Translate

terça-feira, 23 de outubro de 2007

A música (Nilto Maciel)








Após banhar-se e jantar, ligou a vitrola, pôs sobre o prato em rotação o primeiro disco do dia e levou a agulha à borda. Correu para a poltrona e se deitou. Quando cruzava os braços sob o pescoço, sentiu na cabeça uma dor. Não exatamente uma dor, mas uma sensação estranha. Ora, não se lembrava daquela música. Não a conhecia
Há anos, quase todo dia, praticava os mesmos gestos e sentia as mesmas sensações. Irritava-se quando a chuva deixava lento o trânsito de veículos e o impedia de chegar à casa na hora de costume. Mas diante da eletrola esquecia o incidente e desligava o telefone. Não queria ser importunado por ninguém. Se algum vizinho batesse à sua porta, pulava da cadeira feito uma fera, pronto a esmurrá-lo. Quando o sono chegava, desfazia todo o processo, lentamente, como num ritual. Punha os discos no final da fila, para voltar a tocar neles dias e dias depois. Apagava as luzes e se deitava, deliciado.
Naquela noite, porém, todo o seu modus vivendi começou a se esfacelar inexplicavelmente. Ora, como podia ouvir uma composição que não conhecia ou não constava em sua pequena discoteca? Alguém teria ido à sua casa e deixado aquele objeto. Quem? Um dos filhos, um primo, um amigo? Rememorou todas as visitas recebidas nos últimos dias. Olhou para a capa da gravação: nenhuma palavra, apenas um desenho. Não, aquilo não lhe pertencia. De quem seria, então? Passeou pela sala, dirigiu-se à cozinha, bebeu água, se irritou com a barata que se escondeu atrás do fogão. Ora, por que não escutar as outras músicas do disco? Pôs a vitrola para funcionar de novo desde o começo e se deitou na poltrona. Decididamente não conhecia aquela peça. Uma polca de Strauss? Talvez não. A segunda faixa lhe pareceu mais estranha ainda. E assim se deu por quase uma hora.
Na noite seguinte se postou diante da discoteca, certo de que era a noite de uns noturnos. No entanto, não os localizou. Teriam roubado aquela preciosidade? Quem seria o gatuno? Insultou filhos, primos, amigos. Bando de ladrões! No frenesi da raiva, não viu os noturnos ao lado do objeto desconhecido e se lembrou da noite anterior. Ora, por que não ouvir novamente aquelas músicas incógnitas? Um dia descobriria toda a verdade. Repetiu o ritual e aguardou o início da execução da primeira polca. No entanto, para espanto seu, não ouviu uma polca, mas uma valsa. Ora, ora, ora. Que significava aquilo? Sentiu medo, angústia, raiva. Ergueu-se e se postou diante da eletrola, olhos no disco a girar. Desvairava-se o homem, tremia da cabeça aos pés, febril, alucinado. Estaria louco? A música seria capaz de enlouquecer, mesmo os mais sensíveis, os mais tranqüilos, os mais sensatos seres? De onde surgira aquela valsa? Quem a gravara de um dia para o outro? Ou se tratava de outra gravação? Mas onde se achava a primeira? Correu à estante e, descontroladamente, se pôs a mirar e remirar um a um os discos. Não, não havia nenhum novo, apenas os antigos, os conhecidos, os Tchaikovsky, os Grieg, os Bach, os Haendel, os Listz, os principais clássicos, todos ouvidos repetidas vezes, cem vezes, mil vezes. Súbito inicia-se a “Dança Eslava nº 2”, de Dvorak. Espantou-se mais uma vez o homem. Restaurava-se a normalidade em sua casa, em sua sala, em seus ouvidos, em seu ser. O seu Dvorak reaparecia belo, pujante, perfeito. Aquela dança constava de um de seus Dvorak antigos. Seguiram-se obras ignotas, mas belas. Apesar disso, o cidadão não se tranqüilizava. De quem seriam elas? E por que a mesma gravação, o mesmo objeto, de um dia para o outro se havia transformado?
Nos dias seguintes o fenômeno se repetiu: as músicas eram sempre diferentes das composições ouvidas nas noites passadas, umas conhecidas, outras não. E o homem se foi acostumando àquilo. Passados alguns meses, tinha conhecido centenas de novas melodias. E isso o conformava. Pelo menos não precisava comprar mais discos nem escutar as mesmas obras, embora aqui e ali também ouvisse as mais conhecidas peças dos mais famosos compositores, tudo na mesma gravação. Pensou em procurar os jornais, as rádios, as televisões. Seria a mais fantástica reportagem. E se o chamassem de louco? Convocou os filhos para a confidência. Os rapazes saíram acabrunhados da casa do pai. Desistiu de dar publicidade ao fenômeno. Melhor permanecer em casa, calado, entregue à música, como sempre quis. Ouviria toda a obra musical composta até então. Coisa de que nenhum vivente seria capaz. Poderia escutar a peça nunca composta. E disso ninguém saberia. Somente ele, privilegiado ouvinte.
Porém um dia o disco desapareceu, sumiu, evaporou-se, com capa e tudo. E o pobre homem não soube mais o que fazer em casa, na sala, na cozinha, no quarto, na rua. Não soube mais o que fazer da vitrola, da poltrona, da geladeira, dos ouvidos. E desapareceu, sumiu, evaporou-se, sem deixar rastros nem notícia. E nunca mais se ouviu falar dele. Como se nunca tivesse existido.
/////

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O último do Gabo (Benilson Toniolo)




1.
Final de ano. Amigo-secreto em família.
- Alaor, o seu amigo-secreto quer saber o que é que você quer ganhar.
Acostumado com a pergunta que se repete todos anos –em casa, no trabalho, até entre os amigos semanais do boliche- ele não titubeia:
- Diz que eu quero o último livro do Gabriel García Márquez.
A esposa repete silenciosamente o nome, somente os lábios se movem, tentando não esquecer o nome do autor e pensando: Esse Alaor. Ele precisando de um cinto, uma cueca nova, sei lá, pede um livro.

2.
Na cama, antes de apagar a luz, três dias depois. Ela, em tom ameaçador:
- Alaor, você tem alguma coisa pra me dizer?
- Não, não tenho não. Por quê?
- Nada.
- Não, fala. Por quê? Que que eu fiz?
- Esse livro aí, que você falou. Qual é o nome?
- Qual?
- Esse que você quer ganhar do seu amigo-secreto.
- Ah, o do Gabriel García Márquez? “Memória de Minhas Putas Tristes”.
Silêncio.
- Então o nome é esse mesmo, não foi erro meu nem engano do vendedor?
- Não, o nome tá certo.
Silêncio.
- Tá. Deve ser muito interessante.
- Ah, sem dúvida. Não é qualquer Nobel de Literatura que anda lançando livro por aí. Além do quê, é um dos meus preferidos. Colombianozinho danado...
- Deve ser mesmo, pra escrever um livro com um nome desses.

3.
A mãe, em tom ameaçador:
- Deu pra pornografia agora, Alaor?
Ele, sem desgrudar os olhos do jornal e desinteressado:
- Por quê?
- Isto é livro que se peça, meu filho? Coitada da tua mulher, anda aí com minhoca na cabeça.
- Qual o problema, meu Deus? Só por causa do nome do livro? Besteira...
- Mas o livro é sobre o quê, afinal?
- Ah, mãe, é um livro de um escritor de quem eu já li quase tudo.
- E elas contam tudo mesmo?
- Elas quem?
- Ora, você sabe. Elas.
- As put...
- Não fala, Alaor! Não foi essa a educação que eu te dei!
- Não, não é nada disso. É sobre um homem que resolve comemorar a festa de seus 90 anos num bordel, junto a uma menina de 15 anos, e...
- Você depois de velho deu pra me dar trabalho.
Alaor volta ao jornal.

4.
- Quer dizer então que você é que é a minha amiga-secreta?
- Quem te disse?
- Sei lá, andou por aí em livrarias, atrás do livro.
- Nem me fale.
- Então, é você ou não é?
- Olha, Alaor, eu até nem queria mais fazer amigo-secreto. Mas não sou eu, não. É a tua mãe.

5.
- Olha, fala pra minha mãe que eu escolhi outro livro. Pronto, assim ninguém precisa passar vergonha na livraria.
- Excelente, meu amor. Tenho certeza que agora resolvemos tudo. Qual?
- Chama-se “Livro Sobre Nada”.
- Ou você está louco ou resolveu gozar o Natal da família.
- Mas qual o problema, pombas?
- Livro sobre nada, Alaor? Que que é, as páginas estão todas em branco? Olha aqui, depois que você começou com esse negócio de literatura ficou insuportável, sabia? Que saco!
- Que nada, é o último livro do Manoel de Barros. Poesia, sacou?
- Tá, saquei, mas quem não vai sacar nada é tua mãe, entendeu? Que coisa!

6.
Sábado á noite, depois do amor semanal. Ele ainda com o rosto enterrado entre os cabelos dela (ah, os cabelos dela...)
- Vem cá, será que não dá pra trocar de amigo-secreto?
Ela sorria, preguiçosa.

7.
- E aí, filho, gostou da bermuda que te dei?
Alaor sorria e balançava a cabeça, claro, daquela cor ainda não tinha nenhuma, mãe, a senhora é fogo mesmo, rárárá.
Alaor bebericava um Chianti escondido dos parentes que bebiam do garrafão que ele comprou no Supermercado. Afinal, podiam perceber que a cor dos dois é diferente e aí complicaria tudo. E pensava no embrulho estrategicamente escondido debaixo da árvore enfeitada, e que ele abriria avidamente depois que todos tivessem ido embora. Somente os dois sozinhos na penumbra da sala, sabe-se lá a que horas: Alaor e o último do Gabo.
/////