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segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O último do Gabo (Benilson Toniolo)




1.
Final de ano. Amigo-secreto em família.
- Alaor, o seu amigo-secreto quer saber o que é que você quer ganhar.
Acostumado com a pergunta que se repete todos anos –em casa, no trabalho, até entre os amigos semanais do boliche- ele não titubeia:
- Diz que eu quero o último livro do Gabriel García Márquez.
A esposa repete silenciosamente o nome, somente os lábios se movem, tentando não esquecer o nome do autor e pensando: Esse Alaor. Ele precisando de um cinto, uma cueca nova, sei lá, pede um livro.

2.
Na cama, antes de apagar a luz, três dias depois. Ela, em tom ameaçador:
- Alaor, você tem alguma coisa pra me dizer?
- Não, não tenho não. Por quê?
- Nada.
- Não, fala. Por quê? Que que eu fiz?
- Esse livro aí, que você falou. Qual é o nome?
- Qual?
- Esse que você quer ganhar do seu amigo-secreto.
- Ah, o do Gabriel García Márquez? “Memória de Minhas Putas Tristes”.
Silêncio.
- Então o nome é esse mesmo, não foi erro meu nem engano do vendedor?
- Não, o nome tá certo.
Silêncio.
- Tá. Deve ser muito interessante.
- Ah, sem dúvida. Não é qualquer Nobel de Literatura que anda lançando livro por aí. Além do quê, é um dos meus preferidos. Colombianozinho danado...
- Deve ser mesmo, pra escrever um livro com um nome desses.

3.
A mãe, em tom ameaçador:
- Deu pra pornografia agora, Alaor?
Ele, sem desgrudar os olhos do jornal e desinteressado:
- Por quê?
- Isto é livro que se peça, meu filho? Coitada da tua mulher, anda aí com minhoca na cabeça.
- Qual o problema, meu Deus? Só por causa do nome do livro? Besteira...
- Mas o livro é sobre o quê, afinal?
- Ah, mãe, é um livro de um escritor de quem eu já li quase tudo.
- E elas contam tudo mesmo?
- Elas quem?
- Ora, você sabe. Elas.
- As put...
- Não fala, Alaor! Não foi essa a educação que eu te dei!
- Não, não é nada disso. É sobre um homem que resolve comemorar a festa de seus 90 anos num bordel, junto a uma menina de 15 anos, e...
- Você depois de velho deu pra me dar trabalho.
Alaor volta ao jornal.

4.
- Quer dizer então que você é que é a minha amiga-secreta?
- Quem te disse?
- Sei lá, andou por aí em livrarias, atrás do livro.
- Nem me fale.
- Então, é você ou não é?
- Olha, Alaor, eu até nem queria mais fazer amigo-secreto. Mas não sou eu, não. É a tua mãe.

5.
- Olha, fala pra minha mãe que eu escolhi outro livro. Pronto, assim ninguém precisa passar vergonha na livraria.
- Excelente, meu amor. Tenho certeza que agora resolvemos tudo. Qual?
- Chama-se “Livro Sobre Nada”.
- Ou você está louco ou resolveu gozar o Natal da família.
- Mas qual o problema, pombas?
- Livro sobre nada, Alaor? Que que é, as páginas estão todas em branco? Olha aqui, depois que você começou com esse negócio de literatura ficou insuportável, sabia? Que saco!
- Que nada, é o último livro do Manoel de Barros. Poesia, sacou?
- Tá, saquei, mas quem não vai sacar nada é tua mãe, entendeu? Que coisa!

6.
Sábado á noite, depois do amor semanal. Ele ainda com o rosto enterrado entre os cabelos dela (ah, os cabelos dela...)
- Vem cá, será que não dá pra trocar de amigo-secreto?
Ela sorria, preguiçosa.

7.
- E aí, filho, gostou da bermuda que te dei?
Alaor sorria e balançava a cabeça, claro, daquela cor ainda não tinha nenhuma, mãe, a senhora é fogo mesmo, rárárá.
Alaor bebericava um Chianti escondido dos parentes que bebiam do garrafão que ele comprou no Supermercado. Afinal, podiam perceber que a cor dos dois é diferente e aí complicaria tudo. E pensava no embrulho estrategicamente escondido debaixo da árvore enfeitada, e que ele abriria avidamente depois que todos tivessem ido embora. Somente os dois sozinhos na penumbra da sala, sabe-se lá a que horas: Alaor e o último do Gabo.
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domingo, 21 de outubro de 2007

Livre-arbítrio (Nilto Maciel)










Um homem prenderam ontem. Acusam-no de violentar, matar e esquartejar meninos. Para o delegado, um caso sem precedentes, de horror. Familiares das vítimas choram e pedem pena de morte. Um dos pais anunciou vingança. Por outro lado, a mãe do monstro disse não ter mais como perdoar o filho. Da primeira vez a mãe o perdoou. José Pereira dos Santos, o assassino, havia sido condenado e preso por crime semelhante há alguns anos, tendo obtido liberdade recentemente. Ele pôs a culpa na fraqueza, na cachaça, na loucura, se disse arrependido e pediu perdão a ela. Agora, diante de tantas barbaridades, ela chora e afirma não poder mais dar perdão ao filho.
Quase sempre da mesma maneira agia o homem para atrair as crianças. A primeira vítima o criminoso encontrou próximo a uma padaria. Conduzia um pacote de pães. Saiu de casa, a mando da mãe, dez minutos antes. O homem o viu e o chamou. Convenceu a criança a segui-lo. Meia hora depois, a mãe se dirigiu à padaria e não obteve nenhuma informação do menino. O pacote de pães terminou em outras bocas, certamente. O corpo nunca localizaram. Por que José pratica tais crimes? O delegado faz discurso. Alguém fala de livre-arbítrio. Abre a Bíblia, lê salmos, provérbios, crônicas. “Não olharás com piedade, antes exterminarás de Israel a culpa do sangue inocente, para que te vá bem.” Agiu assim porque quis, por vontade própria. O delegado já decidiu: entregará o criminoso às feras, isto é, aos outros presos, para que também pratiquem o livre-arbítrio. Louvaram os pais das crianças assassinadas a decisão policial. Assim, o homem será violentado, morto e esquartejado na prisão, para que o livre-arbítrio se volte contra ele e tudo se explique e se justifique.
8/2/2005