido nos delírios dos que as vivem. Ainda assim, somos capazes de sentir, por esses miseráveis seres, alguma empatia – talvez por nos semelharmos mais a eles do que gostaríamos de crer. A navalha de Nilto Maciel fere, afinal, nossa própria carne.

*Henrique Marques Samyn: escritor, tradutor e pesquisador acadêmico, vive no Rio de Janeiro. Autor de Poemário do desterro e de diversos artigos acadêmicos. Sua obra literária já foi publicada em diversos periódicos brasileiros, na Venezuela e na Espanha. Cursa atualmente doutorado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com tese sobre poesia medieval.